• Nenhum resultado encontrado

2.2 – Os pecados públicos

A Igreja foi, durante toda a época Moderna, a mais presente das instituições no quotidiano das populações, situação que atingiu graças à construção de mecanismos que a tornavam cada vez mais próxima e interveniente no dia-a-dia dos crentes216.

215 ARM, RP, Porto Moniz, Livro de Visitação da Igreja de Nossa Senhora da Conceição …, fls. 181-

186. Esta pastoral tem a particularidade de, no tocante ao ensino da doutrina, também aludir aos “mestres de estudantes, meninos e meninas”, corresponsabilizando-os pela aprendizagem dos “mysterios e artigos da nossa Santa Fee e das orações pertencentes a mesma Doutrina Christãa” (op. cit., fl. 181). Em todo o episcopado de D. Frei Manuel Coutinho não se encontrou uma única referência à figura de tais mestres, embora numa visita ao Porto Moniz se faça menção ao ensino de meninos. No caso concreto, aquilo que se pretendia era que o pároco cuidasse do ensino de alguns meninos “para que estudando venha a haver bastantes sacerdotes na freguesia”, o que permitiria evitar-se o “prejuizo das almas na falta de ministros para o pasto espiritual”. ARM, RP, Porto Moniz, Livro da Visitação…, fl. 163v.

216 A importância do papel da Igreja no contexto social da época vai muito para além daquilo que aqui se

referencia, mas, neste momento, apenas interessa analisar a sua influência sobre o dia-a-dia das populações. Para uma noção mais abrangente daquela influência ver José Pedro Paiva, “La réforme catholique au Portugal. Les visites pastorales des évêques”, em Le Portugal et la Mediterranée, vol.

95 Companhia permanente da vida dos fiéis, a Igreja decidia quando se trabalhava e descansava, quando se rezava, quando se comia e o que se comia, quando e como se convivia, que comportamentos se deviam adoptar, o que era correcto sentir e até o que era lícito pensar. A magnitude desta intervenção envolvia um condicionamento diário dos crentes, que ia desde o foro mais íntimo e privado, dos sentimentos e do pensamento, até às formas exteriores do relacionamento afectivo, familiar e social, e exigia um conjunto de mecanismos de vigilância que permitissem aferir o cumprimento das determinações, sem o que se corria o risco de todo o esforço não engendrar mais que descrédito. Este processo de intrusão progressiva, iniciado no advento da instituição, foi-se consolidando através da montagem de diversos dispositivos que lhe permitiam ir verificando, a espaços de tempo mais ou menos regulares, o cumprimento dos seus preceitos. Assim, para as questões do foro da consciência, desde muito cedo se instituiu a confissão, que tinha uma obrigatoriedade anual, e cuja efectivação era verificada através de róis – os róis de confessados, ou da desobriga217.

Por maioria de razão, os momentos chave da vida dos fiéis - o nascimento, o casamento e a morte, também não tinham existência plena fora do seio da Igreja, dado que era ela a entidade que os validava e registava em livros próprios, preenchidos pelo pároco da cada freguesia. Mas o controlo mais permanente do modo de viver das populações era realizado pelas próprias pessoas, umas em relação às outras, e pelos párocos que, vivendo muito próximo dos seus fregueses, tinham a incumbência de velar pelo cumprimento de um conjunto de normas superiormente definidas e levadas ao conhecimento dos paroquianos através dos programas de doutrinação, de leitura de provimentos, de recordação de passos das constituições sinodais e de transmissão de

XLIII, Separata dos Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Lisboa – Paris: 2002, pp. 159- 161; António Manuel Hespanha, História de Portugal Moderno político e institucional, Lisboa: Universidade Aberta, 1995, pp.125-130, e “O poder eclesiástico. Aspectos institucionais”, em José Matoso (dir.), História de Portugal, Lisboa: ed. Círculo de Leitores, 1993, vol IV, pp. 287-290; Pedro Cardim, “Religião e ordem social. Em torno dos fundamentos católicos do sistema político do Antigo Regime”, em Revista de História das Ideias, 2001,vol. 22, pp.133-136 e António Camões Gouveia, “O controlo do tempo”, em Carlos Moreira de Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal… , vol. II, pp. 317-322.

