• Nenhum resultado encontrado

3 IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES

2. O Movimento de Clubes Sociais Negros do Brasil, que no ano de 2006 reuniu em Santa Maria, RS, mais de 300 gestores de clubes e sociedades negras em busca de soluções

3.10 MULHERES NEGRAS: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM UM CAMPO DE CONFLITOS

Entre meados do século XVI e a década de 1850, foram traficados para o Brasil em torno de quatro milhões de pessoas escravizadas, entre congos, angolas, benguelas, caçanjes, minas e outros indivíduos provenientes dos mais diversos povos e grupos étnicos que habitavam as vilas, cidades e regiões do continente africano (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007, p. 15).

Mercadores de humanos, capturaram homens e mulheres livres, portanto, negros e negras da diáspora africana não são descendentes de ―escravos‖ e sim descendentes de trabalhadores negros escravizados. A prática da ―caçada humana‖ com o objetivo econômico e de ―civilizar‖ o outro, contou com o apoio primordial da Igreja Católica na pessoa do Papa Nicolau V que, em 1452, legalizou o escravismo, concedendo a Portugal a soberania sobre as terras que descobrisse nas suas navegações e autorizou este reino a escravizar as nações encontradas fora da Europa Cristã.

Apesar do pedido de perdão da igreja pelo genocídio de negros e índios, o que constituiu crime de lesa-humanidade, não foi possível apagar da memória a desumanização de mulheres e homens negros, pois, além de respaldar a escravidão negro-africana e indígena, a Igreja disseminou pelo mundo todo que os negros ―não tinham alma‖ e que eram ―povos

67 Para entender a importância da obra e vida da ativista Angela Davis, o HuffPost Brasil entrevistou Djamila

Ribeiro, secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, mestra em filosofia pela Unifesp e Rosane Borges, mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutoranda pela mesma universidade, em 26/10/2016. Disponível em: https://www.facebook.com/HuffPostBrasil/ videos/1392854257391491/. Acesso em: 28 out. 2016.

destinados pela Bíblia a serem escravos‖, justificando, assim, o tráfico de milhões de seres humanos.

Esses mercadores europeus, ao chegarem no continente africano, contribuíram para a desestabilização e o acirramento dos conflitos entre os diversos grupos étnicos que conviviam à sua maneira no continente africano. Muitas dessas sociedades se desestruturaram por conta dessa estratégia de guerra do colonizador: provocar o conflito entre aqueles que se quer subjugar e, assim, obter para si o monopólio da dominação, fazendo com que o ―outro‖, o diferente, inverta o foco do combate, voltando as armas para si mesmo, ou para os seus iguais ou semelhantes.

Uma das situações mais perversas numa sociedade racista é a vítima ser considerada a culpada pelo racismo que ela sofre. O senso comum costuma afirmar, ―vocês negros são mais racistas que os brancos!‖; ―Vocês mesmos se discriminam!‖; ―Vocês escravizavam em África!‖ É uma forma de desviar a responsabilidade pelo crime do racismo projetando a culpa na vítima, conforme explica Fanon (2008).

O castigo que nós merecemos só pode ser desviado se negarmos a responsabilidade do crime, projetando a culpa na vítima; provando assim – pelo menos a nós próprios – que, dando o primeiro e único golpe, agimos simplesmente em legítima defesa (G. LEGMAN apud FANON, 2008).

Mulheres e homens africanos de diferentes etnias eram capturados, aprisionados por traficantes europeus e transportados para as cidades escravistas do território brasileiro. Esses grupos não eram homogêneos, possuíam a sua própria história, valores culturais diferentes, referências familiares e visão de mundo até mesmo divergentes, que certamente constituíram e influenciaram na maneira de ser do povo brasileiro.

Embora o tráfico humano tenha sido oficialmente extinto em 1850, essa data não correspondia ao que acontecia na prática e algumas embarcações continuavam a desafiar o Atlântico, dando continuidade à travessia, aumentando a pressa e as más condições para os cativos sequestrados.

Schumaher e Brazil (2007, p. 20) chamam a atenção para o fato de que muitas anotações sobre meninas e moças constam de diários de bordo das embarcações negreiras, dos relatórios comerciais, dos escritos pessoais e de outros tantos documentos redigidos por traficantes, pilotos, religiosos e funcionários das companhias de comércio europeias. Segundo a autora, esses registros revelam um olhar masculino e etnocêntrico sobre as relações sociais como um todo e, em particular, sobre o tratamento dado ao feminino no vai-e-vem escravista.

