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NO INTERIOR DOS ESTUDOS CULTURAIS

2 ESTRUTURAS DE SENTIMENTO: UMA HIPÓTESE INTERPRETATIVA NO INTERIOR DOS ESTUDOS CULTURAIS

2.3 ESTRUTURAS DE SENTIMENTO: CARACTERÍSTICAS DOMINANTES, RESIDUAIS E EMERGENTES

Segundo Williams (1979, p. 124), a complexidade de uma cultura se encontra para além das definições sociais como tradições, instituições e formações, mas também envolvem as ―inter-relações dinâmicas, em todos os pontos do processo, de elementos historicamente variados e variáveis. A esse processo o autor chamou de análise ―de época‖ que se constitui com determinadas características dominantes, residuais e emergentes.

Por características dominantes, Williamns (1979) entende como sendo um sistema cultural onde prevalece a cultura hegemônica. O autor traz como exemplo a cultura feudal ou

a cultura burguesa ou uma transição de uma para outra e ressalta que para realizar uma análise histórica autêntica, é necessário, em todos os pontos:

reconhecer as inter-relações complexas entre movimentos e tendências, tanto dentro como além de um domínio específico e efetivo. É necessário examinar como

estes se relacionam com a totalidade do processo cultural, e não apenas com o

sistema dominante selecionado e abstrato (WILLIAMS, 1979, p. 124).

Assim, poderíamos dizer que o jornal A Razão é uma ―hipótese generalizante e significativa‖ no período de 1960-1980, mas que nas relações dinâmicas internas de qualquer processo real, tinha na contramão que lidar com um clube que era um ―ponto de recuo‖ (WILLIAMS, 1979, p. 119) àquela tradição seletiva, somando-se a isso, tinham que conferir ―visibilidade‖ às rainhas negras, como Alcione e outras poucas, mostrando uma negritude indesejável em seu veículo de comunicação.

Como características dominantes na estrutura da cidade universitária podemos citar ainda que prevalecia o racismo e a segregação entre brancos e negros; o machismo e diversas formas de exclusão por conta da moralidade sexual; preconceito de classe social.

Residual é aquilo que é diferente do ―arcaico‖, embora na prática seja difícil, com

frequência distingui-los. Qualquer cultura inclui elementos disponíveis do passado, mas seu lugar no processo cultural contemporâneo é profundamente variável, é o que explica Williams (1979, p. 125).

Segundo o autor, o arcaico é aquilo que é totalmente reconhecido como um elemento do passado, a ser observado, examinado, ou mesmo, ocasionalmente, a ser ―revivido‖ de maneira consciente, de uma forma deliberadamente especializante. O residual por definição, ―foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente‖ (WILLIAMS, 1979).

Sendo assim, naquela sociedade, poderíamos dizer que alguns elementos residuais ainda se faziam presentes, tais como a manutenção e realimentação da estrutura racista e das formas de segreação; o machismo, o classismo e o controle dos aparatos midiáticos nas mãos das elites; a segregação entre brancos e negros tanto nos espaços sociais dos clubes, como no espaço público, já que em Santa Maria, segundo uma das entrevistadas tínhamos uma rua que era específica para a passagem das pessoas brancas, a ―Primeira Quadra‖ (era conhecida como Rua do Comércio, atual calçadão); os certames de beleza negra que remetiam às tradições africanas, reinventados em Santa Maria.

O autor explica que, em certos pontos, a cultura dominante não pode permitir demasiada experiência e práticas residuais fora de si mesma, pelo menos sem um risco. É pela incorporação daquilo que é inevitavelmente residual – pela interpretação, diluição, projeção e inclusão e exclusão discriminativas – que o trabalho de tradição seletiva se faz especialmente evidente e é mantido.