217 Sobre o sacramento da confissão em geral, ver Jean Delumeau, L’aveu et le pardon, Paris, Fayard,

1998; João Francisco Marques, entrada “Confissão” em Carlos Azevedo de Menezes (dir.), Dicionário de

História Religiosa de Portugal…, e Marcel Bernos, “Saint Charles Borromée et ses «Instructions aux

confésseurs», une lécture rigoriste par le clergé français (XVIe-XIXe siècle)”, em Pratiques de la

conféssion. Des Péres du désert a Vatican II: Quinze études d’histoire, Paris, 1983, pp. 185- 200; Maria

de Lurdes Fernandes, “Do manual de confessores ao guia de penitentes. Orientações e caminhos da confissão no Portugal pós-Trento”, em Via Spiritus, nº 2, Porto: 1995, pp. 47-65, e Federico Palomo, A

96 ordens e informações diversas, no momento para isso reservado na estação da missa218.

Um auxiliar precioso da exequibilidade deste desígnio normativo era o sistema montado para fazer chegar a informação produzida no centro ate à mais distante das periferias e que assentava tanto numa rede vasta, com diversos patamares institucionais de difusão, como, mais simplesmente, num mecanismo de transmissão pároco a pároco, que rapidamente cobria o espaço da diocese e se encarregava de comunicar qualquer mensagem produzida pelo centro decisor219. A coroar, contudo, este edifício de

supervisão, encontravam-se as visitas pastorais, desencadeadas por decisão episcopal e destinadas a controlar o efectivo cumprimento dos normativos emanados da cúpula da instituição eclesiástica220.

este sacramento, verAntónio Pereira da Silva, A questão do sigilismo…, pp. 132-139, e Evergton Sales Souza, Jansénisme …, pp. 199-200.

218 Um exemplo da diversidade de informações que se transmitia na estação da missa ficou exarado numa

visitação ao Porto Moniz, onde, a propósito das obrigações dos capelães, se determinava que dissessem missa a horas convenientes, e durante o ofício fizessem “doutrina e estação em que declarem os dias santos, jejuns, jubileus, etc. (…)”. Ver ARM, RP, Porto Moniz, Livro de Visitação da Igreja de Nossa

Senhora da Conceição…, fl. 163.

219 Sobre os mecanismos de comunicação da Igreja montados para o continente português ver José Pedro

Paiva, “As comunicações no âmbito da Igreja e da Inquisição”, em Margarida Sobral Neto, (coord.), As

comunicações da Idade Moderna, Lisboa: ed. da Fundação Portuguesa das Comunicações, 2005, pp.147-

175. Para o caso particular da diocese do Funchal, ver, por exemplo, o edital de D. Frei Manuel Coutinho, sobre a obrigatoriedade da leitura da Bula da Ceia aos fiéis, onde se diz que para a informação chegar ao conhecimento de todos, “mandamos ao reverendo vigario da Ribeira Brava remeta este [edital] ao reverendo vigario da Serra de Agoa, o qual o registara e remetera ao reverendo vigario de São Vicente; este fará o mesmo e remetera a Ponta Delgada; e assim os mais remettendo cada hum ao seo vizinho athe chegar a São Gonçalo (…)”. Este edital foi entregue na freguesia do Campanário a 24 de Agosto de 1732 e nas costas do documento, está assinalada parte do percurso realizado. Assim, fica-se a saber que o vigário de Machico o viu a 12 de Outubro do mesmo ano, e mandou-o entregar ao pároco de Água de Pena, Francisco de Vasconcelos Meneses, no mesmo dia. O padre Meneses, por seu turno, recebeu-o a 14 de Outubro e voltou a expedi-lo para o pároco de Santa Cruz, que acusou a recepção nesse próprio dia e o reenviou para Gaula, onde chegou a 15 de Outubro. Estes dados permitem avaliar a enorme velocidade a que, tendo em conta as circunstâncias da época, circulava a informação eclesiástica. ADF, cx. 32, doc. 55.

