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1.1 – A pastoral de 29 de Setembro de

D. Frei Manuel Coutinho chegou à Madeira a 22 de Julho de 1725, e fez a sua entrada solene na diocese no dia 25174. Nas Memorias... nada se registou sobre a forma

como decorreu essa entrada, mas a câmara municipal, na primeira carta que enviou ao rei com queixas do bispo diz que ele foi recebido “com tam universal e festivo applauzo que nenhum outro prelado teve igual nem semilhante por desejarem todos pastor que os governasse e deregise pelo caminho da vertude que todos se juntam na forma da sua boa opinião”, declaração eventualmente exagerada, pelo menos no que toca a ser este o prelado melhor acolhido de sempre, para contrastar mais fortemente com as queixas que se passavam a endossar de imediato175.

É sabido que do processo de provimento episcopal fazia parte um conjunto de informações sobre a diocese que ia ser ocupada, nomeadamente no que tocava a número de paróquias, fogos e benefícios, e estas informações terão, naturalmente, sido fornecidas a D. Frei Manuel Coutinho antes de vir para a Madeira, mas é igualmente possível que o próprio tivesse recolhido outras notícias sobre problemas para os quais pretendia estar preparado176. Se não foi esse o caso, contudo, o novo prelado

174 ARM, APEF, doc. 270, Memorias dos acontecimentos…, fl. 7. 175

ARM, CMF, Livro 1346, fl. 62. Sobre a forma como eram acolhidos os prelados na diocese há registos de outras recepções entusiásticas. Gaspar Frutuoso fala da chegada de D. Luís de Figueiredo Lemos dizendo que “…quebravam os sinos com repiques e alvoroçaramse os corações de todos”, acrescentando que se fez uma “honrosa procissão de graves e Reverendos sacerdotes e bizarros soldados que (…) hiam atirando as munições do fogo; com muito concurso de gente e aplauso de todos (…) e com musica e salmos” (Saudades…, p. 237). Fernando Augusto da Silva, por sua vez, e referindo-se a D. Jorge de Lemos diz que foi recebido “com as maiores demonstrações de apreço e regozijo por parte dos habitantes e todas as autoridades do arquipélago” (Subsídios…, p. 105), enquanto D. Jerónimo Barreto teve “uma brilhante e aparatosa recepção” (Subsídios…, p. 113).

176 Sobre as etapas do provimento episcopal, ver José Pedro Paiva, Os Bispos…, pp. 78-110.

Especificamente sobre o inquérito do estado da diocese, idem, op. cit., p. 87.Em relação a informações sobre problemas concretos do bispado, e para se falar de dois exemplos, apenas, Fernanda Enes refere, para os Açores, o caso de D. Frei Clemente Vieira que, antes de embarcar para terras açorianas contactou o bispo do Porto, D. João de Sousa, pedindo-lhe conselhos sobre a realização de um sínodo, pois da diocese o haviam alertado da necessidade de levar instruções sobre aquele assunto, e José Pedro Paiva, quando trata do episcopado de D. Frei Luís de Santa Teresa, bispo de Olinda, também menciona uma situação idêntica no que toca a informação prévia. Ver Maria Fernanda Enes, Reforma Tridentina e

76 rapidamente se pôs a par de algumas questões, como se demonstra pela prontidão com que começou a agir. A 10 de Agosto, isto é, apenas cerca de 15 dias passados após a sua chegada, já tinha mandado prender um capitão de ordenanças, há muito tempo acusado de mancebia, ao que rapidamente se acresce o envio, nos princípios de Setembro, de uma alçada à Calheta e, durante esse mesmo mês, a promoção de uma sindicância às contas do Convento das Mercês177.

A 29 de Setembro o antístite já tinha informação suficiente para produzir a sua primeira (e quase única) pastoral. Tratava-se de documento curto e objectivo, onde se inventariavam algumas das grandes questões que afectavam a diocese, se marcavam prazos para a sua resolução e se preconizavam castigos para o incumprimento178. Na

referida pastoral o prelado começava por levantar todas as excomunhões postas pelos seus antecessores e visitadores, mantendo apenas as de direito comum e as papais, as quais, naturalmente, não tinha competência para suspender. Passava depois a falar do

Paiva, “Reforma religiosa, conflito, mudança política e cisão: o governo da diocese de Olinda (Pernambuco) por D. Frei Luís de Santa Teresa (1738-1754)”, em Revista de História da Sociedade e da

Cultura, nº 8, Coimbra: 2008, pp. 169-170.

