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É assim que o Botafogo, tal qual a Anangola, enquanto espaços de sociabilidade, cujos membros eram majoritariamente negros e mestiços, tornaram-se locais abertos à discussão e ao debate político, e ambos serviram de local tanto para a reivindicação de direitos dentro da legalidade colonial quanto para a organização de trabalhos clandestinos.

126 Marcelo Bittencourt chama a atenção para a fragilidade dessa fronteira entre aqueles que lutaram dentro da

legalidade, através de atuações no esporte e no jornalismo, por exemplo, e aqueles que optaram pela luta clandestina. Ver: Marcelo BITTENCOURT. Op.cit., 2010, p. 113.

127 Luandino VIEIRA. “A Literatura se alimenta de Literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um

grande leitor”. Entrevista concedida a Joelma G. dos SANTOS. Universidade Federal de Pernambuco, p. 285. Disponível em http://www.revistainvestigacoes.com.br/Volumes/Vol.21.1/a-literatura-se-alimenta-de- literatura_entrevistado_Jose-Luandino-Vieira_art.16ed.21.pdf.

Dentro de ambos os espaços atuaram jovens envolvidos na clandestinidade luandense dos anos 1950 e 1960. Germano Gomes relembra que o grupo com o qual atuava na Anangola, do qual faziam parte nomes como Viriato da Cruz e António Jacinto, percebeu a necessidade de criar algo que funcionasse subterraneamente129. Em meados dos anos 1950, Viriato da Cruz, António Jacinto, Ilídio Machado e Mário António de Oliveira fundaram o Partido Comunista Angolano, para o qual angariaram, como vimos, alguns membros do Botafogo.

É importante frisar que, em fins dos anos 1940 e ao longo da década de 1950, estabeleceu-se uma relação entre as ideias nacionalistas e a percepção de que havia necessidade de levar adiante ações diretas, e armadas caso fosse preciso, contra o colonialismo português. Esta percepção, por sua vez, estava diretamente relacionada com o contexto internacional do pós-guerra, marcado pela criação da Organização das Nações Unidas, pelo reconhecimento por esta organização do princípio da autodeterminação dos povos como direito humano fundamental, pelo início da onda independentista na Ásia e na África e por grandes conferências de solidariedade terceiro-mundistas, dentre as quais destaca-se a Conferência de Bandung, realizada em 1955.

O jovem PCA, no entanto, enfrentou inúmeras dificuldades e viu-se impossibilitado de crescer, devido não só à vigilância policial, mas também ao medo que o termo “comunista” inspirava naquela sociedade. A propaganda anticomunista do regime surtira efeito, de modo que possíveis militantes se afastavam do partido pelo fato deste trazer “comunista” em seu nome. O PCA, então, se desmembra em inúmeras siglas, dentre as quais pode se destacar o Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUAA), que foi a primeira delas, o Movimento para a Independência de Angola (MIA), o Movimento pela Independência Nacional de Angola (MINA), o Movimento de Libertação Nacional de Angola (MLNA), entre outros. Apesar de fortemente concentrados em Luanda, esses movimentos diziam-se nacionais e pretendiam falar em nome de toda Angola, o que fica patente através da leitura de alguns de seus panfletos, nos quais as acusações ao colonialismo português trazem ferozes críticas às condições de vida impostas aos negros em áreas rurais130.

129 Germano GOMES. Entrevista concedida a Marcelo Bittencourt. Luanda, 22 de outubro de 1997.

130 Entre essas críticas podem-se destacar a denúncia da arbitrariedade dos chefes de Posto, da exploração do

africano através do trabalho forçado que separa famílias e os obriga a trabalhar por um salário mísero para os europeus, da extorsão da terras de nativos para a fixação de colonos, da imposição de culturas forçadas aos agricultores africanos, etc. Tais panfletos foram elaborados entre fins de 1956 e 1959, e foram produzidos pelas células clandestinas de Luanda. Lúcio Lara teve acesso a alguns deles por intermédio de Viriato da Cruz. Outros foram por ele encontrados dentre os autos de processos da PIDE. Ver: Lúcio LARA. Op.cit., pp. 23 – 28, 452 – 459.

Além dessas inúmeras siglas, organizou-se também um grupo nacionalista em torno do Cônego Manuel das Neves, que fora líder da Liga Nacional Africana, mas que, subterraneamente, defendia a necessidade de um gesto de ruptura, no sentido de alertar a opinião internacional para a existência de descontentamento em Angola131. Dentre os nomes de pessoas ligadas ao cônego estavam o de Afonso Dias da Silva e o de Joaquim Pinto de Andrade. Este último transitava simultaneamente por diversas outras siglas, o que demonstra uma inter-relação entre essa rede clandestina dos anos 1950.

Os militantes destas diversas células compartilhavam uma determinada vivência, e delas se aproximavam por questões de afinidade. Eram angariados por colegas de escola, por companheiros do clube desportivo, pelo vizinho de porta, por sócio da associação a que pertenciam. E não era incomum que estivessem ligados a diferentes células simultaneamente. Eram, na maior parte, membros da classe média negra e mestiça de Luanda, apesar de atraírem igualmente brancos tendentes à esquerda. Conheceram-se no Liceu Salvador Correia ou na Escola Comercial e Industrial de Luanda. Eram familiares, provinham de uma mesma região, ou ainda traziam laços de amizade por pertencerem às famílias crioulas de Luanda, que muito contato tinham entre si. Partilhavam, enfim, no mais das vezes, uma trajetória semelhante. No entanto, o fator que, de fato, agregou esses jovens foi o sentimento anticolonialista e nacionalista, o que os levou a ultrapassar questões que poderiam causar atritos. Joaquim Pinto de Andrade, por exemplo, apesar de ser padre, participava de grupos clandestinos ao lado de Ilídio Machado, que se dizia ateu132, e que foi um dos fundadores do Partido Comunista Angolano. Enfim, eram jovens que se reuniam para pensar a nação.

