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CAPÍTULO II NOVAS ALTERNATIVAS DE PRODUÇÃO E A EMERGÊNCIA DE

2.1 Processos Pedagógicos e as Transformações da Cultura Camponesa: diferentes pedagogias

2.1.1 A pedagogia da extensão rural

A incorporação de novos padrões tecnológicos e de organização da produção, fundamentais à implementação do processo de modernização da agricultura, e de novas atitudes relativas à organização da vida no interior da unidade familiar, teve, sem dúvida, a contribuição decisiva do processo de extensão rural.

Segundo Belatto (1985), aliado ao processo de pesquisa, esse foi um dos mecanismos prioritários de ação do grande capital (industrial e financeiro) para criar as condições de viabilização da revolução verde em todo o mundo.

A partir da década de 50, devido ao interesse do capital pela produção agrícola como um todo e pela capacidade que a agricultura tem de absorver capital, mais do que apenas difundir novas tecnologias, a preocupação passou a ser a organização da vida dos camponeses como um todo, incluindo aí as práticas de higiene, a organização do espaço doméstico, a alimentação, o cuidado com a saúde, etc.

Os centros internacionais (de pesquisa) nascem [...] de uma vasta estratégia do imperialismo para dar conta e para organizar em profundidade e extensão sua ação em nível mundial e para incorporar ao capital regiões e povos que estavam praticamente fora do seu alcance. Os centros nasceram com claros objetivos políticos, isto é, mediante a intervenção na agricultura, objetiva-se a transformação econômica e social do tipo capitalista evitando, dessa forma, que as massas rurais possam enveredar por caminhos revolucionários de transformação. (BELATTO, 1985, p. 50).

Merece destaque o fato, indicado por praticamente todos os estudiosos do tema, de que todos os órgãos de extensão (e também de pesquisa) insistem em enfatizar a sua natureza técnica, neutra e apolítica. Toda a abordagem é feita em nome da necessidade do aperfeiçoamento técnico, cuja importância independe das posições político ideológica de quem está no exercício do poder. Belatto (1985, p. 13) afirma que “[...] é exatamente o apoliticismo e a neutralidade seu caráter explicitamente político, sua estratégia política.”

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Extensão rural designa processos educativos praticados por diferentes agentes (geralmente públicos) voltados a difundir novos conhecimentos, valores e práticas no meio rural. A idéia de “estender”, no sentido de levar conhecimentos para populações e regiões distantes está na base desse conceito. No processo de modernização agrícola, a extensão foi fundamental para a difusão dos novos pacotes tecnológicos e novas formas de organização da produção no meio rural. Por essa razão, surgiram em nível nacional e em muitos estados, empresas públicas especializaram-se no processo de extensão rural.

Essa característica, tão enfatizada, parece estar na base do sucesso dos referidos programas e na sua continuidade administrativa e financeira ao longo do tempo, livre das interrupções típicas do mundo da política72, com seus abalos e sua instabilidade.

Segundo Renk (2000), embora seu caráter aclassista e apartidário tenha motivado inúmeras críticas, não se pode menosprezar o trabalho de extensão rural, que se expandiu a partir dos anos 60.

Imbuída de caráter civilizador, levou informações que resultaram na adoção de novas práticas no mundo rural, tais como, novos cultivos, noções de puericultura, de horticultura, de economia doméstica e de higiene. Essa última, direta ou indiretamente influenciou para diminuir doenças causadas por falta de saneamento básico; com a adoção de fossas sépticas, “poços negros” para a coleta de dejetos e que, posteriormente, alteraram hábitos dos colonos (ibidem, p. 307-308).

Destaca ainda a transmissão de padrões educativos importantes, como as práticas de preservação do solo (curvas de nível e construção de patamares para evitar a erosão), como também do estímulo ao associativismo, o qual repercutiu na construção de novos parâmetros de organização da produção. Este aspecto merece uma ênfase especial, do ponto de vista do tema da presente pesquisa, já que a iniciativa das agências de extensão rural de Santa Catarina, no estímulo ao trabalho associativo para a produção no meio rural, através dos condomínios suinícolas, foi a primeira experiência de associação em nível da produção entre os camponeses do Oeste Catarinense, como será demonstrado com mais detalhe no Capítulo 4 (item 4.2.1.). Isso indica que essas atividades extensionistas também contribuíram para a difusão da idéia de produção associada (também chamada de agricultura de grupo), no Oeste Catarinense.

