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A prática reflexiva da mudança a partir de referenciais concretos

5 CANTOS E BATUQUES: ESQUENTANDO OS TAMBORINS

5.2 A HISTÓRIA DO SAMBA COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO

5.2.1 A prática reflexiva da mudança a partir de referenciais concretos

Ao afirmar que a mudança é possível a partir de referenciais concretos, se quer identificar na prática que as coisas são mutáveis, desde um simples objeto como a construção de instrumentos, a partir de uma matéria bruta da natureza, como a mudança da própria vida das pessoas e, em consequência disso, numa perspectiva mais ampla a própria estrutura social vigente. A este respeito, Freire (2000, p.44) questiona: “Se é possível mudar o mundo que não fizemos, o da natureza, por que não mudar o mundo que fazemos, o da cultura, o da história, o da política?”.

Esta problematização foi fundamental, pois gerou o debate em torno de questões cotidianas, que foram sendo facilmente assimiladas pelo grupo de jovens. Assim, optou-se pela construção do ganzá que é um instrumento musical de percussão utilizado no samba e, também, em outros ritmos brasileiros. O ganzá é executado por agitação, é um tipo de chocalho, que pode ser feito de um tubo de metal ou plástico em formato cilíndrico, ou de bambu, preenchido com areia, grãos de cereais. Neste caso, eles foram construidos a partir da umbaúba (madeira oca típica de regiões quentes). Utilizou-se sementes de feijão, arroz, milho e pequenas pedras para poder diferenciar os tipos de som que elas produzem.

É importante ressaltar que o cuidado em não utilizar objetos cortantes ou pontiagudos foi seguido, sempre atento às normas de segurança do espaço. Os materiais usados foram: a umbaúba, sementes, pedrinhas, cola de madeira e isopor para fechar as extremidades. Para o acabamento, utilizou-se fitas adesivas coloridas, tinta de tecido, e um pirógrafo para escrever na madeira. Segue abaixo as fotos do processo de construção.

Figura 4 - Umbaúba, sementes e pedras para a construção do ganzá. Fonte: Elaboração própria.

Figura 5 - Ganzás prontos, pintados e estilizados. Fonte: Elaboração própria.

A atividade durou dois dias; logo após feitos os instrumentos, foram trabalhados esteticamente e gravadas mensagens de amor e afeição para as namoradas e mães. O que chamou a atenção foram as três mensagens pirografadas nos ganzás:

Amor só o de mãe Só Deus pode me julgar

O que adianta o homem ganhar o mundo e perder sua alma

Notam-se, nas frases registradas pelos jovens nos instrumentos construídos, mensagens voltadas para a fé, como podem ser vistas nas frases acima citadas. Foi o jovem Compositor que pirografou as frases acima nos instrumentos a pedido dos próprios colegas, por ter mais facilidade e habilidade com este trabalho manual.

A frase amor só o de mãe foi criação do jovem Pandeiro, e as duas frases seguintes foram criações do jovem Compositor; as outras mensagens eram para as namoradas dizendo que as amavam, ou para as mães demonstrando o mesmo sentimento de amor. Na última frase, o que adianta o homem ganhar o mundo e perder sua alma, o jovem afirmou que não adianta ter as coisas, se referindo a bens materiais se não se está com o coração puro para Jesus. A fé foi recorrente em vários momentos, isso pode ter ocorrido devido à participação deles num grupo que prega a palavra de Deus. Este grupo é formado por alguns funcionários da CASE/SSA, que na hora do almoço fazem seus estudos bíblicos.

Ao final da oficina, por meio da entrevista semiestruturada, foi feita uma pergunta individualmente para os jovens, a partir dos conteúdos trabalhados: A história do samba nos diz que ele saiu da marginalidade e da discriminação para chegar a ser o símbolo nacional que é hoje. Também transformamos uma madeira bruta em um instrumento musical, o ganzá. A partir disso, você acredita na transformação das pessoas? E que tipo de transformação você espera em sua vida? As respostas foram as seguintes:

As pessoas podem mudar, todo mundo também erra. E pode ter certeza que minha vida, daqui para fora, minha vida vai mudar muito, porque minha filha nasceu e eu não pude ver ela nascer. (Surdo).

Acredito sim, só basta querer. A pessoa poder se transformar em algo bom e ruim. E se mudando para o bem agente pode se sentir gente boa. Quero mudar para ajudar minha família, porque ela me ajudou muito. Quero estudar e ter uma profissão, e continuar a profissão de padeiro. (Vocalista).

Acredito e muito! Eu tô acreditando na minha, que eu já estou me transformando, eu fumava direto, parei de fumar, de xingar, parei para respeitar as pessoas. Hoje eu me sinto uma pessoa diferente, estou procurando seguir o caminho de Jesus. (Compositor).

