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3.1 – As instruções para o governador

D. Frei Manuel Coutinho não trouxe, no entanto, apenas os alvarás da praxe. Com efeito, a 11 de Julho, o secretário de estado, Diogo Mendonça de Corte Real, tinha-lhe mandado entregar uma carta destinada ao governador da Madeira com instruções sobre a forma como o monarca desejava que o bispo fosse tratado, e que era cópia de uma outra já enviada ao governador do Pará, cuja diocese tinha acabado de ser criada, em 1719113. A carta que acompanhava as instruções fora enviada pelo rei e dizia

explicitamente que elas serviam “para que Vossa Senhoria saiba o como ahy o deve tratar, e fazer que seja tratado”, seguindo-se depois explicações mais pormenorizadas e dirigidas especificamente ao governante, que indicavam que ele não devia assistir em público às cerimónias religiosas realizadas na sé, ou em qualquer outra igreja da cidade, “pelo que quando queyrais assestir o fareis em qualquer lugar totalmente oculto sem destinção alguma como qualquer particular o faria”, nunca devendo entrar em templo algum onde estivessem o bispo ou o cabido114. O rei resolvia, ainda, que os bispos

precedessem sempre a qualquer cargo civil, mesmo ao de vice-rei do Brasil, e isso não só nas casas dos governadores, mas mesmo na do próprio prelado, e terminava ordenando que “todos os sobreditos lhe tenhão todo o respeito e attenção e os tratem com as devidas reverencias em todo o lugar assim na Igreja como fora della, e lhes dem toda a ajuda, de que necessitarem (…)”.115

112 DGARQ, PJRFF, Livro 53, fls. 80v-82v. Estes alvarás (excepto o de nomeação das dignidades) estão

igualmente transcritos em DGARQ, Chancelaria da Ordem de Cristo, Livro 157, fls. 341v- 342v.

113 A diocese de Belém do Pará foi criada em 4 de Março de 1719, por Clemente XI, e o seu primeiro

bispo foi D. Frei Bartolomeu do Pilar, um açoriano da Congregação do Oratório. Foi sagrado em Lisboa em 1720, e assumiu presencialmente o lugar em 1724. Ver Fortunato de Almeida, História da Igreja…, vol. II, p. 24 e p. 713.

114

ARM, APEF, doc. 270, Memorias dos acontecimentos…, fl. 7v. A carta que se tem estado a referir e as instruções para o governador do Pará também estão transcritas em Documentos para subsidio ao

estudo do Direito Civil-Ecclesiastico Portuguez e Canonico, de João Joaquim Pinto, Funchal:

Typographia Funchalense e Typographia Esperança, 1894, vol. II, pp. 204-206.

53 O secretário de estado achou por bem clarificar alguns pontos das instruções “firmadas por Sua Magestade”, pelo que passou a especificar que a referência a que se devia dar sempre o melhor lugar ao prelado devia ter o seguinte entendimento:

“Aos Eccleziasticos, e ainda seculares a que se custuma ceder o melhor lugar ainda nas suas próprias cazas he estylo hir esperalos á porta da sua e levalos sempre á mão direita e deixalos entrar primeyro pelas portas dando-lhe a melhor cadeyra, e na despedida se pratica o mesmo indo athe a porta da rua e não se recolhendo para caza senão depois de ver partir a pessoa, e isto he o que Vossa Mercê hade praticar com o Bispo para executar exactamente (como deve) o que Sua Magestade lhe ordena sobre essa materia”116.

E prosseguia, explicando como se deviam marcar as audiências com o bispo e como se havia de comportar o governador no caso de encontrar o prelado na rua: “parará e esperará que elle passe, fazendo-lhe a reverencia, que he devida a sua Dignidade”. Já o povo devia, em semelhante ocasião, pôr o joelho em terra até que o bispo passasse, ou caso ele parasse, fazer o mesmo até receber bênção e depois, então, levantar-se e seguir caminho. Recomendava, também, cuidado no repicar dos sinos das igrejas e conventos, sempre que o bispo estivesse por perto, e terminava referindo os tratamentos que se haviam de mutuamente dar: ao bispo o de “Illustrissima” e ao governador o de “Senhoria”117.