Schumaher e Brazil (2007) descrevem alguns dos aspectos terríveis dos horrores imputados às muitas mulheres que foram trazidas para este outro lado do Atlântico, destacando-se desde a origem da travessia, o abuso sexual das mulheres negras por parte dos homens brancos e o que o ―tratamento diferenciado‖ dos homens negros lhes conferia:

Mal-alimentadas e cansadas de percorrer a pé muitas milhas, as africanas aprisionadas chegavam aos pontos de partida em péssimas condições. Nas embarcações, eram submetidas a toda sorte de maus tratos. O bacharel baiano Luis Antonio de Oliveira descreveu em suas Memórias, divulgadas em 1793, como a sujeira, os ratos, os piolhos, a cegueira e a sarna iam corroendo seus corpos. A morte vinha pelo escorbuto, sarampo, bexiga e diarreias que dizimavam boa parte dos embarcados, a começar pelas crianças. Às mulheres, por vezes, era dispensado um tratamento diferenciado. A elas permitia-se permanecer no convés, onde o ar puro e a retirada dos ferros do tornozelo aliviavam as duras condições da viagem. Porém, a permanência no convés também as deixava à mercê dos marinheiros que “se

serviam” sexualmente delas a qualquer hora do dia (SCHUMAHER; BRAZIL,

2007, p. 21).

Mulheres, homens e crianças negras sofreram brutalmente com castigos e mutilações. Davis (2016, p. 36) alerta que é importante lembrar que os castigos infligidos às mulheres escravizadas ultrapassavam em intensidade aqueles impostos aos homens, uma vez que não eram apenas acoitadas e mutiladas, mas também estupradas.

E ―o estupro era uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir e, nesse processo, desmoralizar seus companheiros‖ (DAVIS, 2016, p. 36).

Apesar dos testemunhos de escravas e escravos sobre a alta incidência de estupros e coerção sexual, o tema tem sido mais do que minimizado na literatura tradicional sobre a escravidão. Às vezes, parte-se até mesmo do princípio de que as escravas

aceitavam e encorajavam a atenção sexual dos homens brancos. O que acontecia,

portanto, não era exploração sexual, mas ―miscigenação‖ (DAVIS, 2016, p. 37).

A autora explica que o que muitos não conseguem entender é que num processo de exploração e escravização dificilmente havia uma base para ―prazer, afeto e amor‖ quando homens brancos por sua posição econômica, tinham acesso ilimitado ao corpo das mulheres negras. Davis salienta que ―Era enquanto opressores – ou, no caso dos que não possuíam escravos, enquanto agentes de dominação – que os homens brancos se aproximavam do corpo delas‖ (DAVIS, 2016, p. 38).

Como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas as formas de coerção sexual. Enquanto as punições mais violentas impostas aos homens consistiam em acoitamento e mutilações, as mulheres eram acoitadas, mutiladas e também estupradas. O estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do

controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras (DAVIS, 2016, p. 20).

Nos navios, conforme descrevem Schumaher e Brazil (2007, p. 21), os espaços para os cativos eram muito limitados e as provisões disponíveis raras. A barbárie era regida por leis e decretos, que ―permitiam‖ que fossem transportados sete escravizados por tonelada para os navios com vigias, e cinco para os navios sem vigias (decreto de 1684). Além disso, os traficantes quase sempre, para aumentar seus lucros, levavam um excesso de cativos a bordo, suprindo-os com alimentação e água insuficientes. Os homens eram amarrados em estacas nos porões, as mulheres entre os conveses, as que estavam grávidas, na grande cabine, e as crianças junto ao leme, o que naquele clima quente ocasionava um cheiro intolerável, conforme observação de um europeu ao dizer que considerava lamentável ver como amontoam aqueles pobres miseráveis, 650 ou 700 em um navio.

Essas embarcações confinavam humanos numa área extremamente baixa, obrigando- os a sentarem-se entre as pernas uns dos outros, e de tão amontoados que não havia possibilidade de deitarem ou mudarem de posição, durante o dia ou à noite. Para que chegassem ao devido destino junto aos seus ―senhores‖, homens e mulheres negras eram marcados como ovelhas, com os sinais dos proprietários, nos peitos ou nos braços (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007, p. 21).

