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1.1 «A escola às crianças»

1.2 A participação dos alunos na vida da escola

A fórmula: «a escola às crianças», no original «l’école aux enfants» (1915) e traduzida como «the school for the child» (1919) e «la Escuela para los niños» (1920), parece, por isto mesmo, não ser só uma escola para as crianças, porque todas as escolas são para as crianças. Pretende-se que a escola seja das crianças, dando-lhes a sua própria voz e fazendo-as participar intensamente ao seu próprio

1. Alguns autores citados na obra de 1909: Baldwin, Binet, Binet & Simon, Cattel, Chabot, Claparède, Compayré, Decroly,

Dewey, Ebbinghaus, F. Thomas, Galton, Janet, Kirkpatrik, Piéron, Ribot, Spearman, Spencer, Stanley Hall, Stern, Thorn- dike, Titchener, W. James, Wundt…

nível na vida da escola e não fazendo-a aprender de cor o que os professores ou os livros ensinavam. Faria de Vasconcellos partiu da psicologia da criança (estádio de desenvolvimento cognitivo e afetivo, interesses, motivações, habilidades), organizou o meio físico (tornando-o propício a uma aprendizagem ativa, participativa e produtiva) e social (aprendizagem da autonomia, responsabilidade e solidariedade em liberdade) para preparar cada aluno para a sua vida pessoal, social, profissional. Na escola de Bierges vivia-se tudo isto em comunidade. A dimensão das escolas foi determinante do clima que nela se gera: «A fim de implementar um sistema de ensino e educação como este… é óbvio que o número de alunos por turma tem de ser limitado. Um número elevado de alunos prejudicaria a coesão. Evidentemente não se pode trabalhar em boas condições com turmas tão numerosas como nos quartéis.» (Vasconcellos, 2012, p. 73).

1.2.1 O Boletim dos alunos: mostrar a escola através dos seus alunos

«Apostamos tão fortemente no Boletim dos alunos apenas porque as suas redações são de tema livre e pessoais, transmitem a sua psicologia, o seu “estilo” não literário, mas simples, sincero, autêntico e humano, e mostram a vida da escola em todas as suas manifestações. Acreditamos que a melhor maneira de mostrar uma escola é fazê-lo através dos seus alunos. Connosco eles escrevem apenas o que veem, o que sabem e o que querem.» (Vasconcellos, 2012, p. 167). A vida desta escola não era conhecida pelos relatórios do diretor, do conselho de curadores ou do conselho geral. O próprio diretor serviu-se do Boletim dos alunos para dar a conhecer a vida da escola. Este jornal de escola é feito exclusivamente pelos alunos. Nele os alunos descrevem a sociedade cooperativa agrícola que eles próprios constituíram, as atividades agrícolas, criação de animais, atividades de jardinagem, preparação, realização e avaliação de visitas de estudo e experiências realizadas por eles próprios. Pode ver-se no Boletim que o tom geral é a descrição da «nossa» ou da «minha» ação para aprender. Os alunos falam por si próprios da sua própria aprendizagem, de como fazem a sua ação, como constroem o seu conhecimento, como desenvolvem a sua afetividade e relacionamento social e como aprendem a tornar-se melhores.

1.2.2 Aprendizagem da autonomia, responsabilidade e solidariedade em liberdade

«O objetivo da educação física e da educação intelectual não é apenas tornar robusto o corpo da criança e encher o seu espírito de conhecimentos, mas também permitir-lhe adquirir qualidades de carácter, espírito de iniciativa, autonomia e responsabilidade pessoal; prepará-la para se tornar

