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CAPÍTULO I ELEMENTOS SOBRE A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO OESTE

1.3 Crise da Agricultura Familiar Tradicional e Resistência Política

Na medida em que as novas condições sociais de produção se faziam perceber de modo mais claro, um conjunto significativo de camponeses revelou disposição e condições para articular uma série de reações de caráter político, na forma de ações coletivas e processos de mobilização e protesto. Inicialmente as ações se limitavam a protestos contra determinadas situações que afetavam negativamente o cotidiano dessa população64. Aos poucos essas manifestações foram ganhando consistência, articuladas por interpretações críticas sobre a realidade, que auxiliaram esses agricultores a perceber e compreender a teia de relações envolvidas em torno dos fatos porque protestavam.

A partir desse processo, no início dos anos 80, pelo menos quatro grandes movimentos sociais surgiram na região: o Movimento dos Sem Terra (MST), o Movimento de mulheres

agricultoras (MMA), o Movimento dos atingidos pelas Barragens (MAB) e o Movimento de Oposições Sindicais. Em todos eles, os estudiosos do assunto destacam a grande capacidade de organização, a força política de suas manifestações, bem como a sua capacidade de extrapolar o espaço local e as reivindicações específicas, transformando-se em verdadeiras frentes de luta política, que influenciaram o cenário político, não apenas local/regional, mas até estadual e nacional. Destaque-se neste sentido, por exemplo, o MST, que ainda hoje marca presença importante no cenário político brasileiro e que teve no Oeste Catarinense um dos seus berços mais importantes. Os outros três movimentos também continuam ativos, diretamente ou através de outros desdobramentos (POLI, 1995).

Esses movimentos, segundo Scherer-Warren (1989), caracterizam um novo sujeito histórico, com uma nova cultura política, que redefine a própria noção de cidadania65, sendo

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Os altos juros bancários, os baixos preços dos produtos agrícolas, etc. Os maiores protestos, contudo, nesses momentos iniciais foram contra as ações do estado e das agroindústrias frente a uma suposta peste que estaria contaminando os suínos e que impediam sua comercialização, o que provocou prejuízos irreversíveis para a suinocultura independente na região, como será descrito no capítulo 2 (item 2.1.4.).

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O conceito de cidadania, desde suas origens mais remotas na democracia grega, sempre esteve ligado a idéia de participação na definição dos rumos da cidade. Comentando esse tema Patrice Canivez assim se expressa:

Para ser cidadão, diz ele [Aristóteles], não basta habitar o território e poder pleitear seu direito diante dos tribunais.Porque os estrangeiros também tem essa possibilidade. O cidadão autêntico (em oposição às mulheres, às crianças e os que são atingidos por atimia – degradação cívica total ou parcial por faltas graves) é quem exerce uma função

fortalecidas novas relações comunitárias vivenciadas no cotidiano dos grupos e, de maneira geral, esses movimentos expressam a luta contra a desigualdade social no meio rural.

Como se pode observar, são diferentes identidades que se aglutinaram em torno de problemas ou carências específicas, todas elas, direta ou indiretamente relacionadas às novas condições de vida experimentadas pelos camponeses, em virtude do processo de modernização da agricultura.

Na perspectiva de análise que adotamos no presente estudo, a possibilidade do surgimento de reações dessa natureza (políticas), em que os sujeitos se colocam em confronto com outros personagens e questionam sobretudo a lógica das alternativas propostas pelas instituições hegemônicas do campo econômico e do estado, só se viabilizou mediante um considerável processo de elaboração e reelaboração das experiências vividas (antigas e novas), a partir do patrimônio cultural, afetivo e moral desses sujeitos, num processo de interação em que atuam tanto os fatores objetivos (terra, capital, possibilidades econômicas, tec), fatores que poderíamos chamar de pedagógico-elucidativos (ação de intelectuais orgânicos, difusão de interpretações críticas sobre a realidade, etc), quanto fatores de ordem subjetiva (valores, costumes, crenças, etc). Conforme observei em estudo anterior (POLI, 1995), a simples existência dos problemas e carências em torno das quais as novas identidades foram construídas (sem-terra, atingidos pelas barragens, etc), por si só, não teriam desencadeado tais processos de reelaboração das experiências, na direção e sentido que tomaram, ao menos de forma tão rápida e

pública: que ele governe, ou que tenha função no tribunal, ou que participe das assembléias do povo. A cidadania é, pois, a participação ativa nos assuntos da Cidade. É o fato de não ser meramente governado, mas também governante. Nesse sentido, a liberdade não consiste apenas em gozar certos direitos; consiste essencialmente no fato de ser [...] ‘co-participante no governo’ (CAVINEZ, 1991, p. 30).

