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CAPÍTULO II NOVAS ALTERNATIVAS DE PRODUÇÃO E A EMERGÊNCIA DE

2.1 Processos Pedagógicos e as Transformações da Cultura Camponesa: diferentes pedagogias

2.1.3 A pedagogia da igreja, a partir da teologia da libertação

Entre os camponeses, o espaço da religião (a igreja e a comunidade construída em torno da capela) era também um espaço privilegiado de participação, de exercício de liderança e de práticas coletivas. Era um espaço em que o agricultor podia sair do seu espaço privado, do mundo doméstico e do âmbito de sua propriedade para travar contatos públicos, podendo tornar-se conhecido inclusive fora de sua propriedade (POLI, 1995, 2001).

Por outro lado, é preciso considerar, como já alertei em estudo anterior77, que a fé religiosa era, para os colonos, um apelo forte, quase inquestionável, induzindo fortemente sua adesão aos propósitos colocados neste âmbito.

Ocorre que, a partir do final dos anos 60 e início dos anos 70, a partir do Concílio Vaticano II e dos encontros episcopais de Medelin e Puebla, a Diocese de Chapecó inaugurou uma nova orientação para a sua atuação, assumindo, explicitamente, uma opção preferencial pelos pobres e, assim, renovou profundamente suas práticas pastorais. Orientadas pela Teologia da Libertação, passaram a reinterpretar o significado da evangelização, o papel e o modo de viver a religiosidade e a prática religiosa.

A partir de então, valendo-se de sua profunda inserção junto à população regional, especialmente junto aos pequenos agricultores, passou a difundir uma visão de mundo calcada no igualitarismo, na vida comunitária, na solidariedade e na participação popular. Sua estratégia baseou-se, como em outras partes do país, na criação de Comunidades Eclesiais de Base, Grupos

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de Reflexão e criação de serviços de assessoria e apoio às lutas populares, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Sistema de Assessoria e Informação (SAI)78, e outros.

A evangelização, então, assume a perspectiva de libertação, entendida como a superação de todas as formas de opressão que impedem o homem de ter uma vida em plenitude. ‘A libertação é a ação que liberta, passo a passo, a realidade dos distintos cativeiros, a que está historicamente submetida e que contradiz o projeto histórico de Deus [...].’(BOFF; BOFF apud POLI, 1995, p. 261).

Para a Teologia da Libertação, segundo Galilea (1978), a libertação deveria partir tanto de transformações da consciência, em nível pessoal, quanto de transformações das estruturas sociais. Desse modo, a ação pastoral da igreja passou a preocupar-se e a trabalhar na perspectiva de criar as condições históricas para a transformação das estruturas sociais que, por serem injustas, atentavam contra a vida e contra a dignidade humana. Nesse sentido a igreja (seus setores progressistas) redimensionou o seu próprio papel no mundo. Não se colocando como único locus de construção da libertação, buscou incentivar a construção de outras “ferramentas” e espaços de libertação (movimentos sociais, sindicatos, ONGs, instituições políticas, etc).

Nessa nova perspectiva da igreja, o caminho para a libertação é o caminho da organização e da luta. Por isso, a igreja passou a exortar os seus fiéis no sentido de que, para ser cristão, não bastava construir uma consciência individual, uma fé e uma conduta pessoal moralmente correta. Para ser cristão era preciso estar disposto a contribuir para a construção de um mundo mais humano e mais justo, envolvendo-se nas lutas sociais e políticas desencadeadas para tal.

Por que a Bíblia diz o seguinte... para ser bom cristão, para ter vida eterna, tenho que lutar aqui na terra para que todos tenham uma vida digna. [...] Não dar o que comer, mas ajudar a organizar, para que eles tenham dias melhores.” (LÍDER CAMPONÊS apud POLI, 1995, p. 270).

Novamente fica clara uma nova perspectiva de interpretação do exercício da fé e da prática religiosa. Destaque-se, inclusive, a perspectiva classista, assumida por boa parte do discurso veiculado nesse momento por essa parcela da igreja. Muitos dos seus textos fazem referência explícita à existência de diferentes classes sociais, com interesses antagônicos, muito próxima à abordagem marxista. A própria questão partidária (a necessidade do cristão assumir uma posição partidária, em favor das classes oprimidas) passou a ser colocada, por alguns agentes religiosos, de forma bastante explícita, sendo o partido político colocado como “a grande

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suporte às entidades e movimentos populares.

ferramenta”.

Outro aspecto que aparece de modo bem explícito é a estreita ligação entre o trabalho pastoral, a perspectiva da fé e da construção do reino de Deus, com os problemas do cotidiano e da vida concreta da população. Não havia separação, na prática, segundo a nova perspectiva das pregações, entre construção do reino de Deus e a luta pela melhoria das condições de vida. O exercício da fé, então, deixou de ser um ato meramente abstrato, voltado ao espírito e ao imaterial e passou a ser uma atitude frente à vida concreta e aos problemas cotidianos.