220 Sobre o papel das visitas como mecanismos condicionadores dos comportamentos ver Joaquim

Manuel Ramos de Carvalho, As visitas pastorais e a sociedade do Antigo Regime – Notas para o estudo

de um mecanismo de normalização social, texto policopiado, Coimbra: 1985, pp. 41-47, e “A jurisdição

episcopal sobre leigos em matéria de pecados públicos: as visitas pastorais e o comportamento moral das populações do Antigo Regime”, em Revista Portuguesa de História, tomo XXIV, Coimbra: Instituto de História Económica e Social, 1988, pp. 121-163; Vítor Armando da Silva Simões Alves, “Mecanismos de controlo social da Igreja nas sociedades rurais – o Bispado de Viseu no Antigo Regime”, em Actas das

primeiras Jornadas de História Moderna, vol. II, Lisboa: ed. Centro de História da Universidade de

Lisboa, 1986, pp. 653-665; Joaquim Ramos de Carvalho e José Pedro Paiva, entrada “Visitações”em Carlos Moreira de Azevedo (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, Lisboa: ed. Círculo de Leitores, 2000, vol. IV, pp. 365-370. De sublinhar, aqui, o carácter particular das visitas em Portugal que, fruto das excepcionalmente favoráveis condições em que se deu a recepção dos decretos conciliares, viram a sua esfera de competência alargada muito para além daquilo que acontecia noutros países católicos europeus. Com efeito, enquanto em França, Espanha ou Itália, as visitas incidiam sobretudo em aspectos relacionados com a actuação do clero, com o estado do espaço sagrado ou com o cumprimento dos preceitos religiosos por parte dos fregueses, em Portugal averiguava-se igualmente o comportamento moral dos fiéis, ou, dito de outro modo, fiscalizavam-se os pecados públicos – a embriaguez, o adultério, as curas supersticiosas, por exemplo, o que lhes conferia um redobrado valor enquanto mecanismos condicionadores da vida social das populações. Sobre as circunstâncias da recepção do normativo

97 As visitas pastorais constituíam, eventualmente, o mais poderoso dos mecanismos condicionadores dos comportamentos das populações, na medida em que a sua periodicidade curta - deviam efectivar-se todos os anos, ou, não sendo possível, de dois em dois anos – e um dos tipos de infracções que se propunham rastrear, os pecados públicos, tornavam-nas meios muito eficazes de conhecimento e repressão de quaisquer desvios à norma, tanto por parte dos leigos como dos próprios párocos ou outros clérigos221.

A realização destas visitas, não sendo uma criação do Concílio de Trento, pois já se faziam muito antes dele, foi, porém, grandemente reabilitada por aquela assembleia, que lhes veio conferir um renovado protagonismo, na medida em que as transformou em veículos privilegiados para a fiscalização do cumprimento dos preceitos conciliares enquanto serviam, simultaneamente, o propósito de reforçar a autoridade dos prelados como instrumento de efectivação da reforma222. As visitas podiam ser realizadas

pessoalmente pelo prelado, ou, em caso de indisponibilidade do bispo, por alguém em quem ele confiasse a ponto de lhe delegar aquela a competência.

No caso específico dos arquipélagos da Madeira e Açores, há, ainda, que sublinhar que, no âmbito dos mecanismos de controlo produzidos pela Igreja, se cometia aos vigários insulares a responsabilidade particular de efectuar visitas prospectivas, mensais ou trimestrais, ao território das suas paróquias, a fim de fazerem uma primeira triagem, e uma primeira intervenção correctiva na área do pecado público. Esta intervenção preambular destinava-se, obviamente, a impedir o florescimento de comportamentos condenados, a cortar cerce possíveis efeitos

tridentino em Portugal, ver Marcelo Caetano, “Recepção e execução dos decretos do Concílio de Trento em Portugal”, em Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, nº 19, Lisboa: 1965, pp. 7-87. Sobre a especificidade do caso português ver, por exemplo, José Pedro Paiva, “As visitas pastorais” em Carlos Moreira de Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal…, vol. II, pp. 250-255

221 Joaquim Ramos de Carvalho e José Pedro Paiva, entrada “Visitações”, Dicionário de História

Religiosa de Portugal, vol. IV, p. 366. Em relação à periodicidade de realização das visitas e a fazer fé

em que os registos existentes espelham a restante realidade insular, D. Frei Manuel Coutinho cumpriu escrupulosamente com o determinado, tendo realizado, pessoalmente ou por outrem, visitas todos os dois anos às diversas freguesias do bispado. Esta frequência estava, porém, de modo geral, bastante acima daquilo que eram as médias registadas noutras dioceses do reino. Com efeito, e de acordo com os autores que se têm vindo a citar, (Carvalho e Paiva, op. cit., p. 367) se em Bragança o ritmo visitacional era semelhante ao de D. Frei Manuel Coutinho, já em Coimbra descia para uma média uma visita por cada 2.4 anos, ficando Lamego com 2.7 e Elvas com 3.1. Para o arcebispado de Braga, Franquelim de Neiva Soares também fala de 2 anos, mas nos Açores o ritmo é francamente mais baixo, oscilando entre uma visita a cada 4.5 anos e uma em cada 7.4 anos, conforme as freguesias e as ilhas. Ver Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca de Torre de Moncorvo de 1775 a 1845, Braga: 1981, p. CXIII, gráfico nº 2, e Susana Goulart Costa, Viver e morrer…, p. 77.