senhora de si própria, para se autodeterminar e se sentir entusiasticamente solidária com os outros seres humanos… Como a vida moral da criança deve ser resultado das suas experiências pessoais e da sua adaptação espontânea à vida escolar e social com colegas e professores, compreende-se facilmente a importância que deve ser dada à organização do meio físico e social onde a criança tem de viver e crescer… O ar livre, o espaço, a luz, a liberdade em plena natureza, no meio dos campos, bosques, árvores e flores inspiram às crianças o gosto pelas coisas belas e criam a situação ideal para garantir, naturalmente e sem esforço, o vigor e a saúde, que são a base da vida moral… Os jogos, os desportos, a educação física, as caminhadas, os passeios, as viagens constituem preciosos auxiliares da educação moral e social da criança; são excelentes oportunidades para desenvolver as capacidades físicas e morais, levar a criança a descobrir-se a si própria, a tornar-se forte e rija, a disciplinar-se e a autocontrolar-se, a tornar-se corajosa, paciente e resiliente, a praticar a solidariedade e a entreajuda numa atmosfera de vigor, alegria e bom humor… Tentamos transmitir à criança a sensação de que ao mesmo tempo que recebe as influências do meio social, também age sobre esse meio, podendo contribuir para o modificar para o bem ou para o mal, e que todo o trabalho, ao mesmo tempo que lhe proporciona um benefício individual, tem também um eco na vida coletiva da escola. Tudo em Bierges, aulas, turmas, trabalhos manuais, trabalhos agrícolas, contribui para desenvolver, fortalecer, aumentar na criança não só a consciência da sua personalidade, da sua autoafirmação e individualidade próprias, mas também o sentido social e a consciência da vida coletiva.» (Vasconcellos, 2012, p. 192- 199).

Paulo Freire (1974) em Uma educação para a liberdade refere: «No fundo, há só dois métodos educativos diferentes, revelando atitudes específicas face aos iletrados; o primeiro, o da educação visando a domesticação do homem; o segundo, o da educação que visa a libertação do homem (não que por si só a educação possa libertar o homem, mas ela contribui para esta libertação ao conduzir os homens a adoptar uma atitude crítica face ao seu meio)… Educação para uma domesticação. Esta política educativa, quer os seus aderentes disso estejam conscientes ou não, tem como centro uma manipulação das relações e dos pontos de referência entre mestres e alunos; estes últimos são os objetos da ação dos primeiros. Os iletrados, como recipientes passivos, têm de ser ‘enchidos’ pelas palavras que lhes transmitem os seus instrutores; eles não são convidados a participar de maneira criadora no processo de ensino. O vocabulário que lhes é ensinado, e que provem do mundo cultural do instrutor, chega-lhes como alguma coisa totalmente ‘à parte’ como alguma coisa que pouco tem a ver com a sua vida de todos os dias. Como se o binómio linguagem-pensamento pudesse ser possível isolado, cortado da vida! Ao mesmo tempo, esta política de educação não toca nunca nas estruturas sociais…» (p. 45-46).

Faria de Vasconcellos centrou a sua ação pedagógica na estrutura da própria escola e na atitude crítica dos alunos face ao meio envolvente e à sua vida de todos os dias. A estrutura da escola foi sendo (re)construída pelos próprios alunos, a partir da análise crítica das necessidades com que se iam deparando e aprendiam a resolver os problemas que iam surgindo. Não se limitavam a fazer, mas aprendiam a resolver problemas da forma mais científica e tecnológica possível, adequada a cada situação. E mais importante ainda era a liberdade para aprender a partir da experiência de cada um com direito a errar e a assumir os erros, os seus e os dos outros, num processo crítico orientado para a aprendizagem da autonomia e da responsabilidade em solidariedade.

