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II. 2 “Tempo de acções e não de palavras!”: Lusotropicalismo e Ação Psicossocial

III.2 Havia guerra em Luanda?

III.2.2 A Luanda do asfalto

III.2.4.1 A presença do militar na capital

“Desejo muito que a tua acção honre de todas as maneiras Portugal e que voltes à tua terra orgulhoso por uma conduta em terras de além mar e para com as suas gentes que será sempre firme mas generosa, energética mas fraternal”374.

Outra consequência que a guerra trouxe a Luanda foi a presença do Exército nos subúrbios, seja através de patrulhas do Comando Militar em rondas pelos musseques, seja devido ao número de soldados de folga, vindo das zonas de guerrilha para Luanda. A partir do início da guerra, não só o contingente militar na capital aumentou, mas também a sua autoridade, o que não deixou de gerar conflitos375. Segundo dados apresentados por Bender,

374 Manuel Dias BELCHIOR. “Conselhos aos soldados de África”. Documento encaminhado pelo Gabinete dos

Negócios Políticos para a Agência Geral do Ultramar, em maio de 1962, com o parecer de que não havia obstáculos para a publicação do mesmo, aconselhando apenas a substituição de alguns termos, quais sejam:

indígena, raça negra e negros. Esses conselhos seriam parte da Ação Psicossocial. MU/GM/GNP/060/Pt.1.

Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino.

375 Logo em 11 de fevereiro de 1961, o Governador Geral decidiu que as forças militarizadas de Luanda, para

fins operacionais, ficariam sujeitas ao comando militar. Destarte, “a PSP, a Guarda Fiscal e as forças administrativas de Luanda ficarão desde hoje para os efeitos referidos sujeitas ao Comando Militar”. Ver: Correspondência do GNP para o secretário Adjunto da Defesa Nacional. 11 de Fevereiro de 1961. MU/GM/GNP/052/Pt.1. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.

O foco deste trabalho estará nos conflitos que este aumento de efetivos e de autoridade gerou nas relações entre os militares e a população suburbana. No entanto, é necessário frisar que este conflito aparece também, com frequência, na própria relação entre agentes da ordem. Não é incomum que haja confrontos entre militares e guardas da PSP, por exemplo. A alteração das relações de forças que se seguiu ao 4 de Fevereiro acentuou a

no início de 1961 os efetivos do exército português em Angola giravam em torno dos oito mil homens – dentre os quais de dois a três mil eram europeus enquanto cinco mil eram africanos, sendo que, destes últimos, nenhum estava no posto de oficial. Após o primeiro ano da guerra, havia já cinquenta mil homens no exército376.

Através da documentação referente ao plano da Ação Psicossocial, é possível perceber a insistência do papel do militar nos planos de conquista do coração dos africanos, o que pode também ser verificado no pequeno trecho recortado dos Conselhos aos soldados de África, cuja ênfase assentava na criação de laços afetivos entre os soldados e as populações nativas. A presença do militar nos jornais, como vimos, contribuía para construir uma visão heroica daqueles que lutavam em e por Angola enquanto parte da nação portuguesa. No jornal A

Província de Angola, em maio de 1973, encontra-se a mesma perspectiva na fala do

Comandante Chefe das Forças Armadas, ao afirmar que:

“Mas o militar no Ultramar não é apenas o portador ou o servente de uma arma com a qual a determinadas alturas faz fogo. É também um factor de promoção social, um elo da cadeia de esforços que vem sendo feitos no sentido de se melhorar as condições de vida e as possibilidades futuras da população com que contactaram”377. No que se refere à historiografia sobre Angola, já se escreveu sobre a violência dos militares com relação às populações atingidas pela guerrilha, assim como sobre as retaliações do Exército no distrito de Malanje, onde se deu a revolta da Baixa do Cassanje, e no norte após o levante de 15 de Março. Em Luanda, por sua vez, os militares também nem sempre exibiram o comportamento que se esperaria de um fator de promoção social, e o Bairro Operário tornou-se, entre 1965 e 1971, o espaço por excelência no qual eles extravasavam as suas energias.

