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INTERLOCUÇÕES COM A FORMAÇÃO CONTINUADA: REFERENCIAIS

Neste tópico, desenvolvemos uma discussão acerca da compreensão de sujeito segundo Bakhtin, em articulação com o contexto da formação continuada de professores, vinculada aos propósitos de abordagem dos sujeitos da pesquisa. Para tanto, ainda que nossa pesquisa tenha como interlocutoras algumas professoras envolvidas no projeto de formação continuada (formadoras e participantes), circunscrevemos, nesta discussão, professores, formadores e demais profissionais que atuam na Educação Infantil.

Com nosso referencial, há que se considerar a existência e a ressonância das vozes de muitos outros, sujeitos e instituições, interessados e implicados nos processos de formação continuada dos professores, assim como os pesquisadores, os sistemas de educação, as famílias e as crianças. Essas últimas não podem ser desconsideradas nesse contexto, uma vez que, apesar de não participarem do processo de formação continuada, fazem-se presentes a todo tempo, por meio das concepções de infância e de criança que sustentam esse processo. Ainda que essa discussão não seja feita sempre de maneira explícita, a concepção de criança permeia as teorias e as práticas educativas que, em geral, são propostas e/ou discutidas nos cursos de formação. A escolha desse conceitual dimensiona a formação continuada e reverbera nas práticas educativas que se efetivam, influenciando, inclusive, no modo como as relações entre crianças e adultos serão constituídas.

Com Bakhtin (1997), compreendemos que o sujeito se constitui na relação com o outro, na interação verbal. Partindo dessa premissa, o professor e demais educadores envolvidos em processos de formação continuada são concebidos como interlocutores que, de seu lugar único e singular, têm algo a dizer e, portanto, devem ser considerados, ouvidos e respondidos.

A compreensão do sujeito como ser social implica, especificamente, levar em conta sua necessidade de encontrar-se com o outro, de estar com, de conviver. Ainda que o encontro com o outro se dê de modo virtual, como temos testemunhado nos últimos tempos, é com o outro e seus enunciados que o sujeito se constitui. Essa concepção confere à língua uma importância ímpar na formação humana, pois:

A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua. O enunciado situa-se no cruzamento excepcionalmente importante de uma problemática (BAKHTIN, 1997, p. 282).

Nesse conceitual, língua e vida se entrecruzam tornando-se indissociáveis a partir do momento em que as palavras dão forma a um enunciado. A enunciação marca uma posição do sujeito e o introduz numa cadeia dialógica de produção de sentidos que dão origem a outros enunciados.

Da mesma maneira, os enunciados marcam a vida dos sujeitos, constituindo-os, modificando-os, numa constante interação com os enunciados de outros sujeitos. Esse movimento dialógico circunscreve a importância do outro na constituição do sujeito e evidencia a singularidade de cada sujeito partícipe dessa cadeia dialógica. E essa “singularidade única não pode ser pensada, mas somente vivida de modo participativo” (BAKHTIN, 2012, p. 58). É estando com o outro, no convívio com aquele que não sou eu, que o que me é único e singular poderá ser percebido.

O encontro entre pares, promovido pelos processos de formação continuada, pode dar aos sujeitos a oportunidade de ver no outro aquilo que por ele não é percebido, e “esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo” (BAKHTIN, 1997, p. 43). Do mesmo modo, o outro também tem a meu respeito um excedente de visão, e esse conhecimento, num ambiente de troca, de partilha, de diálogo, pode ser mobilizador de novos conhecimentos.

O sujeito, para Bakhtin, é constituído pelo outro por meio da linguagem, num processo vivo e contínuo de produção de sentidos. Nessa compreensão, não há um sujeito anterior à enunciação, uma vez que o sujeito se constitui em meio à interação com o outro. Desse modo, a importância do outro é fundamental na constituição do sujeito, pois:

Os outros, para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez, um pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o locutor espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa. Todo enunciado se elabora como que para ir ao encontro dessa resposta (BAKHTIN, 1997, p. 314).

O sujeito se constitui em meio a esse diálogo, numa cadeia sem fim de produção de sentidos, à espera de respostas para seus enunciados que, por sua vez, foram elaborados em resposta a outros enunciados produzidos anteriormente. Com essa assertiva, entendemos o sujeito da formação continuada como constituído de modo dialógico, a todo tempo produzindo sentidos sobre o discurso do outro e compondo seu próprio discurso. Então, em nossa pesquisa, interessam-nos os enunciados desses sujeitos que apresentam os sentidos por eles produzidos acerca de suas vivências, articuladas ao projeto de formação continuada da rede municipal, para compreender as singularidades da vivência da formação. Singularidades de sujeitos que atuam na Educação Infantil, que reiteramos como um contexto complexo, marcado por sua especificidade e por contínuas transformações, que reverberam na formação e profissionalização dos professores. Segundo Côco (2010, p. 4),

Na expansão dos processos de institucionalização da infância, observa-se o fortalecimento do caráter educativo da EI com a inserção nos sistemas de ensino. Delineia-se um campo de trabalho, acompanhado da necessidade de profissionalização e formação dos educadores [...].