A estratégia de segregar o concurso de Rainha do Carnaval da Cidade de Santa Maria de 1970, em rainha do centro e rainha dos bairros, era uma evidente demonstração de como a sociedade branca tentava segregar o certame de beleza, na expetativa de que a soberana fosse sempre do centro, branca e com excelente poder aquisitivo. Entretanto, para o descontentamento geral da branquitude era inconcebível ter que ―aceitar‖ uma rainha negra, de um clube social negro concorrendo com as suas rainhas brancas e ainda conquistando um título de beleza, isso realmente era demais.

Por emergente o autor entende, primeiro, que ―novos significados, novas práticas, novas relações e tipos de relação estão sendo continuamente criados. Mas é excepcionalmente difícil distinguir entre os que são realmente elementos de alguma nova fase da cultura dominante e os que lhe são substancialmente alternativos ou opostos‖ (WILLIAMS, 1979, p. 126).

Ao exemplificar elementos emergentes radicalmente diferentes, Williams ressalta a teoria marxista que viu surgir a consciência de uma nova classe, o aparecimento de uma classe operária como classe, na Inglaterra do século XIX, assim como uma nova formação e prática cultural.

O que importa, finalmente, no entendimento da cultura emergente, em distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma questão prática imediata. Na verdade, depende crucialmente de descobrir novas formas ou adaptações da forma.

Podemos afirmar que o Clube Treze de Maio e suas rainhas negras eram de fato o que conferia àquele período (1960-1980) o seu caráter emergente, pois ele era radicalmente diferente dos clubes brancos e jamais poderia ser ―uma cópia de um clube branco‖, como o senso comum costuma dizer, pois ali tínhamos corpos negros em movimento, que se contrapunham à estruturas opressoras e hegemônicas da cidade que um dia escravizou seus ancestrais e segundo Williams (1979, p. 127), ―o desenvolvimento dessa prática é sempre desigual‖. Somavam-se a essas características emergentes, o próprio jornal alternativo do Clube Treze de Maio, em 1966, “A Voz do Treze”, já que aquelas rainhas, por mais condições econômicas que tivessem, não tinham espaço na coluna social do jornal A Razão, com raras exceções.

A principal abordagem teórica dessa tese está ancorada no conceito de estruturas de

sentimento. Esse conceito cunhado por Raymond Williams (1979, p. 134), são os

significados e valores tal como são vividos e sentidos ativamente e as relações entre eles e as crenças formais ou sistemáticas são na prática, variáveis (inclusive historicamente variáveis), em relação a vários aspectos, que vão do assentimento formal com dissentimento privado até a interação mais nuançada entre crenças interpretadas e selecionadas, e experiências vividas e justificadas.

A expressão cunhada por Williams (2003, p. 57), estrutura de sentimento é ―tão sólida e definida como sugere o termo ‗estrutura‘, porém atua nas partes mais delicadas e menos tangíveis de nossa atividade‖. Estrutura de sentimento é a cultura de um período: o resultado vital específico de todos os elementos da organização geral. Nem todos os integrantes de uma comunidade possuem a mesma estrutura de sentimento. Porém, parece que se trata de uma possessão mais profunda e muito ampliada, em todas as comunidades reais, justamente porque dela depende a comunicação. E o que é especialmente interessante, explica Williams (2003), é que não parece ser aprendida em nenhum sentido formal.

Estrutura de sentimento deve ser compreendida em articulação umbilical com o conceito amplo de cultura com o qual Williams trabalha. Segundo Itania Maria Mota Gomes (2011, p. 30) a expressão estrutura de sentimento nasce de um duplo esforço, que tensiona toda a obra de Williams.

De um lado, temos o esforço teórico-metodológico de rejeitar o determinismo marxista e empreender uma análise cultural que seja a análise da relação entre os elementos de um modo inteiro de vida; de outro, temos o esforço político de enfrentar o capitalismo: ―eu acredito que o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gerou tem que ser derrotado no geral e no detalhe pelos mais sistemáticos tipos de trabalho intelectual e educacional‖ (WIILLIAMS, 1989a, p. 76). Daí que é tão fundamental para Raymond Williams valorizar a mudança cultural, a inovação, a concepção de que é possível o surgimento de uma nova classe social, de uma nova consciência de classe, e, ao menos em tese, de uma nova

hegemonia (GOMES, 2011, p. 30).