Ficava bem evidente, nesse discurso crítico e nas práticas que ele inspirou, a perspectiva de que só a organização e a luta em torno dos interesses específicos do grupo, a partir de suas necessidades cotidianas, poderia levar à libertação e à transformação das estruturas sociais injustas existentes. Destaque-se, inclusive, o uso recorrente de termos como luta, organização, união, conquista e outros termos afins, tanto nos rituais e celebrações, nos textos e roteiros de orientação das comunidades eclesiais de base, quanto nos cursos de formação de lideranças que se multiplicaram, na região, principalmente nas décadas de 70 e 80.

A perspectiva de organização de coletivos em torno de seus interesses comuns foi algo bastante enfatizado nessa perspectiva de vivência religiosa. Assim, ao que tudo indica, ao engajarem-se em movimentos sociais e outras formas de luta política e de intervenção social, os camponeses o faziam em nome de Deus, em cumprimento ao seu dever sagrado de cristãos.

Nessa perspectiva, para difundir sua nova doutrina, a igreja redimensionou muitos dos seus espaços tradicionais de interação/comunicação (encontro dominical de oração, as celebrações litúrgicas e as suas homilias, dentre outros) e também criou novos espaços (destacam-se principalmente os grupos de reflexão, as pastorais específicas e os cursos de formação de liderança).

No caso da comunidade da capela, a mesma passou a ser vista não apenas como algo restrito aos limites das famílias que a ela pertenciam, ou seja, uma organização voltada às questões internas do grupo que a compunha, mas sim como um grupo organizado, cuja situação e interesses mantêm profundas relações com a sociedade envolvente, sendo a comunidade organizada um ponto de partida para a defesa de tais interesses no jogo político da sociedade como um todo.

Já o encontro de oração realizado aos domingos e dias santos, deixou de ser apenas um local de ritos e rezas repetidas e passou a ser um encontro de celebração realizado de forma articulada com as situações vividas pelos seus participantes. A reza do terço foi substituída pela realização de um culto, que envolvia, a exemplo da missa, um espaço para reflexão. Nesse espaço

os camponeses passaram a ouvir novas interpretações sobre os fatos e temas diversos, freqüentemente ligados aos problemas que enfrentavam no cotidiano.

Dentre os novos espaços comunicativos criados, os grupos de reflexão se destacaram tanto pela sua extensão, já que envolveram praticamente toda a população em questão, como pelo fato de que, no seu interior, além do contato com um discurso crítico, a população teve uma oportunidade ímpar de retomar o exercício da palavra no espaço público, fundamental para a participação e para o exercício de liderança. Exercitando a discussão, a argumentação e a troca de idéias, num espaço que lhes era bastante familiar (um grupo de vizinhos), guiados por por um roteiro de textos e questões fornecidos pela diocese, que falavam de temas do cotidiano e os provocava para uma discussão sobre a realidade e sobre o modo de agir diante dela, os camponeses tiveram aí, uma grande oportunidade de reelaboração de suas concepções e práticas relativas à sua realidade cotidiana.

As pastorais específicas, por sua vez, permitiram uma abordagem mais aprofundada de determinados temas, como a questão da terra, no caso da CPT. Seus encontros, dos quais participavam lideranças comunitárias, encarregadas de multiplicar as discussões em seus espaços específicos de atuação, possibilitavam a realização de estudos sistemáticos e discussões a respeito de temáticas como, por exemplo, a estrutura fundiária brasileira e as razões para a crise da agricultura familiar que vinha sendo enfrentada.

Por fim, os cursos de formação de lideranças (ministros de eucaristia, catequistas, etc), além de uma análise crítica da realidade brasileira, forneciam subsídios para a compreensão do novo modo de intervenção da igreja e dos cristãos, nessa realidade.

Sem dúvida, essa foi uma pedagogia de grande alcance junto à população camponesa da região, tanto pela credibilidade da interlocutora que a propunha, pela profunda ligação de suas temáticas com o cotidiano dos envolvidos, quanto pelas possibilidades de acesso a novos olhares e novos conhecimentos sobre a realidade.

Embora a adesão a essa nova forma de interpretar a vivência religiosa não tenha sido unânime, nem da parte dos agentes religiosos (padres, freiras, ministros, etc), nem entre a população e tenha gerado grandes conflitos e resistências por parte de uma parcela da população, sua presença e difusão, na região, foram muito significativas e teve grande influência no contexto regional, particularmente na elaboração de uma visão crítica desses camponeses frente à realidade e frente às alternativas de modernização propostas pelos agentes do capital industrial e financeiro, bem como para o surgimento e o fortalecimento da percepção da necessidade de construção de

outras práticas, alternativas ao capital, a serem organizadas e conduzidas, de modo autônomo, pelos próprios camponeses.

Muito significativa foi a idéia de que os próprios participantes (os camponeses) é que deveriam dirigir toda e qualquer iniciativa que os representasse no contexto da sociedade civil. Essa idéia parece estar na base da difusão da proposta de autogestão, exercitada com bastante ênfase nos cursos de formação de liderança, nas práticas das comunidades eclesiais de base e nos próprios movimentos sociais que surgiram nesse contexto. A idéia da autogestão é fundamental para a caracterização dos empreendimentos em estudo.

Pelo que pude observar na segunda e terceira parte do trabalho de campo, essa ação pedagógica foi responsável por um dos principais processos educativos vivenciados pelos envolvidos, tendo sido fundamental tanto para o surgimento, quanto para a sua condução.