Em termos de estratégia, os programas de extensão utilizaram uma gama considerável de alternativas, incluindo, clubes de juventude, projetos de nutrição e saúde, exposições ou demonstrações comunitárias, boletins técnicos e programas de rádio para difundir inovações, novas práticas domésticas e agrícolas. Destaque-se também que, devido a dificuldade de atingir, diretamente o conjunto dos camponeses, os programas recorreram muito ao “efeito- demonstração”, isto é, atividades desenvolvidas em algumas áreas selecionadas dentro dos municípios, envolvendo lideranças comunitárias que, uma vez cooptadas, tornavam-se elementos de ligação entre os agentes da extensão e os camponeses (ibidem).

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Apesar disso, essa orientação nem sempre foi seguida à risca pelos extensionistas, em seu trabalho de campo. Como destaca Bach (2001), alguns deles, ligados às empresas oficiais de extensão, atuaram claramente na organização política dos camponeses na defesa dos seus interesses, o que acabou gerando fortes reações dos setores mais conservadores e comprometidos com o modelo de desenvolvimento dominante.

Uma atenção especial merece o programa dos Clubes 4-S, uma vez que se voltou à educação dos agricultores jovens, ainda em processo de formação e, por isso, supostamente mais abertos às novas perspectivas da proposta de modernização da agricultura e ao cultivo de novos hábitos de vida. Segundo Renk (2000, p. 308):

OS Clubes 4-S, de inspiração norte-americana, tinham como emblema um trevo de quatro folhas com a letra S: saber-aprender a fazer fazendo e ganhando, aprender como agir para conseguir os direitos que lhes cabem como cidadãos; sentir- olhar a vida com otimismo e realismo; o trabalho como contribuição para o desenvolvimento da comunidade e da pátria, buscando o bem estar próprio e dos seus semelhantes; servir – esquecer sua pessoa para dedicar-se à família comum, fazer seus os problemas da família, do grupo e da comunidade; saúde – higiene, alimentação, hábitos saudáveis, momentos delazer para um corpo e uma mente sãos.

Pode-se observar que se trata de uma abordagem educativa que engloba os diversos aspectos da vida dos jovens camponeses e tem como perspectiva, abrir novos horizontes de vida, rompendo com muitas práticas tradicionais. Ocorre que não se pode ignorar a força da tradição dos camponeses, educados desde o berço, à reprodução das práticas dos pais e avós, o que impunha forte resistência às propostas de modernização da agricultura, bem como de mudanças de hábitos de vida (saúde, higiene, alimentação, lazer, relações pessoais, etc). São freqüentes os registros de queixas dos extensionistas sobre a resistência ou teimosia dos camponeses que se negavam a adotar as novas práticas propostas. Nesse sentido os Clubes 4-S demonstraram preocupação com as novas gerações de camponeses, ainda em processo de formação. No interior dessas agremiações, além de cursos e palestras sobre as novas técnicas de produção e das lavouras experimentais desenvolvidas nas comunidades, os jovens tinham oportunidades de realizar muitas viagens para conhecer experiências de modernização bem sucedidas em outras regiões, de modo a criar uma predisposição para a inovação das práticas produtivas.

Ainda segundo Renk (2000), os objetivos dos Clubes 4-S envolviam um extenso rol de questões, como o desenvolvimento: do espírito associativo, da competição sadia; integral da personalidade, preparação para a vida em família, em comunidade e em relação à pátria, da capacidade de liderança, senso de responsabilidade e iniciativa; de hábitos mais saudáveis de vida; da independência econômica, da cidadania, do civismo e do amor a pátria. Como se pode observar, suas preocupações mantinham uma grande proximidade com as novas perspectivas trazidas pela modernização agrícola, fornecendo novos parâmetros de interpretação da realidade e novos horizontes de vida e produção aos jovens camponeses.

Do ponto de vista da produção, em linhas gerais, pode-se dizer que o conteúdo discursivo dos programas de extensão está voltado à difusão de uma mentalidade que se poderia

denominar de produtivista, voltada ao aumento da produtividade agrícola, mediante a incorporação intensiva de insumos industriais (SILVESTRO,1995).

Do ponto de vista do tema em estudo, como será abordado no capítulo 5, a extensão rural, especialmente através dos clubes 4Ss, foi responsável pelo desenvolvimento, entre esses agricultores familiares, da noção da possibilidade e necessidade da implementação de melhorias no processo de produção agrícola, mediante o controle dos diversos fatores de produção (composição e correção do solo, distribuição e variedade das sementes, práticas de manejo, etc), o que foi fundamental para a superação do caráter cíclico e repetitivo da produção agrícola tradicional.