Levantes no interior dos navios faziam parte do risco de se transportar uma ―carga‖ tão lucrativa. Entretanto, essas revoltas quase sempre resultavam em mais violência, mortos e feridos e o controle dos rebelados. Muitos eram enforcados na ponta do mastro, onde permaneciam pendurados. Muitos assassinatos de homens negros foram cometidos por homens brancos, jamais questionados.

Atrelado a esses linchamentos e as incontáveis barbaridades neles envolvidas, o

mito do estuprador negro foi trazido à tona. Seu terrível poder de persuasão só

poderia existir no interior do irracional mundo da ideologia racista. Por mais ilógico que seja o mito, não se trata de uma aberração espontânea. Ao contrário, o mito do estuprador negro era uma invenção obviamente política (DAVIS, 2016, p. 188).

Bosman apud Schumaher e Brazil (2007), declaram que as mulheres pareciam ―mais audaciosas e perigosas‖ e assim como os demais revoltosos, também foram postas a ferro. Durante a travessia, muitas se atiraram ao mar, temendo o mal que as esperava.

Após inúmeras ―torturas de dimensões Atlânticas‖, as africanas chegavam em situação deplorável, aportando em algumas cidades brasileiras e Estados, dentre eles, o Rio Grande do Sul.

Após estas torturas de dimensões Atlânticas, as africanas chegavam ―magras, como sombras cambaleantes‖, nas palavras de um cronista do século XIX. Tinham as ―feições contraídas, os grandes olhos pareciam querer saltar das órbitas a qualquer momento, e, pior que tudo, as barrigas franzinas, formando um pequeno buraco, como se elas tivessem se desenvolvido no sentido das coisas‖. Dos portos, eram levadas para os armazéns ou mercados de rua onde eram expostas à apreciação. Até os anos de 1830, quando o tráfico tornou-se ilegal, a população cativa normalmente aportava em cidades brasileiras como Belém, São Luiz do Maranhão, Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos, Paranaguá e nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007, p. 22).

Schumaher e Brazil (2007) descrevem a dura existência das africanas que aportavam em terras brasileiras, que além da violência física, passavam pela violência psicológica da destruição de parte de suas identidades, a perda do seu nome e adoção de nomes cristãos.

Ao chegarem como cativas ao Brasil, as africanas recebiam nomes cristãos e, da noite para o dia, deveriam virar Marias, Evas, e, ironicamente Felicidades. Os escravocratas e clérigos envolvidos no tráfico provavelmente supunham que seria possível acontecer uma repentina metamorfose com o batismo, uma espécie de passagem imediata da condição de mulheres africanas para a de escravizadas por vontade divina (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007, p. 22-23).

No entanto, Schumaher e Brazil (2007) explicam que a grande maioria de africanas resistiu e preservou seu nome de origem, assim expressando, entre os seus, uma parte muito significativa de sua identidade étnica ou religiosa. Os nomes católicos eram utilizados apenas nas relações com os colonizadores, ―eram apelidos de terras de brancos‖, como se dizia na época.

Algumas agregaram também sobrenomes relativos aos lugares de onde partiram ou do grupo que pertenciam em terras brasileiras. Foi assim que muitas africanas passavam a ser identificadas como Josefa Mina, Catarina Moçambique, Catarina Angola ou Maria Emini, corroborando com o que Lélia de Almeida Gonzalez apud Néia Daniel (1994, p. 2) dizia ―negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido... ao gosto deles‖. Uma metáfora muito utilizada também pela socióloga Vilma Reis68

, remetendo à simbologia do ideograma adinkra Sankofa69, sempre (re)afirmando o ensinamento de Gonzalez ―nome e sobrenome para que o racismo não coloque apelido‖.

As mulheres negras da diáspora africana foram as responsáveis pela reconstrução de um Mundo Novo em terras brasileiras. E nesse reconstruir o seu corpo negro foi um dos

68 Disponível em: http://www.afreaka.com.br/notas/vilma-reis-recebe-medalha-zumbi-dos-palmares-2/. Acesso

em: 28 out. 2016.