222

Sobre a anterioridade das visitas em relação a Trento ver igualmente Joaquim Ramos de Carvalho e José Pedro Paiva, op. cit., p. 365-366.

98 miméticos do pecado e, de algum modo, a facilitar a tarefa episcopal (ou do visitador) em sede de visita. Este fenómeno singular estava, no caso da Madeira, previsto desde muito cedo, pois figurava logo no primeiro texto constitucional publicado em 1585. Com efeito, a constituição 3ª do título 29 das Constituições Sinodais diz, expressamente, que “Os vigairos e curas tenhão cuidado de saberem dos peccados publicos da sua freguesia”, discriminando, de seguida, a lista das infracções a que os presbíteros tinham de estar atentos. Anos depois, em 1601, as Extravagantes voltavam ao assunto, desta vez para estipular que os curas da Sé e vigários da cidade e vilas “no principio de cada mês corrão pessoalmente suas freguesias, e inquirão secretamente dos peccados publicos, e os mais vigarios (…) ao menos de três em três meses (…) se enformem do sobredito pelo milhor modo que poderem”223. A constituição estabelecia que as visitas se

realizassem em Março, Junho, Setembro e Dezembro, e partia do pressuposto que a intervenção do vigário seria o bastante para correcção dos comportamentos. Se esse desígnio falhasse, deviam os párocos, então, informar o bispo ou o provisor, que tomariam as medidas convenientes224.

A confirmação de que este procedimento peculiar era, de facto, seguido no bispado, encontra-se nas Memorias … onde, ao propor-se um balanço da actuação de D. Frei Manuel Coutinho, se refere explicitamente que “os parochos põem em praxe a constituição que os obriga a vizitar cada três mezes as suas freguezias, e informar o prelado dos escândalos que há nellas”225. A situação nos Açores, apesar de

aparentemente não regulamentada nos textos constitucionais, era igualmente a da prática deste tipo de supervisão, segundo consta de uma orientação dada pelo bispo D. Frei Lourenço de Castro que, em 1674, aconselhava os vigários a averiguarem os pecados públicos dos fregueses. Com D. Frei Valério do Sacramento, o assunto

223

Ver Constituições Synodais…, p. 162, e Constituições Extravagantes do Bispado do Funchal, feytas e

ordenadas por D. Luis de Figueiredo Lemos, Bispo do dito Bispado, Lisboa: Impresso por Pedro

Craesbeck, 1601, constituiçãoVI, título VIII, p. 20

224 Constituições Extravagantes…, Constituição 6ª do título VIII, pp. 20-21. 225

ARM, APEF, doc. 270, Memorias dos acontecimentos…, fl. 91. A existência deste mecanismo poderia, eventualmente, ajudar a enquadrar a alçada à Calheta que D. Frei Manuel Coutinho efectuou, muito pouco tempo depois de ter chegado à Ilha, para qual não se encontrou nenhuma explicação documentada. Estar-se-á perante um pároco muito zeloso que se apressou a denunciar ao novo prelado uma série de incorrecções existentes na sua freguesia? Do zelo deste vigário, o Dr. Simão Moniz, dava, de resto, conta a carta de 18 de Janeiro de 1727 que a Câmara Municipal enviou ao rei com queixas do bispo, e na qual o referido pároco era referido como protagonista da interdição de sepultura cristã a um freguês que morrera de queda e andava censurado por não saber doutrina. As características de que se revestira o impedimento, e que tinham passado por obrigar o filho do falecido a passar-lhe uma corda pelo pescoço, arrastá-lo até à praia, metê-lo num barco e lançá-lo em alto mar, são compatíveis com um rigor no

99 assumiu estatuto de instrução pastoral, na medida em que o bispo ordenou aos párocos, que procedessem ao escrutínio do comportamento dos fiéis nas suas freguesias226.