Tais necessidades estão intimamente relacionadas e se vinculam a uma necessidade de valorização desses profissionais uma vez que “[...] a escola não é vista apenas como um lugar de aprendizagem, mas também como um lugar de vida” (NÓVOA, 2002, p. 34). É na instituição escolar que as diferentes vidas se encontram para viver uma outra vida, uma vida coletiva em que os sujeitos estão inevitavelmente imbricados, mas não deixam de guardar suas singularidades. Com essa perspectiva, pensar uma formação continuada que se dá ao mesmo tempo do acontecimento da vida na escola só faz sentido se a essa vida estiver vinculada. Assim, recuperamos a assertiva de Bakhtin (2010, p. 117) de que:

Uma filosofia da vida só pode ser uma filosofia moral. Só se pode compreender a vida como evento, e não como ser-dado. Separada da responsabilidade, a vida não pode ter uma filosofia; ela seria, por princípio, fortuita e privada de fundamentos.

Não é fortuito o encontro que buscamos. Buscamos no evento da vida – vida do professor, vida do formador, vida do pesquisador – a responsabilidade de elaborar respostas e, principalmente, de levantar outras perguntas. Assim, intencionamos, no encontro com os sujeitos, construir “uma pesquisa que em nome do rigor epistemológico não se esvazie nem da curiosidade eticamente comprometida, nem

da aventura humana e social de decifrar e intervir na vida como um exercício de prazer” (LINHARES, 2001, p. 27).

Ao assumirmos a intervenção na vida também como intenção não pretendemos, como já dissemos, propor modelos ou máximas da elaboração de formação continuada. Pelo contrário, foi a dúvida a respeito dos modelos que nos moveu a perguntar. O que assumimos aqui é que nosso encontro com o outro não se deu de modo neutro, mas sim com a intenção de instar o outro a refletir sobre o vivido e, do mesmo modo, permitir que ele movimentasse nossos modos de compreensão.

Com esta pesquisa, convidamos nossos pares, que também se constituem no outro de nós, a contar-nos uma história por todos nós vivenciada, em tempos diferentes e com os mais diversos sentidos, reconhecendo o movimento de lembrar e de narrar, com diferentes perspectivas. Vivências que podem nos trazer, no tempo presente, novas aprendizagens e novos sentidos sobre o que passou. Para Delgado (2010, p. 17),

História, tempo e memória são processos interligados. Todavia, o tempo da memória ultrapassa o tempo da vida individual e encontra-se com o tempo da História, visto que se nutre, por exemplo, de lembranças de família, músicas, filmes, tradições, histórias escutadas e registradas. A memória ativa é um recurso importante para transmissão de experiências consolidadas ao longo de diferentes temporalidades.

Nesta pesquisa, vamos ao encontro dos sujeitos e de sua memória ativa, apostando no processo de rememorar e de narrar suas memórias, como uma possibilidade de troca de vivências. Ainda que tenhamos como foco rememorar o processo de formação continuada circunscrito a um tempo e espaço, dentro desse conjunto coexistirão memórias de diferentes temporalidades, significadas por sujeitos com olhares singulares, oriundos de espaços distintos.

Reafirmamos a vinculação da pesquisa e da formação continuada com o evento da vida e, nessa vinculação, reconhecemos o contexto temporal e espacial no qual se dará o encontro com outro. Nesse encontro dialógico, propomo-nos a adentrar na cadeia de comunicação verbal, considerando nossos enunciados como elos dessa cadeia e reconhecendo neles as ressonâncias dialógicas dos enunciados anteriores (BAKHTIN, 1997).

Buscamos, nesse processo de compreensão do campo, produzir conhecimento que contribua para a criação de novos elos na cadeia dialógica, inserindo-nos no contexto da formação continuada na Educação Infantil. Reiteramos o reconhecimento dos professores como principais sujeitos de sua formação e, no cuidado de considerá-los em sua singularidade marcada pelo tempo e espaço em que vivem, em nossa pesquisa, apostamos em:

[...] encontros com sujeitos e seus projetos que se respaldam na experiência vivida, elaborada e compartilhada. Só nutrindo-nos como sujeitos pedagógicos, produziremos teorias e práticas pedagógicas com interligações múltiplas como entre aquelas que prenunciam-se como pontes vivas entre o discurso acadêmico e as práticas escolares, entre a escola e a sociedade (LINHARES, 2001, p. 30-31).

Desse modo, reafirmamos a formação continuada como possibilidade de composição de um espaço dialógico e polifônico de encontro com o outro e seu enunciado, reconhecendo sua vinculação direta com perspectiva de ressignificação dos fazeres docentes por meio da troca entre sujeitos. De todo modo, precisamos também considerar as dificuldades que vêm assolando os espaços da formação, de modo a ponderar, na nossa pesquisa, os desafios vivenciados. Enfim, valorizando os espaços de dizer, especialmente no movimento de produzir conjuntamente um projeto de ação (situado no campo da formação continuada na Educação Infantil), não podemos desconsiderar a emergência de silenciamentos e de estratégias de fazer calar. Assim sendo, passamos para o próximo tópico, no qual apresentamos mais detidamente o delineamento metodológico de nossa proposta de pesquisa.