Apesar de fazerem parte de um estrato social que, por ter tido acesso à educação formal, poder-se-ia dizer privilegiado, esse grupo, como vimos quando tratamos dos conflitos geracionais na Anangola, tinha a preocupação de atingir as massas, isto é, de alargar a sua base de apoio. Havia uma clara intenção de se aproximar dos indígenas. Essa aproximação se deu, por um lado, através de associações e clubes, como a Anangola e o Botafogo, e por outro, na esfera da ilegalidade, por meio, por exemplo, de campanhas clandestinas de alfabetização. A ideia era elevar o indígena a um patamar superior ao mesmo tempo em que o consciencializava para a questão do nacionalismo133. Muitos militantes circulavam

simultaneamente por mais de uma sigla clandestina, sem que abandonassem, portanto, suas atividades dentro da legalidade, através dos clubes e associações.

131 Joaquim Pinto de ANDRADE. Entrevista concedida a Marcelo Bittencourt. Luanda, 27 de agosto de 1997. 132 Joaquim Pinto de ANDRADE. Entrevista concedida a Marcelo Bittencourt. Luanda, 27 de agosto de 1997. 133 Joaquim Pinto de ANDRADE. Entrevista concedida a Marcelo Bittencourt. Luanda, 27 de agosto de 1997;

A multiplicação de siglas, mesmo com a interseção de militantes entre elas, parecia ser uma das estratégias de Viriato da Cruz, cuja intenção era a de proteger a ação clandestina de um desmantelamento pela polícia secreta. Em manifesto de dezembro 1956, encontra-se o seguinte trecho:

“Porém, o colonialismo português não cairá sem luta. Deste modo, só há um caminho para o povo angolano se libertar: o da luta revolucionária. Esta luta, no entanto, só alcançará a vitória através de uma frente única de todas as forças anti- imperialistas de Angola, sem ligar às cores políticas, à situação social dos indivíduos, às crenças religiosas e às tendências filosóficas dos indivíduos, através portanto do mais amplo MOVIMENTO POPULAR DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA. Este movimento, porém, não se fará através da filiação de todos os patriotas angolanos a uma única organização ou associação. O movimento será a soma das actividades de milhares e milhares de organizações (de três, mais de três, dezenas ou centenas de membros cada uma) que se criarem em Angola. Isso quer dizer que o povo angolano deve organizar-se através de milhares e milhares de organizações espalhadas por toda a Angola”134.

A ideia era, portanto, ultrapassar questões que separavam a população e fazer da luta anticolonial o elemento de união, que possibilitaria a organização de uma frente ampla contra o colonialismo. Neste documento, o nome Movimento Popular de Libertação de Angola aparece pela primeira vez, embora o MPLA não estivesse, neste momento, constituído enquanto movimento de libertação e sua sigla não circulasse através de panfletos pela capital.

Apesar do cuidado para escapar à vigilância policial, no entanto, e por conta das ações de panfletagem e de consciencialização levadas adiante por essa clandestinidade, muitos dos militantes das inúmeras células foram, em 1959, presos pela PIDE, em um episódio que ficou conhecido como Processo dos 50. Os que permaneceram em liberdade, por sua vez, iniciaram uma forte campanha a favor dos presos políticos, exigindo, por um lado, a sua libertação imediata e, por outro, angariando recursos para o auxílio às suas famílias. Os presos políticos tornavam-se o centro da atividade clandestina e a possibilidade da transferência destes para prisões fora de Angola acendia ainda mais os ânimos da clandestinidade.

Portanto, o conflito entre formas de agir adentrou os espaços da Associação dos Naturais de Angola e do Botafogo, e as fronteiras entre suas ações dentro da legalidade, enquanto instituições aceitas pelo regime colonial, e clandestinas, devido à inserção de muitos de seus membros nas células supracitadas, eram altamente permeáveis. O próprio equilíbrio de forças dentro desses espaços variou. No caso da Anangola, por exemplo, o início da luta armada foi fundamental para uma maior polarização dentro da associação e para a formação

134 “Documento sem título que viria a ser o Manifesto do MPLA”, transcrito integralmente em Lúcio LARA. Um

Amplo Movimento... Itinerário do MPLA através de documentos e anotações de Lúcio Lara. 2ª Edição. Vol.1.

ou fortalecimento de grupos cujas ações se aproximavam mais àquelas desenvolvidas pelos membros do Botafogo antes de 1961.

Não só Luandino Vieira perpassa a sua trajetória pelas duas associações e pela rede clandestina formada em Luanda. Já se referiu aqui a Lopo do Nascimento, nome recorrente do nacionalismo angolano. Membro da Anangola, contribuidor do Jornal de Angola por volta de 1962 – veículo de reivindicações dentro da esfera da legalidade colonial –, Lopo fazia parte do corpo dirigente do Botafogo nos anos 1950, e esteve envolvido ativamente nas atividades clandestinas desenvolvidas sob a cobertura do clube. Devido ao clima de instabilidade decorrente do Processo dos 50, Lopo do Nascimento, por volta de 1959, transferiu-se para Golungo Alto, com a ajuda de Adriano dos Santos, com o qual estabeleceu vínculos de afetividade enquanto atuaram no Botafogo. No início dos anos 1960, voltou para Luanda, e se envolveu com um grupo de nacionalistas que criaram o já citado MIPLA, tendo o espaço da Anangola sido fundamental para o estabelecimento destes contatos. Portanto, mesmo que em uma perspectiva diacrônica, percebe-se uma ação clandestina às vezes muito similar exercida sob a capa de ambas as associações.