Faria de Vasconcellos (2012) dá o exemplo da transformação do tanque da escola: «Ao tomarem banho no tanque, as crianças aperceberam-se que a água estava suja, tinha muito lodo e que era necessário limpá-lo, porque, dadas as suas dimensões, seria possível transformá-lo numa bela piscina… O primeiro passo foi convocar a assembleia geral dos alunos… Uma comissão foi encarregada de dialogar comigo para fazer o que fosse necessário. Aceitei a ideia, aprovei-a e aconselhei os alunos a começar a trabalhar e a obter todas as informações, documentos e competências necessárias, elaborando para isso um plano de trabalho… Foi novamente convocada a assembleia dos alunos… A comissão, tendo reunido todas as ideias, informações de todo o tipo, elaborou um relatório que me foi apresentado. Examinei-o, estudei-o e numa reunião com a comissão de alunos, após uma troca de opiniões seguida de discussão, modificámos alguns pontos, completámos outros e elaborámos o plano de trabalho… Em primeiro lugar era preciso esvaziar o tanque: um problema complicado. Era necessário recorrer à física. Quais são os meios que a ciência proporciona para tal operação? Precisávamos da ajuda e da experiência do professor de física. Ele aproveitou esta oportunidade para sugerir o estudo de uma determinada parte da física: a hidráulica. Era a ocasião propícia para o fazer… Antes de mais é necessário desviar o fluxo de água que alimenta o tanque… Esta parte do problema foi engenhosamente resolvida pelas crianças… Também no passado adultos conseguiram mudar o curso dos rios, de acordo com as suas conveniências… Depois de estudar os princípios que a ciência disponibiliza, é preciso verificar os que se aplicam neste caso concreto… O tanque foi esvaziado com uma pá holandesa. E agora é preciso limpá-lo. Como remover a enorme quantidade de lodo? Vários métodos foram ensaiados. Construímos uma espécie de draga com um cabo colocado por cima do tanque movido por um sistema de roldanas, mas não resultou. Fomos forçados a recorrer ao método mais primitivo e rudimentar: remover a lama à pá e transportá-la em carrinhos de mão. Um trabalho de paciência, duro, prolongado e sujo. Mas como tinha de ser feito, todos colaboraram. A lama foi retirada. Não foi possível pavimentar nem cimentar o chão porque ficava muito caro… Os alunos fizeram um estudo técnico muito completo: consultaram empresas de materiais de construção, visitaram e consultaram especialistas… tiveram de se contentar com cobrir o fundo do tanque

com areia, até surgir uma situação mais favorável… Chegou então o momento de encher o tanque. Calculou-se a quantidade de água e o tempo necessários para o encher e concluiu-se que infelizmente não estaria cheio para o dia da festa dos pássaros e das árvores. Queríamos tanto inaugurá-lo nesse dia!… Construiu-se um sistema de tubos ligados às torneiras da casa que davam para umas calhas em madeira construídas na carpintaria. Era a rede pública que iria fornecer a água necessária… A comissão anunciou que eu me opunha… a água que querem usar pertence ao município e não pode ser utilizada sem se pedir autorização… não sabemos se vamos prejudicar outros utentes… Todos compreenderam e tomaram diretamente consciência das exigências legítimas da sociedade em que viviam. Aperceberam-se de forma prática e viva que estão ligados por fortes laços ao meio em que vivem… o município autorizou o pedido feito pelos alunos e o lago foi inaugurado no dia da festa dos pássaros e das árvores. Este exemplo mostra a aprendizagem social que os nossos alunos fizeram neste caso.» (p. 199-205).