Pelo que acima fica dito é lícito concluir que da parte do rei era clara a primazia que, de entre todos os agentes da coroa, atribuía aos bispos, o que está, de resto, de acordo com o que José Pedro Paiva afirma ser uma corrente política que se prosseguia em Portugal já desde o tempo de D. Manuel I. Diz aquele autor que “(…) o poder temporal teve a percepção da importância de que se revestia a Igreja e, em particular, os seus bispos, enquanto instrumento estratégico para a afirmação da ordem e da própria autoridade do poder do rei nos seus domínios”, nomeadamente porque a melhor cobertura territorial da Igreja fazia chegar a populações longínquas um sistema de aplicação da justiça que a coroa estava longe de conseguir, e também porque a mesma Igreja veiculava noções de valores e hierarquia que aproveitavam igualmente ao poder régio118. Deste modo fazia todo o sentido dotar os prelados de grande autoridade, até

porque, para além do que se acabou de dizer, eles eram os únicos a ocupar um cargo

116Op. cit., , fl. 8.

117

Ibidem.

54 sem limitações temporais, uma vez que todos os outros representantes do poder central – governadores, provedores e juízes de fora, tinham mandatos de três anos. Esta percepção do papel fundamental dos bispos levou a que os reis de Portugal procurassem ter um papel cada vez mais interveniente nas nomeações dos prelados, e o próprio D. João V sustentou uma dissensão com Roma pelo seu direito a nomear prelados, o que veio a conseguir em 1740119. O rei considerava, portanto, os bispos

como “criaturas” suas, a quem protegia, como se vê no caso presente, mas de quem também esperava serviços, não só a Deus, mas também ao reino, conforme claramente se depreende do texto da nomeação do arcebispo de Goa, onde Diogo Mendonça Corte Real diz que o monarca o tinha nomeado “por entender que naquelle emprego fará Vossa Reverendíssima muitos serviços a Deos Nosso Senhor e a esta Coroa”120. A

relação simbiótica que se estabelece entre a coroa e o episcopado português leva a que o rei tome, normalmente, o partido dos bispos quando eles se vêem envolvidos em contendas com outros representantes do poder nas suas dioceses, o que é visível, e para se continuar a falar do arcebispo de Goa, na resposta que o rei deu aos procuradores da coroa que tinham acusado o arcebispo, censurando-lhes “os termos indecentes, incivis e injuriosos que tinham usado contra o prelado a quem, pela sua dignidade e pessoa devião tratar com differente respeito e attenção; e imitar a que eu costumo ter com pessoas de semelhantes caracteres”121.

119 José Pedro Paiva, Os Bispos…, pp. 70-74. O problema aqui não estava na concordância do papa com

as propostas episcopais apresentadas pelo rei de Portugal, (uma vez que o papa sempre sancionou os bispos sugeridos), mas sim na forma de as apresentar. Desde o tempo dos Filipes que os bispos eram propostos a Roma com a indicação de o serem “ad nominationem et praesentationem…” do monarca, e depois da Restauração, os reis da nova dinastia tinham querido continuar a usar a mesma expressão. Roma, porém, opôs-se, desejando reimplantar o antigo costume de se apresentarem os prelados das dioceses antigas (Algarve, Braga, Coimbra, Évora, Guarda, Lamego, Lisboa, Porto e Viseu) com a fórmula “ad suplicationem”, embora aceitasse a apresentação “ad nominationem” para os bispados novos (Leiria, Miranda, Portalegre e Elvas), e os do padroado. D. João V recusou-se a utilizar as duas fórmulas e exigiu que lhe fosse concedido o direito de utilizar apenas a de “ad nominationem et praesentationem”, o que acabou por lhe ser concedido em 1740. Esta pretensão do rei não surge isolada, mas antes se insere no conjunto de diligências empreendidas por D. João V junto da Santa Sé no sentido do reforço do prestígio da Igreja nacional. Dessas medidas faziam parte a reposição em vigor do beneplácito régio, a promoção ao cardinalato dos núncios acreditados em Portugal, a fundação da capela real e a criação do patriarcado de Lisboa. Sobre este assunto ver também Fortunato de Almeida, História da Igreja…, vol. II, pp. 331- 349, e Paulo Drummond Braga, “Igreja, igrejas e culto”, em Joel Serrão e A. H. Oliveira Marques (dir), Avelino de Freitas Meneses (coord.), Nova História de Portugal, vol.7, pp. 90-93.

120

Texto citado por José Pedro Paiva, Os Bispos…, p. 180.

121 Collecção Chronologica de Leis Extravagantes posteriores à nova compilação das Ordenações do

Reino publicadas em 1603, Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1819, tomo I, p. 318. Sobre os

conflitos sustentados em Goa pelo arcebispo D. Frei Inácio de Santa Teresa, ver Evergton Sales Souza,

55 Por tudo quanto se acabou de ver, e voltando ao caso da recém-fundada diocese do Pará, fazia todo o sentido o envio das instruções acima referidas, pois a anterior inexistência de bispo justificava a necessidade de se indicarem os procedimentos e comportamentos a ter para com a sua pessoa. No que tocava, porém, ao bispado do Funchal, as circunstâncias já eram outras, uma vez que os motivos aduzidos para a do Pará não se poderiam evocar para uma diocese com mais de duzentos anos. Como explicar, então, que D. Frei Manuel Coutinho tenha vindo acompanhado de um documento com aquelas características?

