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5 FORMAÇÃO CONTINUADA: O QUE NARRAM AS PROFESSORAS SOBRE

5.5 PERSPECTIVA ATUAL ACERCA DO VIVIDO

Neste eixo, abordamos os enunciados que contêm um esforço dos sujeitos em lançar um olhar analítico sobre suas memórias de formação continuada para, com uma perspectiva atual, atribuírem seus próprios sentidos à formação coletiva, vivenciada ao longo do tempo. Desse modo, ao organizarem a narrativa de suas experiências, os sujeitos fazem-no numa articulação com o tempo, o tempo dos acontecimentos e o tempo em que a própria narrativa se produz. Segundo Delory-Momberger (2016, p.136, grifo da autora),

[...] o indivíduo humano vive cada instante de sua vida como o momento de uma história: história de um instante, história de uma hora, de um dia, história de uma vida. Algo começar, se desenrola, chega ao fim, em uma sucessão, uma acumulação, uma sobreposição indefinida de episódios e de peripécias, de provações e de experiências.

Essas distintas histórias são inscritas no tempo, conforme os sentidos que o sujeito atribui a cada uma delas, conectando-as ou não, relacionando-as ou não, num processo sucessivo, porém não linear, de constituição da própria história.

O exercício de narrar essas experiências, de certo modo, impulsiona o sujeito à elaboração desses sentidos. Assim, a “narrativa não é então apenas o produto de um

ato de narrar, ela tem também um poder de efetivação sobre o que ele narra”

(DELORY-MOMBERGER, 2016, p. 141, grifos da autora), como podemos ver na narrativa da professora Jurandina, ao falar de sua participação na formação continuada, ao longo do tempo.

Ela serviu como um olhar diferenciado para educação, porque até então se eu pegar antes de iniciar, porque já são 14 anos de formação não é, eu comecei desde o início e eu era muito tradicionalista, eu tive a oportunidade de participar e ter uma visão diferente da educação. A gente vai mudando, é difícil você mudar, eu mudei bastante, nem tanto né?! [risos] Estou em processo... A gente vai se moldando, eu vou procurando acompanhar. É um olhar diferenciado que você passa a ter para tudo dentro da escola, para os seus alunos, para a forma de planejar, então isso [a formação] me ajudou muito (Jurandina, P, 2017).

À medida em que elabora sua narrativa, Jurandina também elabora ou reelabora, repensa ou reitera os sentidos a respeito de seu processo formativo. Nesse mote, em uma articulação com o pensamento de Bakhtin (1997, p. 123), reforçamos a potência da narrativa na significação da vida, na relação com o tempo, uma vez que “Vivo —

penso, sinto, ajo — dentro da sequência de sentido da minha vida e não dentro do todo temporal potencialmente acabado de minha presença no mundo.”

No Livro de Memórias da Formação (2011), temos exemplos de narrativas produzidas num diálogo explícito com o exercício de lembrar e produzir sentidos acerca do vivido. Apesar de não haver uma linearidade temporal, há uma tentativa de lembrar e produzir sentidos sobre a vivência de um ano de formação (2011), como lemos na página do livro:

Imagem 7 - Reprodução de página do Livro de Memórias da formação

Fonte: Acervo fotográfico próprio.

Não é a dimensão temporal, presente na narrativa, que dá forma ao vivido, mas sim os sentidos que o sujeito produz, como vemos também nas narrativas que seguem:

Eu enxergo o antes e o agora como uma ampliação de olhar, né, como se eu estivesse vivendo num ambiente bem fechado e que a formação tivesse me dado a oportunidade de enxergar o horizonte, não só enquanto formadora, mas também analisando a atuação, as práticas que existem na escola hoje, em detrimento do que existia há algum tempo. . Eu me recordo de falas assim, em algumas situações: “Nossa, mas isso é impossível!” Um exemplo foi a proposta de realizar a leitura diária com as crianças do berçário ao 2º período. “Isso é impossível! Você acha que bebê vai ouvir?” E hoje eu vejo imagens ricas e maravilhosas de professoras que conseguem ler, contar histórias

todos os dias numa sala de berçário e envolver as crianças [...]. Olhando lá atrás, há tão pouco tempo, isso parecia algo impossível. Então, a diferença para mim está na palavra acreditar. Meu olhar ampliou porque eu consigo acreditar que as crianças são capazes de fazer coisas hoje que, há algum tempo, nós não acreditávamos que pudessem acontecer (Dauza, F, 2017). Os encontros que eu fui participando foram enriquecedores para minha sala de aula. Eu pude crescer no meu trabalho, ter outras perspectivas na relação professor-aluno. Com o passar do tempo, teve muita mudança e a formação me ajudou no planejamento e na busca do novo (Lizeti, P, 2017).

