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3 IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES

2. O Movimento de Clubes Sociais Negros do Brasil, que no ano de 2006 reuniu em Santa Maria, RS, mais de 300 gestores de clubes e sociedades negras em busca de soluções

4.5 AS FONTES DOCUMENTAIS DA ANÁLISE CULTURAL

Williams (2003) distingue três níveis de cultura: 1) a cultura vivida em um determinado período e lugar, que apenas se encontra totalmente acessível para aqueles que vivem ou viveram em tal espaço-tempo; 2) a cultura registrada, desde a arte até os fatos mais cotidianos, isto é, a cultura documentada de um período; e 3) a cultura da tradição seletiva, fator vinculante entre a cultura vivida e os registros da cultura em distintos períodos.

Ele observa que quando a cultura de um período já não é presente, ou seja, não é mais uma cultura vivida, o passado sobrevive, ainda que de maneira mais restrita, nos documentos deixados por essa e/ou acerca dessa cultura. E, através da cultura registrada, é possível obter uma ideia razoavelmente clara sobre o acervo cultural, os padrões gerais de atividade e os valores desse período. Contudo, permeando a sobrevivência da cultura de determinado período há seleções (do que constitui acervo, de quais são efetivamente os padrões e valores culturais), que se dão no momento mesmo em que essa cultura é vivida, mas, também, nos próximos períodos, formando, de modo gradual, em continuidades e rupturas que acontecem em cada época subsequente, uma tradição (COIRO-MORAES, 2016, p. 30).

A pesquisa documental dessa tese tem como fontes a coluna social do jornal A Razão, entre as décadas de 1960 e 1980; os Livros de Ata da Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio do período de 1960-1980; o arquivo fotográfico do Museu Treze de Maio; o Catálogo do Fundo Fechado Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio – SCFTM (1903-2001), além dos acervos particulares de cada entrevistado, a fim de obter fotografias e notícias sobre as rainhas e princesas do clube social negro.

A pesquisa documental, de acesso restrito, constitui um desafio para o pesquisador, a quem cabe convencer o proprietário ou responsável pelo acervo que se deseja pesquisarsobre a importância da consulta ao material reunido. Sonia Virgínia Moreira (2005, p. 273-274) diz que em situações como esta, um projeto de pesquisa estruturado e articulado pode ajudar a vencer barreiras que de outra forma impediriam o acesso e a consulta a dados de origem primária (ou secundária) que valorizam qualquer trabalho acadêmico por uma característica singular: o ineditismo. Segundo ela, os arquivos pessoais são preciosos por reunir

cartas, fotografias, documentos de trabalho, registros de viagens, diários, diplomas, comprovantes e recibos ou simplesmente ‗papéis velhos‘. Esses documentos quando tomados em conjunto, podem revelar não apenas a trajetória de vida, mas também gostos, hábitos e valores de quem os guardou, constituindo o seu arquivo pessoal. [...] Os arquivos pessoais constituem valiosas fontes de pesquisa, seja pela especificidade dos tipos documentais que os caracterizam, seja pela possibilidade que oferecem de completar informações constantes em arquivos de natureza pública (CPDOC-FGV, 2004, website apud MOREIRA, 2005).

Importante salientar que em relação às imagens cedidas por Alcione Flores do Amaral (2013) foram onze anos de diálogo, de convivência, de trocas de informações, de instrumentalização e confiança, até a informante decidir autorizar as imagens fotográficas de seu acervo particular, em 2011, para serem utilizadas por pesquisadores e pelo Museu, para o qual ela doou 47 fotografias em preto e branco, contendo ali a sua trajetória pessoal, desde a infância até a fase adulta, quando foi rainha do carnaval do Clube Treze de Maio, passando por imagens que mostram Alcione não só no carnaval, mas com amigos quando foi aprovada no vestibular, em 1972, dentre outros inúmeros eventos e atividades. Procedeu-se também às pesquisas junto ao Arquivo Público Municipal, mas foi no Arquivo do Jornal A Razão que se encontrou os jornais de janeiro e fevereiro de 1970, quando Alcione foi capa.

Durante a entrevista com Alcione foram disponibilizados exemplares originais de jornais da imprensa negra em Santa Maria, Porto Alegre e Uruguaiana. Segundo a entrevistada, dois desses jornais poderiam ter sido produzidos pelo Clube Treze de Maio, O Succo e O Debate, porém ela não tinha certeza.

Mais tarde a autora dessa tese recebeu do último Presidente do Clube Treze de Maio, Alcey Bonifácio dos Santos (94 anos), um exemplar do jornal produzido pelo Clube Treze de Maio na década de 1960, A Voz do Treze sobre o qual falaremos posteriormente. O fato é que os clubes sociais negros produziam a suas próprias notícias, constituindo o que José Antônio dos Santos (2011) denominou de imprensa negra meridional, jornais escritos por jornalistas e redatores negros, como ele pode constatar em sua pesquisa ao revelar que ―Tive acesso a dois números de O Succo – ―Órgão Crítico, Humorístico e Noticioso‖ –, que foi um quinzenário publicado em Santa Maria a partir de 1922, sobre o qual encontrei registros em 1925.

