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CAPÍTULO I ELEMENTOS SOBRE A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO OESTE

1.1 Crise da Agricultura Familiar Tradicional

Na década de 70, ocorreu, na região, uma clara reversão da tendência do fluxo migratório, fruto do fechamento da fronteira agrícola regional, iniciando-se, a partir de então, uma crise no processo de reprodução dessa agricultura familiar, com múltiplos componentes e desdobramentos, cuja percepção é fundamental para a compreensão do atual processo de desenvolvimento e proliferação de diversas alternativas de produção, inclusive aquelas de caráter associativo.

A partir desse momento, a região Oeste Catarinense, ao invés de atrair passou a perder população, especialmente no meio rural, devido às crescentes dificuldades de reprodução da agricultura familiar, ante as novas condições históricas. O ponto crucial para a compreensão dessa crise que se desencadeou é a relação da agricultura familiar com o capital (comercial, industrial e financeiro), cuja evolução (da relação) se dá em favor de um crescente controle do capital em relação à produção camponesa.

Campos (1987) indica a existência de quatro fases nessa relação entre capital e a agricultura familiar no Oeste Catarinense. A primeira fase, que se estendeu do início da colonização até meados da década de 30, caracterizou-se pela produção de subsistência e

gestação do pequeno capital comercial. Esse período caracterizou-se pelo esforço em torno da viabilização do comércio local e o seu intercâmbio com outras regiões. Esse processo foi facilitado pela experiência anterior dos colonizadores, no Rio Grande do Sul, onde os mesmos já estavam inseridos num processo de produção agrícola mercantil.

A segunda fase, compreendida no período de 1935 a 1945, caracterizou-se pelo

crescimento do capital comercial e sua expansão em busca do excedente camponês. Observou-se, nesse período a expansão da base geográfica de atuação do capital comercial e a suinocultura se afirmou como o principal produto de comercialização. Registrou-se, então a integração de um número maior de famílias ao mercado.

A terceira fase, que se estende de 1945 a 1965 caracterizou-se pelo surgimento do

grande capital agroindustrial e a mercantilização da produção camponesa. Foi o período da efetiva integração de todo o Oeste Catarinense no espaço econômico nacional e da expansão capitalista na região. Concluiu-se, nesse período, o processo de colonização e a pequena produção familiar se afirmou como a base da produção agropecuária . A partir de então iniciou-se uma nova fase onde profundas transformações foram registradas e as relações entre o grande capital com a pequena produção agrícola familiar se intensificaram e se transformaram, com grandes reflexos para esta última.

A quarta fase, que iniciou a partir de 1965, caracterizou-se pelo processo de

monopolização do capital agroindustrial e a modernização seletiva da pequena produção mercantilizada. É um período em que ocorreu a formação dos monopólios do capital agroindustrial que subordinou a agricultura familiar à sua lógica, sem prescindir de sua existência. A partir de então verificou-se um aprofundamento do processo de diferenciação interna na agricultura familiar, com a crescente exclusão de parcelas consideráveis da população regional da agricultura e um processo de crescentes dificuldades de reprodução das unidades familiares, o qual Poli (1995) caracterizou como crise da agricultura familiar tradicional, cujos desdobramentos foram decisivos para o desenvolvimento da situação atual.

A transformação (e crise) da produção agrícola familiar tradicional ocorreu a partir de dois fenômenos diferentes, porém profundamente correlacionados: o processo de modernização

da agricultura brasileira e a transformação da agroindústria regional e de suas relações

com a agricultura familiar.

A modernização da agricultura diz respeito a um fenômeno complexo que ocorreu na esteira de um movimento mundial, pelo qual o capital internacional buscou submeter à lógica industrial o processo de produção agropecuária e que ficou conhecido como “Revolução Verde”. Provocou profundas transformações na produção agrícola, a partir de sua articulação com a própria produção industrial, seja através da utilização de insumos de origem industrial, ou através da sua integração direta a processos de produção industrial, como fornecedora de matéria-prima. Em ambos os casos buscou-se revolucionar o modo de produção agropecuária, tendo em vista não só possibilitar aumentos extraordinários de produtividade, mas também determinar claramente as expectativas de qualidade, de variedade, de volume e de intensidade de produção dos seus produtos.