Ao longo da história o conceito de cidadania passou por muitas transformações, mas sempre preservou esse traço da possibilidade de participação política. Em sua versão atual, segundo Marshall (1967) conceito de cidadania é constituído por três elementos: os direitos civis, os direitos sociais e os direitos políticos. No caso específico das lutas políticas dos movimentos sociais envolvendo populações camponesas no Oeste catarinense, a concepção de cidadania foi construída em sintonia com a perspectiva dos novos movimentos sociais, cuja atuação no país, particularmente a partir da década de 80, influenciou o ambiente social e político brasileiro. Baseada na idéia de “direito a ter direitos”, essa concepção de cidadania aponta para a necessidade de

[...] participação direta e indireta dos cidadãos, enquanto sujeitos políticos, não apenas para a solução de seus problemas sentidos, em espaços públicos onde onde as decisões coletivas possam ser cumpridas, mas também para um processo de radicalização democrática, através do desempenho de um papel instituinte, transformador da própria ondem na qual operam” (BAIERLE, 2000, p.192).

Nessa perspectiva, as principais bandeiras dos movimentos sociais em questão, no Oeste catarinense, referem-se à conquista de uma participação política mais efetiva na definição dos rumos do estado (especialmente no que se refere à definição de uma política agrícola voltada ao fortalecimento da agricultura familiar) e à conquista de uma ampliação dos direitos sociais, relacionados ao acesso e permanência na terra e à conquista de um programa de previdência e assistência social.

efetiva. Observe-se, por exemplo, a identidade de “sem-terra”. A existência de camponeses com dificuldade de acesso à terra na região, foi registrada desde o momento em que o processo de colonização se intensificou, momento em que os chamados “caboclos” foram desalojados de seus espaços e forçados a migrar ou a espremer-se nas encostas dos rios e outros lugares íngremes que não interessavam ao empreendimento colonizador. Contudo, naquele momento, este fato não foi suficiente para que a identidade de “sem-terra” fosse elaborada. Para que ela fosse construída foi necessário um processo de reelaboração da experiência de carência de terra, o que só foi possível, no caso em estudo, a partir da existência de processos pedagógico-elucidativos que, através da veiculação de um discurso crítico de interpretação da realidade econômica e, sobretudo, fundiária brasileira, contribuíram para a construção de novas representações frente ao fenômeno.

Esse discurso crítico trouxe elementos, inclusive, para redefinir o próprio significado das experiências vividas na condição anterior (camponesa), antes do processo de modernização da agricultura que agravou as condições de vida desses camponeses. Nesse processo de reelaboração de experiências foi possível aos camponeses problematizar/discutir, inclusive, a lógica que orientou a construção da estrutura fundiária brasileira e tomar contato com outros argumentos sobre as causas dos limites da disponibilidade de terras para a agricultura familiar, mesmo num país de abundantes terras agricultáveis não utilizadas (POLI, 1995).

Na mesma linha, puderam tomar contato e discutir também interpretações críticas a respeito do próprio processo de modernização da agricultura e sua lógica e, com isso, das razões das dificuldades de reprodução da pequena propriedade no novo cenário (ibidem).

Observando essas reações de caráter político, cabe destacar a importância da ação de alguns agentes externos (lideranças e instituições) que atuaram decisivamente junto à população, em prol de sua organização e exortando-a a reagir politicamente à situação. Sua ação ocorreu na perspectiva da ação de intelectuais orgânicos, dotando de consistência e coerência a interpretação da realidade vivida por esses camponeses. Destaque-se, sobretudo, a ação da igreja católica que, gozando de enorme credibilidade junto aos camponeses, contava ainda com a vantagem de estar presente, organicamente, junto a todas as comunidades camponesas, o que facilitava o trabalho de comunicação e articulação da população. Além disso, dispunha de espaços comunicativos/interativos amplamente consolidados, desde longa data, que regularmente contavam com a presença/audiência da quase totalidade da população. A partir de meados da década de setenta, a partir das novas orientações pastorais da igreja, emanadas do Concílio Vaticano II e, a partir delas, das próprias opções de uma parcela considerável do clero Latino Americano, esses espaços passaram a ser ressignificados e redimensionados, produzindo e

difundindo uma nova concepção de igreja e de vivência religiosa, na qual o engajamento sócio- político e o compromisso com a justiça social e a transformação da realidade passaram a ocupar um lugar central. Esse processo será melhor explicitado no item 2.1.3, em que se estará tratando da pedagogia da teologia da libertação.

Essas reações de caráter político também merecem atenção especial no contexto deste trabalho, uma vez que, além de terem sido, como vimos, importantes para a afirmação da identidade da agricultura familiar, foram gestadas no seu interior as principais iniciativas voltadas à criação de alternativas de trabalho e renda de perspectivas solidárias que serão descritas adiante. Ocorre que o modo e a perspectiva de organização observada na constituição de empreendimentos econômicos alternativos, baseados na associação, na autogestão e na sustentabilidade e na solidariedade, no Oeste catarinense, especialmente aqueles ligados à produção agroindustrial (Agroindústrias Familiares Associativas) permite-nos construir a hipótese de que os mesmos fazem parte de um processo de reação política desses agricultores frente às novas condições de vida e de produção geradas pela modernização da agricultura. A afirmação dessa possibilidade se apóia na observação de alguns fenômenos distintos, porém correlatos.

