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Vários estudiosos dos referenciais bakhtinianos (GERALDI, 2003, 2013; AMORIM, 2003, 2004; FREITAS, 2002) assinalam que as obras de Mikhail Bakhtin (1895-1975) têm sido utilizadas em áreas diferentes e apresentadas com leituras variadas. Formado em História e Filologia, Bakhtin, geralmente, é mais lembrado como um teórico da literatura ou um crítico literário, mas seus textos são utilizados em vários outros campos de estudos, inclusive no educacional. Cabe observar que, em seus últimos anos de vida, quando perguntado, ele se definiu como um “filósofo, mais que filólogo. Filósofo. E assim permaneci até hoje. Sou um filósofo. Sou um pensador” (BAKHTIN; DUVAKIN, 2008, p. 45).

Nessa abrangência da apropriação de seus textos, os encontros com sua obra impulsionam a abordagem, não apenas dos campos da literatura ou da linguagem, mas também da educação e de vários outros aspectos da vida. Nesse quadro, evidenciam-se indagações sobre a autoria de algumas de suas obras, assinadas por seus discípulos e colegas, e emerge uma disputa sobre o uso de suas ideias. Sobre essa disputa, na especificidade da relação de Bakhtin com a educação, Geraldi (2013, p. 12) afirma:

Bakhtin nada escreveu sobre o assunto [educação escolar], mas isto não autoriza dizer que nada teria dito aos educadores, ainda que tenha sido um deles. É porque escreveu o que escreveu que podemos dizer que Bakhtin

8 Como produção derivada deste tópico, temos um artigo submetido (aguardando avaliação): NOVAIS, R. M. M. C.; CÔCO, V. Interlocuções com conceitos bakhtinianos na produção acadêmica sobre formação continuada de professores na educação infantil.

disse tudo que disse também aos educadores, que muito podem dizer a partir de suas reflexões e das reflexões de seu círculo.

Nessa perspectiva, compreendemos que o conteúdo de sua obra nos autoriza a pensar, a partir dela, a educação e as relações que nela estão contidas. Abordar a educação com Bakhtin é, entre outras coisas, considerar as relações com o outro, estabelecidas com uma intencionalidade que ultrapassa o momento presente. Segundo Bakhtin (1997, p. 253), “o passado determina o presente de um modo criador, e juntamente com o presente, dá dimensão ao futuro que ele predetermina”. Portanto, a educação numa perspectiva bakhtiniana abarca uma memória de futuro. Educar é projetar para o outro e com o outro, é produzir uma memória daquilo que pode vir a ser. Assim, o conceito de memória de futuro nos ajuda a compreender que “é do futuro que tiramos os valores com que qualificamos a ação do presente e com que estamos sempre revisitando e recompreendendo o passado” (GERALDI, 2003, p. 45).

Com isso, conforme já assinalamos, compreendemos as relações que se estabelecem entre os sujeitos envolvidos num processo educativo como ancoradas no tempo e no espaço, marcadas pelo passado e orientadas pela memória do que ainda não foi vivido, mas que se faz presente nas escolhas do agora. Desse modo,

[...] o passado criador deve revelar-se necessário e produtivo nas condições específicas de uma localidade, como uma humanização criadora dessa localidade, que transforma uma parcela do espaço terrestre num lugar histórico de vida para o homem, num espaço histórico do mundo (BAKHTIN, 1997, p. 253, grifos do autor).

Especialmente quando se lida com a infância, a compreensão de cada encontro como único é fundamental no reconhecimento da singularidade das relações, considerando os diferentes sujeitos envolvidos, bem como os distintos espaços e tempos em que essas relações são constituídas. Com este entendimento amplo de educação, entendemos que a formação de professores pode se constituir como um espaço de construção dessa compreensão, mais especificamente, a formação continuada de professores pode constituir-se num espaço privilegiado de produção de reflexões sobre o trabalho docente com as crianças pequenas.

Nesse sentido, a obra bakhtiniana apresenta uma riqueza conceitual e reflexiva, compondo convites a um olhar para si, no encontro com o outro, chamando a

responsabilidade para, em múltiplos movimentos, integrar a cadeia dialógica, que reúne muitos dizeres. Nesse sentido, cabe lembrar que:

Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos (BAKHTIN, 1997, p. 313-314, grifos do autor).

Com esse conceitual, destacamos a importância de conceber a formação continuada para professores da infância, considerando o outro e sua palavra. Assim, compreender que essa formação consiste, portanto, nessa busca por palavras alheias que, no encontro com nossas palavras, movimenta, não sem tensionamentos, o curso das ações.

Compreendendo a interação verbal como espaço de constituição do sujeito e cientes de que a concepção de sujeito de uma determinada perspectiva teórica, de certo modo, define a maneira como a pesquisa se orienta, os conceitos bakhtinianos, especialmente os conceitos de dialogismo e de excedente de visão, dão sustentação ao modo como conduzimos as discussões no e sobre o encontro com o outro.

Assim, o encontro com o outro é tomado como o espaço de constituição da pesquisa e, consequentemente, como o espaço de produção de conhecimento. Não há fórmulas que possam padronizar esse encontro, tendo em vista a impossibilidade de um pautar o outro e prever sua atuação. Nesse sentido, destacamos a importância da compreensão de que “é preciso que as ciências humanas rompam com a produção de conhecimento fabricado segundo um padrão, optando por um caminho que denuncie a repetição mecânica de certos procedimentos teórico-metodológicos” (FREITAS; SOUZA; KRAMER, 2003, p. 7).

Nessa perspectiva, compreendemos que não nos cabe, no desenvolvimento de pesquisa em educação, particularmente nas pesquisas que tematizam a formação continuada, criar modelos de formação ou validar modelos já existentes como proposição para que sejam replicados, seguidos ou reproduzidos. Sua principal finalidade seria a de produzir conhecimento sobre a formação continuada com os sujeitos que vivenciam esse processo, a fim de que esse conhecimento possa, de algum modo, contribuir para a criação de outras possibilidades no encontro com o outro. Nessa perspectiva de produção de conhecimento, consideramos que:

O saber teórico, instituído academicamente, precisa interagir com as concepções construídas no cotidiano das relações sociais, possibilitando uma permanente troca entre visões de mundo que se expressam através de registros de linguagem ou de gêneros discursivos distintos (FREITAS; SOUZA; KRAMER, 2003, p. 7-8).

A produção de conhecimento sobre os sujeitos, no caso, os sujeitos da formação continuada, não pode se dar apartada dele ou a despeito dele. O conhecimento se produz no encontro com os sujeitos, e é nessa relação que se justifica a pesquisa em educação.

Esse contexto de reconhecimento das vozes distintas presente nas pesquisas em ciências humanas não desobriga o pesquisador de um trabalho rigoroso de análise, mas dá a oportunidade de que a diversidade possa tornar-se um elemento constituinte do pensamento (AMORIM, 2003). Essa diversidade, presente em qualquer encontro, só pode se tornar parte constituinte do pensamento num contexto dialógico, em que os sujeitos do encontro se permitem mudar pela interação com o outro.

É desse modo que compreendemos o encontro com o outro na pesquisa em educação. Essa compreensão também se apresenta no contexto da formação continuada, aqui concebida como um espaço fundamentalmente dialógico. É o que aprofundaremos no próximo tópico.