As pessoas podem mudar sim, e buscar oportunidades a partir do que cada um sabe fazer de melhor, e a transformação pode acontecer com o estudo também. (Repique).

Sim acredito, quero mudar de vida e seguir a minha vida, estudar e trabalhar, quero ser cirurgião ou padeiro. (Tamborim).

Sim, Mudança do jeito de agir. (Ganzá).

Sim, Quero melhorar nos estudos e pode aprender muitas coisas que não sabia. (Pandeiro).

Acredito sim. Ter uma vida diferente e ter uma profissão e minha própria oficina de automóveis. (Atabaque).

O que se pode observar é que nos exemplos que partiram da história de transformação do samba marginal em símbolo nacional, e da atividade prática da construção de ganzá, o grupo enxerga um caminho possível para a mudança, e que a princípio esta mudança começa pelos seus próprios atos, vendo na educação um caminho para esta transformação, sendo que “mudar é difícil, mas é possível”, como defende Freire (2000 p.44).

Vários foram os apontamentos que os jovens fizeram sobre as possibilidades de transformação: a força de vontade no desejo pela mudança; o estudo como uma das possibilidades; a profissão como um caminho possível; o desenvolvimento das

particularidades de cada indivíduo, também, foi apontado como uma alternativa na modificação e superação da condição dada a eles no momento.

A fala do jovem Surdo me chamou a atenção, pois deste o inicio das atividades ele falava de sua filha que estava para nascer. Neste momento, em que ele foi questionado sobre transformação, o que mais o motiva é o fato de justamente não poder ter visto o nascimento da filha que havia acontecido naquela semana, e que de agora em diante ele quer estar o mais próximo possível dela, sendo este o incentivo para iniciar o processo de mudança em sua vida.

Outro importante aspecto a favor da transformação foi ter uma profissão como uma alternativa identificada nas falas de Atabaque, Tamborim e Vocalista, o primeiro escolhendo a profissão de mecânico de automóveis, com o objetivo de ser proprietário de sua própria oficina, tendo como referencial o seu pai que é mecânico. Já o jovem Tamborim aponta duas possibilidades de profissão que ele quer seguir: a profissão de cirurgião que é um de seus sonhos de infância, e a profissão de padeiro pelo curso profissionalizante que participa na CASE/SSA. Ao mesmo tempo em que ele ressalta seu sonho de ser cirurgião, assume também a vontade de se tornar padeiro. Nota-se, portanto, dentre as duas possibilidade apontadas, o ideal de ser médico, distante, pelas dificuldades relacionadas às condições socioeconômicas, porém não impossíveis, e o real por estar mais próximo, ao menos neste momento, que é o oficio de padeiro pelo curso oferecido na unidade, o que também é recorrente na fala do Vocalista.

Pandeiro, Tamborim e Repique enxergam no estudo e na aquisição do conhecimento um caminho para mudarem suas vidas, principalmente com relação ao aspecto financeiro. Para Compositor e Ganzá um dos caminhos é começar na mudança das atitudes. O primeiro jovem aponta que já iniciou sua mudança a partir de seus atos, parou de fumar, parou de xingar, e, segundo ele, começou a respeitar as pessoas. A fala do segundo jovem quando diz mudança no jeito de agir, aparentemente, vai ao encontro do pensamento de um ajuste social, o qual é defendido pela classe opressora, que é mudar para se justar ao sistema desigual e opressor, que algumas pessoas chamam de ressocialização.

Importante ressaltar que as falas acima mencionadas, principalmente aquelas que ressaltam a importância dos estudos, da aquisição de conhecimento e de ter uma profissão, apontam para a necessidade de uma formação dentro da unidade de internação que ofereça condições reais a estes jovens, que ao saírem da socioeducação sigam seus desejos de mudança respaldados pelo conhecimento que vai desde estar alfabetizado até ter uma profissão almejada. E que, desta forma, tenham uma formação que não os restrinja apenas às funções operacionais como mão de obra para dar aporte à classe hegemônica, como alerta

Gramsci (1989), mas, sim, com condições igualitárias para que este jovem possa construir sua vida fora dos atos infracionais.

Para tanto, Costa (2001) defende que um caminho é “concebemos o homem como ser capaz de se assumir como sujeito da sua história e da História, agente de transformação de si e do mundo, fonte de iniciativa, liberdade e compromisso nos planos pessoal e social.” (p.27). Assim sendo, precisamos começar a exigir, enquanto sociedade, que não se negue mais os direitos básicos e fundamentais das crianças e jovens ao acesso à educação, saúde, lazer e alimentação para que mais tarde ele não necessite estar dentro dos muros do sistema de internação.

Dando continuidade à oficina, lançou-se mão de outro elemento do samba que foram as letras das canções, como uma alternativa de projetar uma fala de quem, na maioria das vezes, não é visto e percebido, quanto menos ouvido.