Segundo a DGS378, em documento de dezembro de 1971, o elevado índice de prostituição no Bairro Operário atraía esses homens, que passavam meses a lutar nas matas. Isto aliado ao consumo excessivo do álcool seriam, aos olhos da polícia política, as causas dos inúmeros casos de agressão registrados envolvendo militares na área. Essas desordens, por sua vez, criariam “um ambiente contrário à moral e aos bons costumes, mas que não deixa de

disputa por poder entre as próprias autoridades. E se isso não será trabalhado aqui, não poderia, ao menos, deixar de ser mencionado.

376 Gerald BENDER. Op.cit., p. 262.

377 Província de Angola. Ano XLIX. Número 15.001. Luanda: 07 de Maio de 1972, p. 04. Hemeroteca Municipal

de Lisboa.

378 Em novembro de 1969, a PIDE foi substituída pela Direção Geral de Segurança, mantendo, no entanto, não só

ser, mais ou menos, próprio de tais localidades”379. Dessa forma, o diretor provincial da

DGS, que redige tal documento, atribui as atitudes dos militares ao meio, de modo a quase inocentá-los pelos seus atos. Voltemos no tempo, contudo, para identificar os fatores que o levaram a chegar a essa conclusão.

Já desde 1965, e nos anos que se seguem, aparecem nos arquivos da polícia secreta inúmeras explosões de granadas no Bairro Operário, que, ao serem investigadas, foram atiradas pelos próprios militares. A título de exemplo, recorto aqui um caso ocorrido em 26 de dezembro de 1966, e relatado pelo agente da PIDE Tiago dos Santos. Segundo ele, ao chegar ao local minutos depois do incidente, já lá havia grande número de pessoas que comentavam o ocorrido.

“Soube, então, que a referida granada tinha sido lançada por um grupo de 3 militares, do Exército, dos quais um era 1º cabo e que fora dirigida a um grupo de indivíduos que ali se encontrava, não sendo ninguém atingido, em virtude do fraco alcance do atirador. Soube ainda que, do grupo, houve quem tentasse perseguir os militares em questão, mas que logo se detiveram ao serem ameaçados com novas granadas”380.

A posse de materiais de guerra, frequentemente utilizados contra as populações suburbanas, vinha acompanhada de ameaças que tornavam instáveis as vidas dos moradores do bairro. Em 24 de outubro de 1967, por exemplo, outro agente, de nome Paulo, afirma que já há vários dias, “militares em grupos mais ou menos numerosos, assaltam e agridem

indivíduos, arrombam casas, danificam bens e ameaçam os moradores, especialmente as mulheres”381. Escreve ainda que militares invadiram uma residência, na qual despiram a

moradora e “puseram-na a correr”. Atiraram uma granada no quintal de uma casa que, por ter caído dentro de uma celha com água, não chegou a explodir. Ameaçaram ainda uma família que vivia no Bairro Operário, prometendo estourar em sua residência granadas caso não a tivessem abandonado no dia seguinte. Com medo, os moradores obedeceram, e já não estavam mais lá quando os militares foram conferir se sua ordem havia sido acatada. Trata-se aqui de uma expropriação ilegal que deu resultado através do reconhecimento, por parte dos moradores, de que a ameaça se concretizaria caso não obedecessem a ordem dada.

Ainda neste relatório, o agente afirma que alguns dos indivíduos lesados deslocaram- se aos quartéis para apresentar reclamação, e que a eles foi dito que fizessem o mesmo com os militares se assim o quisessem. Como resposta, uma das vozes reclamantes teria dito que

379 Bairro Operário. PIDE/DGS.DInf 1ª Proc.15.12.C, NT.2085, fls. 03 – 04. Torre do Tombo, Lisboa. Grifo

meu.

380 Bairro Operário. PIDE/DGS.DInf 1ª Proc.15.12.C, NT.2085, fl. 62. Torre do Tombo, Lisboa. 381 Bairro Operário. PIDE/DGS.DInf 1ª Proc.15.12.C, NT.2085, fl. 37. Torre do Tombo, Lisboa.