Para Dauza e Lizeti, são os sentidos dados às vivências na formação continuada, vinculada à atuação docente, que organizam a sequência do tempo, um tempo real, vivido e marcado por vozes distintas e em disputa, que se apresentam como parte da vida, pois denotam movimento, num processo contínuo e dialógico de mudança. Quando se trata do outro, Bakhtin (1997, p. 124-125) destaca o poder das fronteiras temporais na organização da vida:

O outro é mais ultimamente ligado ao tempo (não se trata, claro, do tempo regulado pela matemática e pelas ciências exatas, o que nos levaria de volta a outra generalidade sobre o homem), ele está por inteiro inserido no tempo, assim como se alojava por inteiro no espaço. Na vivência que posso ter dele, nada virá perturbar a continuidade temporal de sua existência. Quanto a mim, não estou por inteiro no tempo, e “minha maior parte”, de um modo intuitivo, evidente, vivo-a fora do tempo: uma base imediata me é dada no sentido. Não vivo a temporalidade da minha vida, e essa temporalidade não é o princípio diretivo do ato prático mais elementar [...]. A vida do outro, concreto e determinado, organizo-a no tempo (quando, claro, não abstraio seu ato ou seu pensamento), não num tempo cronológico ou matemático, mas num tempo mensurável em termos de valores e de emoção, um tempo que pode alcançar um ritmo-música. Minha unidade é uma unidade de sentido [...], a unidade do Outro é uma unidade espácio-temporal.

Nesse conceitual, o outro se apresenta indispensável na produção de sentidos do sujeito para suas próprias experiências, constituindo-se como referência por sua vinculação ao tempo e ao espaço, num acabamento possível de ser avistado. Assim, segundo Delory-Momberger (2016, p.136, grifos da autora), “a pesquisa biográfica se diferencia de outras correntes de pesquisa por ela introduzir a dimensão do tempo, e mais especificamente a temporalidade biográfica em sua abordagem dos processos de construção individual”. A temporalidade biográfica, à qual a autora se refere, é uma “dimensão constitutiva da experiência humana, por meio da qual os homens dão forma ao que vivem” (DELORY-MOMBERGER, 2016, p. 136). Essa forma singular é dada por cada um, no ato de narrar as experiências vividas, na grafia da própria vida. Como observamos nas narrativas já apresentadas e nas narrativas que seguem:

Bem, eu estou na rede desde 2006 [...] e desde então eu sempre participei das formações. E esse ano eu tive a experiência de dar a formação [...]. A experiência como formadora é de tentar passar o máximo para as professoras do que funciona, do que dá certo, né, tem uma relevância muito grande a formação. Porque aí você está igual se fosse uma roda, né, passando e ao mesmo tempo aprendendo junto com as experiências relatadas durante a formação. É muito importante! (Geralda, P, 2017).

Cada ano parece que, tanto os formadores como a gente, a gente vai amadurecendo. Então, as experiências vão nos auxiliando cada vez mais (Lourdes, P, 2017).

Em suas narrativas, as aprendizagens da formação estão vinculadas à grafia da vida. Com isso, particularmente no campo da formação continuada, marcamos a singularidade do sujeito na produção de sentidos acerca do vivido e o reconhecimento da importância do outro, na produção dos próprios sentidos, sinalizando para a dialogia presente no modo biográfico de produzir conhecimento “[...] a partir das vozes dos atores sobre uma vida singular, vidas plurais ou vidas profissionais, no particular e no geral, através da tomada da palavra como estatuto da singularidade, da subjetividade e dos contextos dos sujeitos” (SOUZA, 2006, p. 27).

Assim, no reconhecimento das diferentes vozes como estatuto de singularidade, ainda na busca do olhar que tenta compreender as vivências com olhos do tempo da vida, trazemos o enunciado da professora Beatriz Luz.

E o berçário era o maior desafio. A gente ouvia algumas falas, né, “No berçário a gente só troca menino, a gente só faz correr atrás de criança o dia todo”. E, agora, eu tive a oportunidade de ver o berçário ouvindo histórias, indo buscar livros no acervo literário... Então, o olhar que a gente tem hoje é bem diferente do olhar que a gente tinha no passado (Beatriz Luz, F, 2017).

Em sua análise e avaliação, Beatriz Luz consegue destacar que a mudança está não apenas nas práticas docentes, mas, principalmente, em suas perspectivas, ou seja, a mudança não está apenas no modo como os professores atuam, mas também no modo como olham para as crianças. Assim, na abordagem do itinerário vivenciado, o que se apresenta como importante na atualidade está relacionado à identificação de uma mudança de perspectiva, que reverbera numa real mudança na atuação docente e no reconhecimento da relação dessa mudança com a participação do professor na formação continuada.

Com essas reflexões, avançamos para o eixo seguinte, em que abordamos a articulação entre vida e formação.