69 Um dos símbolos que compõe um sistema de escrita dos povos akan, da África Ocidental, em especial os

asante da atual República de Gana. Sankofa. Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi. Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás. Símbolo da sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro. Badana do livro organizado por Eliza Larkin Nascimento, Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4).

principais atributos utilizados pelo homem branco, que dele se servia de acordo com a sua vontade, gerando com isso, as filhas e os filhos do estupro, mascarados pelo ―romantizado‖ mito da democracia racial no Brasil.

Nas últimas décadas do século XVI, as mulheres africanas começaram a chegar ao chamado Novo Mundo, ou seja, após serem apresadas pelos europeus em suas terras, foram trazidas para as Américas, onde em diferentes territórios recém-―descobertos‖ foram cruelmente exploradas. Obrigatoriamente tiveram que servir a exaustão como mão e corpo para toda e qualquer obra. Roubaram delas parte da liberdade e muitas vidas, mas não a memória e os traços de identidade. Desde os primeiros tempos resistiram, lutaram e geraram soluções. Ao longo dos tempos reinventaram verdadeiramente um Mundo Novo, no qual plantaram sementes e valores que brotaram, floresceram e deram os mais variados, belos e vigorosos frutos. Agregaram fé, saberes e sabores as maneiras de ser de toda gente, que de geração em geração continua a chegar para ajudar na recriação de novos rumos (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007, p. 23).

A memória e os traços de identidade negra jamais foram perdidos, mesmo diante da barbárie da travessia, dos suicídios e das tristezas de serem forçadas a viverem num lugar que não era o seu, mas que em terras brasileiras forjaram uma nova forma de ser mulher negra, (re)existindo apesar da dor, conforme ressalta Barbosa (2013, p. 25), ao falar sobre o mundo da oralidade e as formas de comunicação que essas mulheres negras tiveram que engendrar para sobreviver:

Na música, como na fala, as palavras são campos de significação que circundam objetos e através delas podem ser acionadas informações armazenadas, descrevendo situações que foram preservadas. O momento seguinte é a transmissão realizada pelo

aparelho tecnológico da oralidade. Da boca saíam música e ritmo, constituindo-se

os cânticos entoados em uma espécie de documentação oral da cultura desses escravos e de seus modos de comunicação. O dito dos versos e dos sons musicais era, em suma, o discurso preservado, que ficara armazenado sob a forma de sentidos

memoráveis. Assim, a memória é o veículo da comunicação dos indivíduos

presentes na situação de comunicação (HAVELOCK, 1995, p.108) (BARBOSA, 2013, p. 25).

Segundo Barbosa (2013, p. 26), ―o corpo era também lugar de armazenamento de uma informação cultural que podia ser reutilizada‖, a exemplo da capoeira, onde ―expandiam os enunciados da fala com gestos corporais‖. Entretanto, esse mesmo corpo negro que se comunicava precisava ser destituído de poder, para servir aos fins do sistema de exploração colonial escravista.

Percebe-se, desde a travessia como essa prática fundante do que hoje é o Brasil da ―diversidade étnico-racial‖ - o estupro - se reverteu de maneira perversa contra o homem negro, pois paira no imaginário mundial, que ele sim é o representante legítimo do estuprador, potencial violador das mulheres brancas, conforme explica Fanon (2008), em Pele negra,

máscaras Brancas. Segundo Fanon, tudo está no plano do imaginário. E o que imaginamos é o que de fato fazemos e acreditamos, mesmo que não seja.

Ainda no plano genital, será que o branco que detesta o negro não é dominado por um sentimento de impotência ou de inferioridade sexual? Sendo o ideal de virilidade absoluto, não haveria aí um fenômeno de diminuição em relação ao negro, percebido como um símbolo fálico? O linchamento do negro não seria uma vingança sexual? Sabemos tudo o que as sevícias, as torturas, os murros, comportam de sexual. Basta reler algumas páginas do Marquês de Sade para nos convencermos... A superioridade do negro é real? Todo o mundo sabe que não. Mas o importante não é isso. O pensamento pré-lógico do fóbico decidiu que é assim (FANON, 2008, p. 139).

Essa representação do estuprador negro foi uma estratégia racista e sexista que funcionou graças à visibilidade auferida pelas grandes mídias contribuindo para a manutenção do trabalho semi-escravo; a desestabilização de inúmeras famílias negras com o crescente aumento das mulheres negras como chefes de família; o aprisionamento e encarceramento em massa de homens negros70, por qualquer motivo.