Apesar de, nestes universos insulares, os vigários assumirem responsabilidades visitacionais, isso não os eximia, à semelhança dos seus congéneres do Reino, de serem objecto de escrutínio em sede de visita. Com efeito, o comportamento dos párocos, bem como o grau de eficácia do seu desempenho, tanto no que respeitava aos aspectos mais burocráticos do seu ofício, como no que tocava ao cumprimento das funções de cura de almas, ou, ainda, no que dizia respeito à saúde espiritual das suas ovelhas tinha, também, de ser verificado, e era-o através das visitas pastorais realizadas a todo o bispado227.

O processo visitacional, anunciado com alguma antecedência nas freguesias através do edital de visita, era constituído por duas partes distintas: uma primeira, destinada à inspecção dos aspectos materiais, que implicava a vistoria às instalações da igreja, às alfaias, aos paramentos, aos santos óleos, ao sacrário, a outros objectos de culto e aos livros de registos, e uma segunda que era dedicada aos aspectos espirituais, dentro dos quais se incluía a prospecção dos pecados públicos ou outros delitos que constassem do edital de visita que sempre se difundia por todo o bispado antes da sua realização228. O resultado de todos estes procedimentos era depois registado em livros

próprios, um para as determinações que resultavam da inspecção ao material, denominado livro de visita ou dos provimentos, como se designava na diocese do Funchal, e outros dois para o lado espiritual da operação: o livro da devassa, onde se inscrevia o processo de inquirição de testemunhas dos pecados, e o livro de termos, que continha as admoestações aos culpados ou a recusa dos acusados em assumirem as culpas229. Para além desses e com uma periodicidade mais irregular havia ainda o Rol

entendimento do preceituado que combina com a denúncia ao bispo de outras desconformidades. ARM, CMF, Livro 1346, fl. 66.

226 Ver Susana Goulart Costa, Viver e morrer religiosamente…, p. 235.

227 As visitas pastorais não eram, todavia, o único instrumento de fiscalização do poder episcopal sobre a

actuação dos párocos. Havia mecanismos de denúncia, por exemplo, que podiam precipitar uma investigação, ou devassas particulares que se debruçavam, especialmente sobre o comportamento de um ou outro presbítero. Na Madeira, durante o episcopado de D. Frei Manuel Coutinho, registam-se exemplos das duas situações. Assim, a ilustrar o primeiro caso, aparece a queixa por solicitação apresentada contra o vigário de S. Jorge, e exemplificando o segundo, surge a alçada à Calheta na qual são acusados três padres que acabam por ser presos. Ver ADF, cx. 4, doc. avulso, que contém a denúncia contra o padre, e ARM, CMF, Livro 1346, fl. 62.

228 Joaquim Ramos de Carvalho, As visitas pastorais e a sociedade…, pp. 21-22.

229 Idem, op. cit., pp. 23-27. De notar, contudo, que o autor utiliza a designação de “livros de capítulos”

para designar aquilo que na Madeira costuma ser identificado como “livros de provimentos”, e essa é a razão por que se optou, no texto, por esta última denominação.

100 das Culpas, designação por que, na Madeira, é conhecido o que noutras partes do país se identifica como extractos de culpados, ou livros de extractos, onde se compilavam listas de culpados organizadas a partir de visitas sucessivas, e que permitiam o rastreio da sucessão das ocorrências e o ficar a saber-se as taxas de reincidência, dado importante para o estabelecimento da hierarquia das penas230.

Se se tiver em conta que o desvio, o pecado, o incumprimento são os eixos à volta dos quais giram os mecanismos visitacionais, importaria, talvez, agora, olhar mais de perto para a especificidade do pecado público e para a necessidade imperativa da sua correcção. Sabendo-se que qualquer pecado é uma “voluntaria transgressão da Ley de Deos, contra a boa razão ou dictame de consciência”, conforme disse Bluteau, o pecado público mantinha, obviamente, o carácter de transgressão, mas acrescentava-lhe a característica particular de ser cometido à vista de várias pessoas, o que lhe conferia um peso acrescido na lógica do bom comportamento quer a Igreja esperava de todos231.

Com efeito, e por oposição ao pecado interior, dito interno ou externo oculto, que ficava apenas com quem o cometeu e o ouviu em confissão e era remível com arrependimento e penitência, o pecado público precisava de uma punição exemplar e igualmente pública, pois qualquer outro modo de agir poderia indiciar inimputabilidade