177 Em relação ao capitão de ordenanças, João Jacques Fénix, a prisão referida deu origem a um longo

processo judicial que está em ADF, Cx. 56 - A, doc. 14, de que se falará mais à frente, no capítulo consagrado aos pecados públicos. Sobre a alçada à Calheta, não se encontraram referências a ela na documentação episcopal, pelo que não é possível determinar com segurança, os motivos que o bispo teria tido para a fazer, embora se possa supor que teria tido, na origem, alguma denúncia. Os dados que se conseguiram recolher sobre ela estão registados no documento da câmara municipal acima citado, fls. 62- 62v. A sindicância ao convento vem narrada nas Memorias dos acontecimentos…, fls. 9-16.

178 O considerar-se a pastoral “quase única” tem a ver com a circunstância de, para além desta, o bispo só

ter produzido uma outra, muito direccionada para um problema específico – o da falta de doutrinação detectada nos fregueses de Santo António da Serra, na visita que o prelado pessoalmente fez a Santa Cruz e Machico em 1733. ADF, cx. 45, doc. 16. O facto de esta pastoral se classificar como “curta” prende-se com a comparação, por exemplo, com as duas que o sucessor de D. Manuel Coutinho, D. Frei João do Nascimento (1741/01/02-1753/11/05), varatojano, e também jacobeu, mandou publicar a 10 de Janeiro e a 12 de Maio de 1742, pois enquanto a pastoral de D. Frei Manuel tem apenas três fólios, as do seu sucessor têm, respectivamente, seis e sete fólios e são produzidas com apenas quatro meses de diferença. A própria forma de abordar os assuntos é igualmente muito diferente, já que ao espírito sintético do primeiro prelado contrapõe o segundo um texto com as questões muito mais enquadradas. De referir, ainda, em relação ao texto de D. Frei Manuel, a rapidez com que foi produzido – apenas dois meses depois da chegada do prelado. Atente-se, por comparação, no caso de D. Frei João do Nascimento, que levou um ano a produzir a primeira pastoral, ou no caso de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1756/07/19- 1784/00/00?), que demorou cinco (a sua primeira pastoral data de 24 de Julho de 1761), alegando só então ter “sufficiente conhecimento do estado do Bispado, não so pellas informaçoens que temos adquirido mas também pella visita que em parte das suas Parochias temos feito”. As três últimas pastorais estão em ARM, RP, Livro de Visitação da Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Porto

Moniz, 1656-1795, fls. 180-183, 189- 192v e 256- 265v. Se, por outro lado, se contrastar a produção de

pastorais de D. Frei Manuel Coutinho com a dos seus homónimos açorianos, ver-se-á, igualmente, que a parcimónia de textos do bispo da Madeira só tem paralelo em D. Manuel Álvares da Costa que em catorze anos de episcopado se limitou a uma pastoral, enquanto os outros antístites do século XVIII registam produções de cartas pastorais na casa das 26 (D. Frei José de Avé Maria), 18 (D. João Marcelino), 16 (D. Frei Valério do Sacramento), para mencionar os mais prolíficos. Sobre as pastorais açorianas ver Susana Goulart Costa, Viver e morrer religiosamente. Ilha de S. Miguel, século XVIII, Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2007, sobretudo pp. 46-61.

77 mal que se rezava nos coros das colegiadas, da falta de confessores e da irreverência com que se celebrava o sacrifício da Missa, pelo que determinava que os párocos “fação celebrar nos seus coros os officios divinos com muita pauza e gravidade, segundo seus regimentos, sob pena de os castigarmos com aspereza”, ao mesmo tempo que mandava aos beneficiados que obedecessem aos párocos no tocante àquelas matérias179. De

seguida, estabelecia o prazo de quatro meses para que todos os clérigos se apresentassem a exame para confessores, para o que se deviam preparar aplicando-se ao estudo da Moral, enquanto os que se achassem limitados no latim ou cerimónias de missa tinham de se dedicar ao estudo de ambas as matérias, para delas serem simultaneamente examinados. Acrescentava que os residentes no Funchal deviam frequentar as aulas de Moral no Colégio da Companhia de Jesus, pois não seriam admitidos a exame sem certificado de frequência dessas lições. Pronunciava-se, a seguir, sobre os trajes dos eclesiásticos, mandando que se cumprisse o que sobre isso indicavam as Constituições do bispado, e manifestava-se contra os benefícios e paróquias servidos por outros que não os respectivos titulares, dando a todos um mês para cumprirem com a residência. Por lhe constar os desacatos que se faziam nas igrejas nas alturas de romagens, com “jantares, danças e cantigas” mandava, com pena de excomunhão, que o povo se abstivesse de tais manifestações e aos párocos que fechassem as igrejas logo depois das Ave-marias e não consentissem a reabertura senão na manhã seguinte, excepto na noite de Natal, em Quinta-feira Maior e na madrugada da Ressurreição. Sobre as mulheres que andavam de noite a pretexto de devoção, mandava aos párocos que o não autorizassem, e também que evitassem qualquer ajuntamento nocturno, autorizando-os a prendê-las e condená-las até dois tostões. Passava, depois, para recomendações aos vigários sobre assistência à missa e doutrinação, solicitando que fossem prudentes “atendendo aos longes das freguesias”, mas sublinhando que os remissos deviam ser condenados e, persistindo, presos. Por ter sido informado do grande descuido que havia no cumprimento das últimas vontades, o bispo dava um mês aos párocos para denunciarem testamentos por cumprir, sob pena de suspensão das suas ordens. Ordenava, ainda, aos vigários que fossem vigilantes em relação aos pecados públicos, que tivessem um exemplar das Constituições do bispado e que não permitissem aos tesoureiros e organistas ausências superiores a oito dias. Quanto às confrarias, determinava a forma e os prazos de se darem as contas, o uso a