Esse processo apresenta uma lógica radicalmente oposta em relação ao padrão tradicional de produção agrícola familiar, até então vigente na região, uma vez que se baseia na

mudança e numa busca de transformação permanente do processo produtivo, enquanto aquele se baseia na reprodução de técnicas aprendidas por tradição. A partir disso, quase tudo passou a ser revolucionado e transformado em relação à lógica de produção até então vigente na agricultura familiar tradicional da região em estudo.

A necessidade de busca intensiva de insumos externos, de origem industrial, sem os quais não era mais possível obter sucesso na produção dentro dos novos padrões estabelecidos, destruiu a considerável autonomia dos agricultores existente no modelo anterior. A necessidade de recorrer ao crédito agrícola, condição fundamental para viabilizar investimentos necessários aos novos padrões de produção, além de ser um outro fator de dependência externa das unidades familiares de produção agrícola, acabou sendo a porta de entrada para as mudanças desejadas pelos agentes promotores da modernização da agricultura, já que, desde o princípio, o acesso ao crédito foi condicionado ao atendimento dos novos padrões técnicos de produção. Desse modo, a produção agrícola passou da auto-suficiência (mesmo que relativa), para a dependência do mercado.

Um aspecto que não pode ser ignorado, nesse processo de modernização da agricultura, é a existência de um

[...] esforço de ‘modernização’ não só do processo produtivo, mas do comportamento global do camponês que, em última instância, rompe seu modo de ser histórico, para disciplinar-se para o trabalho sob o capital, quer como futuro proletário, quer como produtor agrícola.” (BELATTO,1985, p. 124).

Um outro aspecto que não pode ser ignorado é a correlação desse processo de modernização da agricultura com o processo de modernização em curso no país, apreendido por Fernandes (1981) como modernização conservadora. Essa correlação pode ser estabelecida tanto no sentido de que, a exemplo do que, como esclarece o autor, é uma modernização que pode ser conduzida em favor da grande propriedade rural, isto é, em benefício das tradicionais classes dominantes agrárias, quanto pelo seu caráter de tutela repressiva que caracterizou esse processo. Isso porque a modificação dos padrões produtivos e culturais se dá mediante a imposição de mudanças, como bem demonstra Belato (1985).

Os efeitos sobre a realidade da produção agrícola familiar foram profundos e as possibilidades de escolha entre participar ou não desse processo de modernização foram, em verdade, limitadas para os agricultores, uma vez que o acentuado aumento da produtividade, passou a exigir novos parâmetros de produção. Assim, aos que não desejavam ou não conseguiam ingressar nessa nova dinâmica produtiva, restava as opções de buscar o assalariamento, na

agricultura ou fora dela, ou então uma redução drástica nos níveis de consumo e a crescente descapitalização.

Em nível regional, foi decisivo um segundo fenômeno, correlato, porém diferenciado, sob muitos aspectos, em relação ao processo de modernização da agricultura como um todo. Trata-se da transformação da agroindústria regional e de suas relações com a agricultura

familiar.

Em seus primeiros anos de existência, a indústria não interferiu na dinâmica interna de produção das unidades familiares de produção agrícola, exceto no sentido de estimular sua expansão, por garantir mercado para os seus produtos, especialmente o milho e os suínos (SILVESTRO, 1995).

Utilizando-nos da periodização construída por Campos (1987), pode-se dizer que essa coexistência entre pequena produção familiar e agroindústria, em que o modo tradicional de produção dos agricultores é preservado, estende-se até meados da década de 60. A partir daí, iniciou-se o processo que ficou conhecido como integração da agricultura familiar à

agroindústria. Inicialmente de modo lento (até meados da década de 70) e depois de modo muito acentuado, a intervenção da agroindústria, juntamente com o paradigma da revolução verde, contribuiu em muito para imprimir um processo de profundas transformações em todo o processo de produção das unidades familiares de produção agrícola do Oeste Catarinense, gerando o que aqui se pode chamar de crise da agricultura familiar tradicional.