Em primeiro lugar, porque representam uma ruptura em relação às tendências geradas pelos fortes mecanismos de indução (e de reeducação) colocados em movimento pelos agentes do capital industrial e financeiro, interessados em incorporar a região ao seu raio de ação e à sua lógica de produção. Cientes de que só o conseguiriam mediante a adesão e/ou cooperação da população envolvida, tais agentes passaram a operar de modo particularmente intenso, a partir da segunda metade da década de 70, através de mecanismos diversos, que aqui identificamos como diferentes pedagogias, visto que buscavam, verdadeiramente, reeducar a população em questão. Tais mecanismos ou pedagogias, que serão descritos com maior detalhamento no capítulo 2, apontavam (induziam e exerciam diferentes formas de pressão) para algumas atitudes esperadas dos agricultores, dentre as quais se destacam:

A modernização das propriedades e da produção agrícola, com a incorporação do pacote tecnológico trazido pela modernização da agricultura, que previa:

♦ a incorporação de novos insumos de origem industrial (sementes híbridas, defensivos agrícolas, fertilizantes químicos, equipamentos, animais com novos padrões genéticos cientificamente desenvolvidos);

♦ a adesão plena ao processo de produção integrada, incluindo não apenas a realização de contratos de integração mas, principalmente, a obediência às orientações e normas emanadas da empresa;

♦ a modificação de padrões de vida e de produção (padrões de higiene, de alimentação, de lazer, organização e gestão das propriedades e do trabalho, etc), incorporando elementos da racionalidade técnico-científica de organização da produção, propostas pelo processo de modernização da agricultura;

♦ ruptura com o processo de produção tradicional, típico do modelo camponês, recriado no sul do país a partir do processo de imigração, mediante a incorporação de uma nova mentalidade, aberta à modernização constante da produção, à busca incessante de novos padrões de produtividade e o ajuste aos novos conceitos de qualidade dos produtos.

A alternativa do êxodo rural para a parcela da população que, por alguma razão, não estava disposta ou em condições de ingressar na produção agrícola modernizada. Essa população desempenharia um papel importante no processamento industrial dos produtos (matérias primas) produzidos pela agricultura modernizada, em plantas industriais instaladas nas principais cidades da região, principalmente em Chapecó.

Afirmamos que a construção dos EESs é uma reação de caráter político devido ao fato de que os agricultores que se envolveram na organização de tais EESs, têm se destacado, em primeiro lugar, pela negação do processo de integração66 (contra toda a propaganda sobre as vantagens do mesmo) e pela tentativa de preservação de sua autonomia relativa no processo de produção, buscando a construção de um caminho alternativo próprio de participação no mercado. Em segundo lugar, pela negação do padrão tecnológico proposto (conhecido como revolução verde), confrontando-o com os conceitos alternativos de sustentabilidade e agroecologia. Em terceiro lugar, pela tentativa de construção de um novo padrão tecnológico em substituição àquele, desenvolvido em meio a processos de resistência ao novo modelo, em condições bastante precárias e contra toda a lógica do modo de desenvolvimento predominante, exigindo, acima de tudo, uma forte determinação para não retroceder frente às dificuldades (de limites legais, de

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Observe-se que várias famílias que participam da construção de EESs foram integradas à agroindústrias convencionais (especialmente na área de suínos e frangos), tendo construído a agroindústria familiar como alternativa ao processo de integração. Outras continuam sendo integradas à alguma agroindústria. Mas tal condição é

carência de recursos, de falta de suporte técnico-científico, etc). Em quarto lugar, pela tentativa de construção de novas relações de produção, alternativas em relação àquelas experimentadas no contexto econômico predominante.

Observe-se, também que o padrão tradicional de produção agrícola familiar é sim o ponto de partida para a reação desses agricultores familiares, mas não o seu ponto de chegada. Ocorre que os agricultores envolvidos não propõem simplesmente preservar seu antigo padrão tecnológico de produção (o que poderia ser interpretado como uma atitude de inércia), mas, como veremos em detalhes mais adiante, buscam, ativamente, a construção de um padrão tecnológico diferenciado, baseado em afirmações e convicções bem definidas e que mantém relações de ruptura e de continuidades em relação ao seu antigo padrão de produção agrícola familiar. Muitas das alternativas tecnológicas por eles desenvolvidas67 e mesmo muitos dos princípios fundantes das relações de produção68 que são propostas, são recriações efetuadas a partir de padrões tradicionais de produção. Segundo a perspectiva de Thompson, então, poderíamos dizer que existe aqui uma dialética entre continuidade e mudança desses padrões culturais.

elaborada como “um mal necessário” a ser superado com o tempo. Ou seja, mantêm-se, por necessidade, a atividade de integração, mas sonha-se em abandona-la e conquistar autonomia.

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Observe-se, por exemplo, o resgate e melhoramento das sementes crioulas, ou a criação de suínos ao ar livre que será tratado no capítulo 2.

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As relações de cooperação e solidariedade entre vizinhos e integrantes das comunidades, por exemplo, são um traço marcante no padrão cultural dessa população.