As razões podem ser de duas ordens. Em primeiro lugar, há que ter em conta que, ao longo de todo o Antigo Regime, as questões da etiqueta se foram transformando numa linguagem com significado próprio e cada vez mais marcante, como bem observa Norbert Elias quando afirma que, naquela altura, “a precisão no estabelecimento de um cerimonial, o rigor na definição de gestos, o cuidado com que o valor em prestígio de cada acto é ponderado, estão na medida da importância vital que se atribui à etiqueta e, de um modo geral, à maneira como as pessoas se tratam umas às outras”122. Os valores do ritual, protocolo e precedências constituíam, assim, uma

forma de comunicação social que todos sabiam ler e veiculavam informação vital para a percepção do lugar na hierarquia, o que é o mesmo que dizer da importância de cada um, pelo que toda a clarificação que se pudesse produzir seria, à partida, inibidora de potenciais conflitos, e esta é uma asserção em que o documento que se tem vindo a referir deve ser entendido123. Em segundo lugar, devem ser considerados os

acontecimentos que tinham marcado o episcopado de D. José de Castelo Branco no que dizia respeito a relações com governadores. Como já se viu, o prelado tinha-se desentendido com dois dos titulares daquele cargo, e num dos casos, parte do litígio estivera relacionada com o lugar que o governante devia ocupar na Sé124. Este assunto

122 Norbert Elias, A sociedade de corte, Lisboa: Editorial Estampa, 1995, (1ª edição de 1969), p. 76. 123 Sobre a importância de que se revestiam este tipo de questões ver, para além da obra já referida de

Norbert Elias, José Pedro Paiva, “O cerimonial de entrada dos bispos nas suas dioceses: uma encenação de poder (1741-1757)”, em Revista de História das Ideias, vol. XV, Coimbra: 1993, pp.117-146, “Public ceremonies ruled by ecclesiastical-clerical sphere: a language of political assertion (16th-18th centuries),

Religious ceremonials and images: power and social meaning (1400-1750), Coimbra: ed. Palimage,

2002, pp. 415-425; Ana Cristina Araújo, “Ritualidade e poder na corte de D. João V. A génese simbólica do regalismo politico”, em Revista de História das Ideias, nº. 22, Coimbra: Instituto de História e Teoria das Ideias, 2001, pp. 175-208 e Rui Bebiano Nascimento, D. João V. Poder e Espectáculo, Aveiro: 1987.

124 Os desentendimentos entre os dois protagonistas não se limitaram a questões protocolares, mas

entraram também por áreas de jurisdição, de que é exemplo a acusação que o bispo produziu contra o governador, considerando que este tinha abusado do seu poder e desrespeitado a justiça eclesiástica, quando mandou retirar da tutela da Igreja uma senhora envolvida num processo de divórcio por sevícias.

56 não era, de resto, novo na história da Madeira, pois já no tempo de D. Luís de Figueiredo Lemos tinha havido problemas deste foro, motivados por os governadores “quererem que se lhes fizessem as cerimonias devidas aos Bispos”, ao que na altura se procurou obviar com a publicação de um alvará régio e edital do bispo, de 1588, onde se determinava que os governadores se pudessem sentar dentro da capela-mor, do lado da epístola, durante a celebração dos ofícios divinos, enquanto ao bispo ficava reservado o lugar do lado do evangelho125. Quanto às restantes cerimónias que se

podiam fazer aos governantes, como o dar-lhes água benta, incenso e paz, deveriam ocorrer depois de o mesmo ter sido feito ao bispo, mas antes do cabido. Em dias assinalados, como o da Quarta-feira de Cinzas, Sexta-feira Santa e Adoração da Cruz, o cabido teria precedência sobre o governador.

Como se viu, estas medidas não foram, no entanto, suficientes para se acabar com os conflitos radicados em questões protocolares, cujo agravamento, no tempo de D. José de Sousa de Castelo Branco, deverá ter estado na origem do envio das instruções de que se fez acompanhar D. Frei Manuel Coutinho e que, no tocante a governadores, funcionaram bastante bem, pois não há notícias de desentendimentos entre os titulares dos dois cargos por razões daquele tipo. O mesmo se não pode dizer, porém, em relação a representantes de outros poderes, casos da câmara municipal e do provedor da fazenda, com quem as questões protocolares virão a ser fonte de controvérsia, como à frente se verá.