Alemany (1988 apud SILVESTRO, 1995), dividiu a trajetória da extensão rural no Brasil em três grandes períodos, de acordo com as perspectivas das propostas de assistência técnica que difundiram, quanto aos objetivos buscados, quanto ao publico priorizado e ainda quanto à metodologia e propostas de ação. O primeiro momento caracterizou-se por um projeto “educacional extensionista”, desenvolvido durante as duas primeiras décadas de existência (1948- 1968). Seu objetivo era

[...] levar às famílias rurais, em especial aos pequenos agricultores, a conquista do desenvolvimento econômico e social. Para isto era necessário difundir técnicas modernas, desenvolver a agricultura e o homem que nela trabalha, fazer com que os agricultores modifiquem os seus métodos tradicionais de trabalho. Estava aqui colocada a idéia de “modernização” em contraposição ao “atraso” (SILVESTRO, 1995, p. 178).

O segundo período que se desenvolveu entre o final da década de 60 e o início dos anos 80, foi marcado por uma atuação voltada para a transferência de tecnologia, baseado num pacote tecnológico. A ênfase do período esteve mais na assistência técnica à agricultura e menos no projeto educacional extensionista que caracterizou o momento anterior. “É a vez das monoculturas e da especialização, do incremento da utilização das máquinas e dos insumos modernos, sustentado pelo crédito rural subsidiado pelo estado” (ibidem, p. 179).

O terceiro momento, que teve início nos anos 80, foi marcado pela necessidade de [...] um novo “padrão de desenvolvimento tecnológico” para a agricultura, baseado no “uso alternativo e racional de insumos energéticos e importados”, uma vez que a extensão havia perdido o seu principal instrumento de trabalho (crédito). Este novo enfoque teria que incorporar também as questões ambientais e econômicas que apontavam para uma nova estratégia interna à propriedade, de diversificação da produção, abandonando, ao menos ao nível de pequeno produtor, o paradigma da monocultura (ibidem, p. 179).

Nesse período, as dificuldades enfrentadas em nível do crédito obrigaram a uma atenção maior para o uso racional dos recursos, o que acabou por induzir a entrada em cena das

preocupações com a gestão e com o gerenciamento correto dos recursos existentes. Em Santa Catarina, particularmente, o projeto denominado “projeto gestão e administração rural” ganhou muito espaço e se transformou num dos principais programas da extensão.

Esta proposta prega a modernização através da gestão eficiente dos recursos, ‘uma agricultura moderna demanda um alto nível de gerenciamento. [...] O sucesso de uma propriedade não está apenas em função da adoção de tecnologias modernas, mas, sobretudo em função de uma boa ou má administração. (ibidem, p. 180).

A repercussão dessa proposta foi muito grande, sendo incorporada também por outras instituições do ramo (cooperativas, ONGs, etc). Elas passam a adotar o discurso modernizante, da eficiência, a partir da necessidade de administração racional dos recursos disponíveis na propriedade (ibidem). Mesmo discordando de muitos dos conceitos de gestão e de modernização propostos pela extensão rural e trabalhando na construção de um novo modelo tecnológico e organizativo para a agricultura familiar, a própria APACO, ao que tudo indica, valeu-se da ampla difusão da idéia de eficiência e da necessidade de uma administração racional dos recursos existentes, no seu trabalho junto aos agricultores.

Atualmente, pelo que se pôde levantar no trabalho de campo73, uma nova ênfase está direcionando o trabalho de extensão: a ênfase na agregação de valor74. A idéia básica trabalhada nesse momento é de que a viabilização da agricultura familiar, ante as novas condições do mercado, dar-se-á pela permanência por um período mais prolongado do agricultor na cadeia produtiva, superando sua condição de mero fornecedor de matérias primas para a indústria, através da transformação dos seus produtos.

A partir dessa definição, o trabalho tem-se voltado ao estímulo aos processos de agroindustrialização e de venda direta de mercadorias ao consumidor. Esse fato é muito significativo do ponto de vista da compreensão do surgimento de um grande número de iniciativas de agroindustrialização, a partir de indústrias de pequeno porte, cuja base de organização e produção são as próprias unidades de produção agrícola familiar. Destaque-se aqui

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Entrevistas realizadas com técnicos da EPAGRI, bem como consulta a boletins técnicos e jornais informativos por eles fornecidos.