78 dar ao dinheiro, o modo de se arrecadar os fundos e de proceder aos registos contabilísticos. Dirigia, depois, algumas palavras de censura aos clérigos, afirmando que lhe constava “a grande falta que há de ministros para o serviço da igreja, nascida principalmente da omissão e pouco zelo dos sacerdotes”, pelo que mandava a todos os presbíteros, diáconos e subdiáconos que acudissem a qualquer falta, sob pena de perderem as suas ordens, acrescentando que não seriam promovidos a graus superiores sem certidão de cumprimento dos deveres. Escandalizava-se, ainda, com os desposados, que coabitavam maritalmente durante anos e com os que “vivem divorciados de suas molheres”. Terminava, finalmente, admoestando, rogando e gravemente obrigando “a todos os parochos com pena de excomunhão mayor (…) se empreguem na exacta observação desta pastoral”, a qual devia ser lida no primeiro dia festivo após a publicação, e, depois, todos os anos no primeiro Domingo do Advento180.

A singularidade deste documento pode ficar a dever-se ao facto de D. Frei Manuel Coutinho entender que ele configurava um programa de governo da diocese, e que a sua acção à frente do bispado seria a de fazer cumprir o que se enunciava. O próprio tom em que o documento está redigido, e que concedia a primazia ao verbo “mandar”, continha, também, indicações do modo como o bispo pretendia realizar os seus desígnios181. No fundo, os problemas estavam identificados, as soluções

encontradas, as ordens emitidas; não havia necessidade de mais palavras, mas apenas de acção para materializar o rumo já definido. À concretização deste programa se dedicou,

180 ADF, cx. 45, doc. 15, fl.n.n.

181 Esta pastoral contém, com efeito, 21 vezes o termo “mandamos”, 3 vezes “ordenamos”, e 1 vez

“advertimos”, o que não pode deixar de ser significativo da forma escolhida por D. Frei Manuel Coutinho para gerir os destinos da sua diocese. A opção por esta terminologia e esta postura teria, provavelmente, mais a ver com traços de personalidade de D. Frei Manuel Coutinho do que com os rigores característicos da jacobeia, na medida em que um outro bispo, o contemporâneo e igualmente jacobeu, D. Frei Valério do Sacramento, bispo de Angra, entre 1738 e 1755, recorreu, nas suas pastorais a expressões menos duras e directivas. Com efeito, o bispo dos Açores escrevia sobretudo “rogamos”, “recomendamos” e “exortamos”, termos que claramente preferia à forma normativa do seu homónimo madeirense, e que traduzem, por seu lado, uma outra abordagem às correcções que achava necessário introduzir no quotidiano do clero e fiéis. Ver Susana Goulart Costa, Viver e morrer religiosamente…, p. 52. A classificação de D. Frei Valério como jacobeu está em José Pedro Paiva, Os Bispos…, p. 511. Importa, no entanto, não se deixar iludir por estas duas estratégias, diferentes na forma mas não nos objectivos. Com efeito, estas perspectivas de exercício do poder episcopal configuram, as duas, um mesmo modelo de disciplinamento social (para usar a expressão de Adriano Prosperi, retomada por Federico Palomo) que era objectivo da Igreja, mas enquanto uma envereda por mecanismos claros de coerção, a outra faz apelo à “violência subtil” (para se continuar com Palomo). Ver Adriano Prosperi, “Riforma cattolica, Controriforma, disciplinamento sociale”, em ROSA, Gabriele de, GREGORY, Tullio, e VAUCHEZ, Andre (coord.), Storia dell’ Italia Religiosa, Bari: ed. Laterza, 1994, vol. I. pp. 3-48, e Federico Palomo,

79 com efeito, o prelado, que, nos anos em que exerceu o múnus episcopal, recorrentemente invocou a sua pastoral, sobretudo nas visitas, para censurar e punir os que não cumprissem com o que ela determinava182.