No Brasil, a criminalização pela prática da religião de matriz africana era comum e fortemente atacada pela polícia; a capoeira, hoje patrimônio cultural do Brasil, já foi considerada crime de vadiagem; o samba e o carnaval, também patrimônio do Brasil e parte da indústria cultural rentável para os grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, já foram considerados ―coisa de negro vagabundo‖.

A representação da masculinidade negra foi forjada nas histórias da escravidão, colonialismo e imperialismo, aonde o negro foi desprovido de autoridade e de responsabilidade paterna na família, sendo infantilizado pelo senhor de escravos e linchado por conta do medo/desejo que o branco tinha do seu ―estranho fruto‖; assim como a lascividade e a supersexualição da mulher negra, conforme explica Hall (1997).

Durante a escravatura, o senhor de escravos branco com frequência exerceu sua autoridade sobre o escravo negro, destituindo-o de todos os atributos de responsabilidade, autoridade paterna e na família, tratando-o como uma criança. Esta

„infantilização‟ da diferença é uma estratégia representacional muito usada em homens e mulheres. (As mulheres atletas ainda costuma ser chamadas de “garotas”. E é só recentemente que muitos brancos sulinos norte-americanos

deixaram de chamar os negros adultos de „rapazes‟, enquanto que a prática ainda persiste na África do Sul). A infantilização pode também ser entendida como forma de „castrar‟ simbolicamente o homem negro (i.e., privá-lo de sua ―masculinidade‖); e, como temos visto, os brancos frequentemente fantasiavam

quanto ao apetite sexual exagerado e a destreza do homem negro – assim como

o caráter lascivo, supersexualizado da mulher negra – que eles tanto temiam quanto secretamente invejavam. Alegavam estupro como principal ―justificativa‖ para linchar os negros nos estados dos sul até o Movimento dos Direitos Civis

70 Retratado no documentário Netflix, A 13ª Emenda, publicado em 13/10/2016. Disponível em:

(JORDAN, 1968). Como observa Mercer, ―A fantasia primária do grande pênis

negro projeta o medo de uma ameaça, não apenas à feminilidade branca, mas à

civilização em si, como angústia pela miscigenação, a poluição eugênica e a degeneração racial é encenada através dos rituais masculinos brancos de agressão racial – o histórico linchamento dos homens negros nos Estados Unidos rotineiramente envolvem a castração literal do „estranho fruto‟ do Outro (1994a, p. 185; HALL, 1997, p. 262-263).71

Davis (2016) explica que [...] Assim como as mulheres negras dificilmente eram ―mulheres‖ no sentido corrente do termo, o sistema escravista desencorajava a supremacia masculina dos homens negros, pois seria muito perigoso para o explorador administrar um possível desvio à norma escravista

Uma vez que maridos e esposas, pais e filhas eram igualmente submetidos à autoridade absoluta dos feitores, o fortalecimento da supremacia masculina entre a população escrava poderia levar a uma perigosa ruptura na cadeia de comando. Além disso, uma vez que as mulheres negras, enquanto trabalhadoras, não podiam ser tratadas como o ―sexo frágil‖ ou ―donas de casa‖, os homens negros não podiam aspirar à função de ―chefes de família‖, muito menos à de ―provedores da família‖. Afinal, homens, mulheres e crianças eram igualmente ―provedores‖ para a classe proprietária de mão de obra escrava (DAVIS, 2016, p. 20).

Não se pode nunca esquecer que a escravidão era um sistema econômico calcado no racismo, um crime perfeito. O Estado brasileiro, ao abolir oficialmente a escravidão, em 1888, precisava manter aquela mão de obra barata, encontrando novas formas de exploração, num prolongamento da escravidão, para que o capitalismo prosperasse.

Sendo assim, homens negros foram e ainda são as vítimas preferidas da vigilância policial, do controle penal e do sistema prisional no mundo todo, e, as mulheres negras, por sua vez, aquelas que indiretamente são atingidas pelo abandono do Estado e de muitos dos seus companheiros e filhos, que desaparecem nas prisões para nunca mais voltarem.

71 Tradução livre do Inglês: During slavery, the white slave master often exercised his authority over the black

male slave, by depriving him of all the attributes of responsibility, paternal and familial authority, treating him as a child. This ‗infantilization‘ of difference is a common representational strategy for both men and women. (women athletes are still widely referred to as ‗girls‘. And it is only recently that many Southern US whites