Foi a partir desses registros, entendido no seu conjunto como imprensa negra meridional, que construí a tese de que o negro no Rio Grande do Sul não foi apenas trabalhador braçal, mas também contribuiu com o seu intelecto para a resolução dos principais problemas do seu tempo. Foi pensador que produziu livros e jornais, interpretou leis e códigos, escreveu poesia, teatro, artigos e manifestos, acompanhou e participou, portanto, da construção do pensamento social da época (SANTOS, 2011, p. 15).

Alcione foi a fiel depositária, cuidando com esmero de alguns exemplares que sua mãe, Dona Zilda, já falecida, fez questão de preservar e depois lhe repassar, pois abordavam questões sobre os negros, uma genuína imprensa negra: um exemplar de Uruguaiana, O Espião (1925); O Succo (1932); O Debate (1919) e o, União (1932). Já o jornal A Voz do Treze (1966), ela não havia ficado com cópia.

Segundo Sátira Machado (2011 apud ESCOBAR; COIRO-MOARES, 2013), os clubes sociais negros também foram os responsáveis por articular em seus salões, além de festas, atos políticos e uma boa parcela do que se conhece por ―imprensa negra‖

No Rio Grande do Sul, a Imprensa Negra é legitimada com periódicos como: O Exemplo (Porto Alegre, 1892-1930), A Cruzada (Pelotas, 1905), A Navalha (Santana do Livramento, 1931), A Revolta (Bagé,1925), A Hora (Rio Grande, 1917- 1934), A Alvorada (Pelotas, 1907- 1910; 1930 – 1937; 1946 – 1957), O Ébano (1962). (SANTOS, 2003). Na década de 70, foi lançada a revista gaúcha Tição, publicação que tinha como principal pauta o debate sobre a discriminação racial no Brasil. Em 1987, o Centro Ecumênico de Cultura Negra (Cecune) passou a executar projetos sociais, principalmente de cunho comunicacional, promovendo mostras de cinema e vídeo com a temática negra, em Porto Alegre. O Cecune promoveu ainda a edição do Jornal Como é (1995 – 1998), a publicação da Revista Conexão Negra (2003) e, atualmente, mantém o website Nação Z (MACHADO, 2011, p. 1).

Machado (2011, p. 1) afirma que ―muitos desses informativos foram produzidos por negras e negros ligados aos clubes negros‖, como a Sociedade Floresta Aurora (Porto Alegre, 1872), a associação Satélite Prontidão (Porto Alegre, 1902), o Clube Fica Ahi Pra ir Dizendo (Pelotas, 1926), entre outros.

Ao ser questionada sobre como eram os concursos de beleza em sua época, Alcione abordou outros assuntos, como a invisibilidade negra no jornal A Razão, apesar dela, seus pais e seus avós serem assinantes desse jornal; contou sobre como se deu o estímulo na família para que ela ingressasse no curso de Letras na Universidade Federal de Santa Maria, bem como o costume de sua mãe recortar os jornais e guardar tudo que se referia aos negros. Enfim, falou como foi confeccionado o seu vestido para o baile de debutantes, em 1968:

É que assim, eu sempre digo que eu fui criada pelo meu pai e pela minha mãe pra ser negra assumida. E a minha mãe fazia questão de sempre ler jornais e revistas. Eu fiz o Curso de Letras por causa disso. Aprendi a ler, e daí ela começou a comprar revistinhas. Da revistinha eu passei para as revistas dela, na época era Grande Otelo, é tipo Contigo que vocês leem hoje, e depois para os livros e jornais. Às vezes, eu tenho um problema com o jornal A Razão porque é a terceira geração da minha família que assina o jornal. Então, eu não largo nunca o jornal. Meu avô morreu em 1945, ele era assinante do A Razão, depois veio a minha mãe, depois veio eu. E ela recortava tudo o que ela via de importante sobre negros. Poemas de autores negros, Cruz e Souza, essas coisas todas. E ela recortou a roupa da Vera Lúcia, que foi Miss Brasil, eu acho que a única. A única não, depois teve a de Porto Alegre (Deise Nunes), mas na minha época sim. Ela foi miss em 61, e eu debutei em 68, e o meu vestido é uma réplica do vestido da miss, Vera Lúcia (ALCIONE

FLORES DO AMARAL. Entrevista concedida à Giane Vargas Escobar, em 21/06/2013).

De fato, Alcione Flores do Amaral constitui-se em uma legítima ―guardiã da memória‖, pois guardou em sua residência documentossobre a história dos negros em Santa Maria, sobre sua vida pessoal, sobre outros clubes negros, como o União Familiar, clube fundado em 1896, em Santa Maria e também sobre carnaval em Santa Maria e Uruguaiana, cidade do seu falecido pai.