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Através de um programa denominado AGREGAR, que visa,principalmente, a qualificação e melhoria dos empreendimentos já existentes e não a criação/fomento de novos empreendimentos. A assessoria prestada através do programa envolve desde o contato com os agricultores que já possuem alguma iniciativa para discutir a possibilidade/viabilidade de sua melhoria, o envio dos envolvidos para o processo de capacitação no Centro de Treinamento de Chapecó – CETREC – (vinculado à EPAGRI – Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), até o suporte em áreas específicas como os projetos de engenharia (civil) para implantação das instalações do empreendimento e a assessoria dos engenheiros de alimento no que se refere à elaboração dos produtos. Após a implantação/melhoria do empreendimento, a assessoria ocorre de modo contínuo com visitas, sugestões, críticas, apoio, etc.

também a importância estratégica do trabalho de capacitação técnico-profissional dos agricultores, realizado nos centros de treinamento da EPAGRI. Praticamente todo o know-how necessário à viabilização das agroindústrias familiares tem sido transferido pela EPAGRI, através dos centros de treinamento. Ilustra essa afirmação o fato de que, em todos os oito empreendimentos pesquisados no segundo momento do trabalho de campo, a tecnologia de processamento da carne suína foi obtida através de cursos e treinamentos promovidos pela EPAGRI.

Um último aspecto a destacar é que em todas as atividades e extensão, pelo menos no primeiro e, especialmente, no segundo período, as atividades de educação se fizeram acompanhar da disseminação do crédito rural subsidiado e supervisionado.

A forma concreta, o fio condutor da intervenção e que se faz acompanhar da atividade de educação é a disseminação do crédito rural. Não se trata do crédito em si, mas do crédito supervisionado, isto é, da penetração do capital financeiro em condições de transformar a produção e subordinar o camponês à sua lógica, transformando profundamente a produção camponesa. A ação do capital financeiro requer a modificação completa da rotina do trabalho e da vida do camponês. Este é o espaço criado para a extensão enquanto ação educativa. (BELATTO, 1985, p. 15).

Pela via do crédito, elemento fundamental para a viabilização das mudanças requeridas na produção, o capital financeiro passou, então, a ter condições de interferir diretamente nas condições de produção, subordinando o camponês à sua lógica e transformando profundamente a produção camponesa, impondo uma modificação completa nas rotinas de trabalho e da vida do camponês como condição necessária ao acesso ao crédito. Por essa via, as ações de cunho propriamente educativo passaram a ser efetivamente demandadas pelo capital financeiro e receberam um reforço de caráter coercitivo que torna mais efetiva a sua implementação. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que, junto com a pedagogia da extensão rural é preciso incluir a pedagogia dos agentes financeiros, os quais, sem dúvida, pelos meios propiciados pela dependência do camponês ao crédito, puderam difundir, com muita eficácia, um discurso fortemente voltado ao produtivismo, à modernização agrícola e a transformação da vida do campesinato como um todo.

A supervisão e orientação para cada família que obtém empréstimo abrangem problemas gerais da agricultura e do lar, assim como adesão aos melhoramentos planejados e ao uso programado dos fundos de empréstimo. Assim o agricultor recebe instruções pessoais sobre como melhorar suas práticas agrícolas, enquanto a família é ensinada a fazer melhoramentos no lar e na vida familiar[...].

Os camponeses selecionados para receber crédito são intensamente “educados” para se adaptarem às novas condições e, ao mesmo tempo, funcionam como “modelos”, neste sentido é importante que participem e outros projetos [...] como aulas, demonstrações, reuniões de grupos e serviços educacionais semelhantes. (ibidem, p. 17).

Observa-se, assim que o acesso ao crédito funcionou como um poderoso mecanismo pedagógico da extensão rural, do que se conclui que, grande parte da difusão da ideologia da modernização agrícola na região deu-se através das atividades de extensão rural aliada ao fornecimento de crédito subsidiado e supervisionado. Bach (2001) chega a afirmar que tanto a extensão rural como a pesquisa agropecuária se constituíram em processos auxiliares na aplicação do Crédito Rural, principal instrumento de política na transferência dos pacotes tecnológicos da revolução verde. Essa mesma posição é compartilhada por Leite (1999), que destaca que o crédito rural marcou profundamente a conjuntura do setor desde o final dos anos 60 até o início dos anos 80.

Dos elementos levantados, percebe-se que essa pedagogia teve considerável repercussão entre os agricultores familiares da região, tanto no sentido de abrir caminhos à modernização da agricultura, no sentido convencional, quanto na construção de alternativas à mesma, mediante a reelaboração de suas propostas e práticas. Assim é que importantes noções relativas à gestão agrícola, às práticas de higiene e alimentação e, especialmente, à melhoria de processos produtivos, fundamentais ao desenvolvimento dos empreendimentos em estudo, puderam ser construídos pelos agricultores envolvidos, mediante a reelaboração de conceitos difundidos pela extensão rural.