Esta é uma situação concreta que surgiu na vida real. Nem tudo foi previsto no início e as situações que apareceram eram mais complexas do que as previstas. Os alunos, com a supervisão do diretor e dos professores, foram resolvendo os problemas que iam surgindo, recorrendo à interdisciplinaridade. Partia-se da observação, da análise, da experiência, da resolução de problemas de uma realidade concreta para se aprender as diferentes disciplinas do currículo. Esta atitude pedagógica vai ainda mais longe do que aquela a que se chamou «nova literacia»: «capacidade dos alunos para aplicar conhecimentos e habilidades nas principais áreas temáticas e sua capacidade de analisar, raciocinar e comunicar eficazmente como pôr, interpretar e resolver problemas em variadas situações» (Oecd, 2010, p. 3). Atualmente nalgumas escolas ainda se continua a ensinar um currículo teórico, a partir de manuais escolares, desfasado da realidade concreta, inventando-se problemas/experiências descon- textualizados em que se comprovam resultados previamente conhecidos pelo professor. «Faria de Vasconcellos pretendia partir da experiência da realidade e da ação para o conhecimento, do trabalho para o estudo e educar seres humanos ativos, participativos e produtivos na vida real, conjugando para isso uma formação integral e uma formação para o trabalho, respeitando os interesses, aptidões, ritmos de aprendizagem, maturidade de cada um. Nas escolas tradicionais pensa-se que a inclusão é a frequência escolar de todos os alunos e, por isso, em nome da igualdade, ensina-se o mesmo em abstrato a todos. Estas escolas, desfasadas do mundo real do trabalho, preparam essencialmente para a obtenção de diplomas e para o desemprego.» (Meireles-Coelho, Cotovio & Ferreira, 2012, p. 7303).

1.2.3 A divisão do trabalho e os cargos sociais para «aprender fazendo»

«Nas reuniões trimestrais os alunos distribuem entre si os cargos necessários à vida social da escola. É a assembleia dos alunos que nomeia os que vão desempenhar as diferentes funções que a divisão do trabalho implica. Os cargos principais são os que estão relacionados com o inventário, o cuidado e a aquisição dos livros, produtos, instrumentos e ferramentas necessárias para o trabalho; os contactos com fornecedores; a contabilidade de todas as despesas; a organização das equipas e do horário de trabalho; a supervisão da ordem e limpeza nos seguintes locais: 1) oficina de modelagem, cartonagem, encadernação e desenho; 2) carpintaria; 3) serralharia; 4) laboratório de física e química; 5) laboratório de ciências naturais; 6) quatro salas de aula; 7) sala de desenho geométrico; 8) biblioteca e sala de música; e ainda: responsabilidade pelos jardins; supervisão de edifícios, compras e vendas, direção dos trabalhos, contabilidade da quinta; direção dos jogos; redação do Boletim da escola. Para cada trimestre a assembleia nomeia um presidente, cuja função é zelar pela ordem geral dos alunos e pela execução das decisões da assembleia, representar os alunos nas reuniões da comissão de pais, ou seja, coordenar os esforços de todos, fazer a ligação entre as várias funções e resolver certos conflitos que possam surgir. Além destes cargos trimestrais, existem outros em que a rotatividade é necessária para que todos os desempenhem e adquiram hábitos básicos de ordem e limpeza, espírito de iniciativa e sentido de responsabilidade… A assembleia dos alunos tem um papel quase soberano… reservando-se o diretor o direito de veto. Os alunos que aceitaram cargos por um período determinado… cumprem o princípio de que qualquer tarefa assumida livremente deve ser levada até ao fim. Isso é do próprio interesse da criança e cultiva nela a paciência, a perseverança e a força de vontade. Os cargos são distribuídos segundo as capacidades físicas e psicológicas dos alunos. Os alunos desfrutam de ampla liberdade de ação e iniciativa no desempenho das suas funções e, sendo assim, assumem uma grande responsabilidade real e efetiva. Além desta cooperação na vida social da escola, resultante da divisão do trabalho, a criança tem talvez uma participação mais direta ainda na organização da vida escolar: organização de festas, palestras, excursões, discussão de várias questões relativas à vida interna da escola. Participa na elaboração do horário geral do estudo e dos trabalhos manuais… Paralelamente à vida social da escola, os alunos organizam associações e grupos: clubes de jogos e de campismo… O nosso sistema de autonomia22 não se aplica integralmente aos alunos dos 7 aos 9 anos, dado que ainda estão num estádio de evolução em que o sistema patriarcal e familiar lhes é mais adequado.» (Vasconcellos, 2012, p. 209-213).