Em primeiro lugar, nesse sistema, a empresa integradora define o tipo de produto a ser produzido, as suas especificações de qualidade, o volume de produção (quantidade), bem como o ritmo em que essa produção deve ocorrer, incluindo-se aí a definição das datas de entrega e retirada dos animais nas propriedades. Ao agricultor familiar cabe apenas a execução das tarefas relativas ao manejo e cuidado dos animais, estas também claramente definidas pela assistência técnica da empresa.

Em segundo lugar, nesse sistema, a empresa detém o monopólio de fornecimento dos insumos necessários à produção, sendo expressamente proibido ao agricultor recorrer a qualquer insumo não proveniente da empresa, bem como utilizar os insumos fornecidos pela mesma para outra finalidade que não a produção integrada. Belatto (1985) chama a atenção inclusive para o fato de que, a definição, tanto do custo dos insumos fornecidos ao agricultor, quanto do preço a ser pago pelo produto por ele produzido (frangos ou suínos), cabe exclusivamente à empresa. O agricultor não possui, segundo o autor, nenhum controle sobre a composição de tais valores.

Em terceiro lugar, a empresa detém e fornece toda a tecnologia, tanto no que diz respeito à genética dos animais, ao tipo de equipamento e instalações a serem empregadas na produção, quanto no que diz respeito a alimentação e manejo dos animais durante o processo de produção.

Observa-se, assim, que o processo de produção da matéria prima nas propriedades reduziu-se a uma etapa do processo de produção industrial, o qual se inicia antes da chegada dos animais nas propriedades (pesquisa genética, produção dos leitões e pintos de um dia entregues nas propriedades, além de todo o processo de elaboração e produção das rações e outros insumos necessários à produção) e prossegue após a entrega dos animais prontos à empresa pelo agricultor (abate e processamento industrial da carne). Vê-se, assim, que a participação dos agricultores familiares se dá num momento específico e bem determinado do processo, o qual ocorre sob total controle e determinação da empresa integradora.

Essas transformações modificaram profundamente o padrão de produção da agricultura familiar, rompendo-se as condições que lhe permitiam a auto-reprodução, fazendo-a a mergulhar numa profunda crise.

[...] o próprio saber do agricultor passa a ser questionado como não sendo mais suficiente para explorar a atividade nestes novos patamares impostos. Um novo conhecimento trazido pelos técnicos das empresas e da própria extensão pública passa a ser colocado como necessário ao novo processo de criação, e exigido também, para atingir os níveis de produtividade exigidos. Esta nova dinâmica imprimida pela agroindústria, traz implicações no funcionamento interno da pequena propriedade. De simples relacionamento comercial, as relações entre a pequena produção e a agroindústria evoluíram a nível de interferência dos grandes frigoríficos no processo produtivo das unidades familiares. (SILVESTRO, 1995, p. 130)

Assim, nesse ambiente, o saber “tradicional” do agricultor vai aos poucos sendo suplantado por um conhecimento mais “racional e técnico” e o modo tradicional de produzir dá lugar a um processo de produção que se orienta a partir de fora das unidades familiares de produção agrícola, guiado em seus objetivos e formas pela dinâmica de produção industrial, orientada para o produtivismo, para a inovação e para a maximização do lucro.

O que se observou a partir de então foi a intensificação do processo de diferenciação interna entre as unidades de produção agrícola familiar, a seletividade crescente das unidades a serem incluídas na dinâmica da produção agroindustrial modernizada e a concentração da produção (especialmente da produção animal) num número menor de unidades produtivas, o que provocou profundos desdobramentos na organização social, econômica e política da região.

O que se observa, segundo Silvestro (1995, p. 127-8) é que

[...] a agroindústria, não destruindo completamente o caráter ‘camponês’ da propriedade, faz uma reelaboração da ‘cultura do colono’, inserindo nela elementos ‘modernos’

(crédito, aperfeiçoamento técnico, especialização da produção, administração racional, etc), de modo que se falseiam a dominação e seus efeitos.