A articulação entre a mudança social e a mudança cultural é o desafio central que Williams quer enfrentar com a formulação da noção de estrutura de sentimento, conforme Gomes (2011, p. 30). Ela afirma que, embora o trabalho de Williams fique melhor situado no âmbito dos estudos literários, sua teoria cultural e suas análises sobre cultura forneceram conceitos-chave para a investigação dos Estudos Culturais e colocaram em outro patamar a abordagem dos vínculos entre cultura e comunicação.

Essa tese vem exatamente ao encontro desse conceito ou hipótese cultural da

capitalismo refutou, escondeu, colocou para baixo do tapete, como as questões de gênero, raça e identidades negras, acreditamos que aí reside a possibilidade de transformação e de mudanças aqui propostas. Isso porque, além da reflexão necessária, essa tese intenta lançar um novo olhar sobre a maneira de perceber parte das histórias das mulheres negras de Santa Maria, por meio da visibilidade que um trabalho acadêmico proporciona e do conhecimento de todo um modo de vida.

Tais modificações são sociais sob dois aspectos que as distinguem dos sentidos limitados do social como o institucional e formal:

primeiro, pelo fato de serem modificações de presença (enquanto estão sendo vividas, isso é óbvio; quando já foram vividas, essa ainda é sua característica substancial); segundo, pelo fato de que embora sejam emergentes ou pré- emergentes, não têm de esperar definição, classificação ou racionalização antes de exercerem pressões palpáveis e fixarem limites efetivos à experiência e à ação (WIILLIAMS, 1979, p. 134).

Williams (1979) define esses elementos como uma ―estrutura‖, ao mesmo tempo engrenadas e em tensão:

como uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas e em tensão, uma experiência social em processo, com frequência ainda não reconhecida como social, mas como privada, idiossincrática, e mesmo isoladora, mas que na análise (e raramente de outro modo) tem suas características emergentes, relacionadoras e dominantes, e na verdade suas hierarquias específicas (WILLIAMS, 1979, p. 134).

Importante ressaltar que todos esses elementos e características são mais reconhecíveis numa fase posterior, quando foram (como ocorre muitas vezes) formalizadas, classificadas e em muitos casos incorporadas às instituições e formações. E nesse caso, uma nova estrutura de sentimento já terá começado a se formar

Metodologicamente uma ―estrutura de sentimento‖ é uma hipótese cultural, derivada na prática de tentativas de compreender esses elementos e suas ligações,

numa geração ou período, e que deve sempre retornar, interativamente, a essa

evidência. [...] A hipótese tem relevância especial para a arte e literatura, onde o verdadeiro conteúdo social está num número significativo de casos desse tipo presente e afetivo, que não podem ser reduzidos sem perda e sistemas de crença, instituições, ou relações gerais explícitas, embora possa incluir todas essas como vividas e experimentadas, com ou sem tensão, como também inclui elementos da experiência social e material (física ou natural) que podem estar além, ou ser revelados ou imperfeitamente ocultos pelos elementos sistemáticos reconhecíveis em outros pontos (WILLIAMS, 1979, p. 135).

Estrutura de sentimento se refere a algo ―tão firme e definido como sugere a palavra ‗estrutura‘, ainda que opere nos espaços mais delicados e menos tangíveis de nossa atividade‖ (WILLIAMS, 2003, p. 57 apud COIRO-MORAES et al., 2014). Os autores explicam ainda, que

enquanto estrutura atenta a ―uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas e em tensão‖, sentimento marca uma distinção em relação aos conceitos formais de visão de mundo, ideologia e consciência, para dar conta de significados tais como são vividos e sentidos ativamente, considerando que ―as relações entre eles e as crenças formais ou sistemáticas são, na prática, variáveis (inclusive historicamente variáveis), em relação a vários aspectos‖ (WILLIAMS, 1979, p. 134 apud COIRO-MORAES et al., 2014).