“querer, queremos, simplesmente, se o fizermos seremos acusados de terroristas”. Não

importa aqui se a frase realmente foi pronunciada ou não. O que vale é que se disse que ocorreu desta maneira, fato que demonstra que a situação de guerra dava espaço para atitudes violentas em relação às população marginalizada, ao mesmo tempo em que reduzia o seu espaço de reação, por conta do medo de cair nas mãos da polícia enquanto um suposto terrorista. Não nos esqueçamos de que essa parcela da população era, no mais das vezes, encarada como inimigo em potencial. Em outras palavras, quando, através dos ataques de 4 de Fevereiro e 15 de Março, contesta-se, aberta e diretamente, a hegemonia imposta pelo regime colonial, o que ocorre é uma insistência na manutenção das relações de poder existentes através de um uso ainda maior da força.

Coincidentemente ou não, na seção Pelo Hospital do ABC Diário de Angola, em 1967, passam a constar com uma frequência incomum casos de agressões por desconhecidos no Bairro Operário. Há números em que todos os casos de entrada nos hospitais registrados pelo jornal são devidos a agressões ocorridas neste bairro. E, em todos os casos, efetuadas por

desconhecidos382.

Abusos como esses continuavam a se verificar nos anos que seguiram. Em 17 de março de 1969, o agente da polícia J. Rodrigues descreve para o subinspetor da PIDE, Jaime de Oliveira, fato que presenciou no Bairro Operário dois dias antes.

“cerca das 23H00, quando em serviço de ronda aos muceques, numa viatura desta Polícia e ao passar nas proximidades do ‘Bar Carioca’, verifiquei que junto do mesmo se encontrava grande ajuntamento de pessoas – militares e civis – ouvindo- se grande algazarra.

“Aproximando-me do citado ajuntamento deparei com um grande grupo de militares fardados a segurarem um civil pelos braços e um outro também fardado a aproveitar- se daquelas circunstâncias para o espancar.

“O militar agressor foi diversas vezes chamado a atenção de que não devia proceder assim, mas, este virava-se para os apaziguadores insultando-os e ameaçando-os, proferindo em voz alta palavras obscenas, dando origem a reparo e até comentários desagradáveis por parte das variadíssimas pessoas que ali passavam”383.

Se a situação no Bairro Operário tornou-se mais urgente pela frequência com que incidentes como estes ocorriam, não era apenas nele que se verificavam abusos de autoridade e acidentes com granadas deixadas por membros do Exército. Em 1963, em musseque não especificado, a explosão de uma granada de mão causou a morte de três crianças de raça

negra, deixando ainda uma em estado grave. Segundo Silvino Silvério Marques, então

Governador Geral de Angola, “tratava-se duma granada do tipo das usadas pelas NT, que se

382 Um exemplo é o número publicado no dia 04 de Outubro de 1967.

presume tenha caído duma viatura”384. Em março de 1966, uma granada, que se acredita

perdida por elementos militares, foi encontrada no musseque Calemba385.

Nota-se que, em Luanda, quem estourava granadas e semeava a tensão entre a população não eram os temidos inimigos da pátria, terroristas a soldo do estrangeiro, mas os próprios agentes da ordem. A população dos musseques, exposta a atos de violência que aparecem constantemente nos arquivos policiais, muitas vezes reagia, agredindo policiais e militares. Quando o faziam, tornavam-se logo suspeitos de fazer parte das temidas

organizações subversivas.

Enquanto isso, as autoridades, que deveriam reprimir tais abusos, atribuíam ao meio as causas para a reincidência de violência. Culpava-se, enfim, o morador do subúrbio pela agressão a ele dirigida. É ainda curioso que, nesses documentos, não se define se os militares envolvidos seriam brancos, negros ou mestiços. Classifica-se apenas, em alguns casos, os civis agredidos ou envolvidos nos confrontos com os militares. Em todos relatórios aos quais tive acesso, os que sofreram a violência militar, quando classificados, eram nativos ou

africanos. Ora, isso nos remete para a própria função do militar no ultramar: proteger, sempre

que possível, a população de origem europeia. Podemos concluir que essa situação de violência por parte dos militares não se teria estendido por tantos anos se as vítimas não fossem as populações marginalizadas pelo sistema colonial português em Angola.