Certos elementos recorrentes, em especial, na arte e na literatura dão conta de atribuir categorias especializadoras do ―estético‖, que segundo Williams (1979) é necessário reconhecer e saudar esses elementos que possuem sentimentos específicos, ritmos específicos, tipos específicos de socialidade, impedindo assim a extração da experiência social que só é concebível quando a própria experiência social já foi categoricamente (e na raiz, historicamente) reduzida.

Estrutura de sentimento pode estar especificamente relacionada com a evidência de formas e convenções – figuras semânticas - que, na arte e literatura, estão com frequência entre os primeiros indícios de que essa nova estrutura se está formando. [...] As estruturas de sentimentos podem ser definidas como experiências sociais em solução, distintas de outras formações semânticas sociais que foram precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata (WILLIAMS, 1979, p. 135).

Conforme destacam COIRO-MORAES etall (2014), Filmer registra que Williams cunhou e refinou a ideia de estrutura de sentimento até atingir um conceito central e carregado de sentido, cuja potencial finalidade é a de instrumentalizar ―análises das relações entre as restrições estruturais das ordens sociais e as estruturas emergentes das formações interpessoais, sociais e culturais‖ (FILMER, 2003, p. 200). Sendo assim, é possível perceber a maturidade do conceito especialmente em duas de suas produções:

1) em The Long Revolution, destacando a importância da ideia de estrutura de sentimento para a análise cultural; 2) e em Marxismo e Literatura, no qual, como salienta Gomes (2011), o capítulo ―Estruturas de Sentimento‖ é precedido pelo capítulo ―Dominante, residual, emergente‖, em uma clara articulação entre as diferentes temporalidades contidas no conceito de estrutura de sentimento, isto é, passado, presente e futuro, operacionalizadas por meio das noções de dominante, residual e emergente.

Por vezes, o aparecimento de uma nova estrutura de sentimento se relaciona melhor com a ascensão de uma classe, por outra, com a contradição, o rompimento ou a mutação dentro de uma classe, embora conserve sua filiação substancial, e a tensão é imediatamente vivida e articulada em novas figuras semânticas radicalmente novas (WILLIAMS, 1979, p. 135).

É preciso aprender a distinguir as estruturas de sentimento que indicam uma nova articulação na qual se pode assentar uma política transformadora. Aí um dos ganhos

estratégicos de se perceber a centralidade da cultura e a função da arte em formalizar os conflitos de significados e valores, as contradições entre o vivido e o articulado, o almejado e o impossibilitado‖ (CEVASCO, 2001, p. 159).

Pode-se afirmar que a estrutura de sentimento do período entre 1960-1980 estava pautada nos valores da branquitude e na desvalorização da mulher negra, que não era considerada como possibilidade de estética e de beleza, numa sociedade que fazia de tudo para que ela não fosse visível e não ocupasse lugares de poder, como por exemplo, ser uma Rainha do Carnaval da cidade de Santa Maria.

―Uma geração poder formar sua sucessora, com razoável êxito, e o caráter social ou o padrão cultural geral, porém a nova geração terá sua própria estrutura de sentimento, que aparentemente, não procede de nenhuma parte‖. Dessa forma, Williams (2003, p. 57-58) fala sobre as transformações geracionais em uma determinada cultura e explica que a nova geração responde a seu modo ao mundo único que herdou, até suas muitas continuidades que podem seguir um rastro e reproduzir numerosos aspectos da organização anterior. Porém, a nova geração vai desenvolver de forma criativa, uma nova estrutura de sentimento.