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I.1 Os jornais, a sociedade de Luanda e os grupos associativos

I.1.2 O Botafogo e o Bairro Indígena

O clube Botafogo, por sua vez, foi fundado em 1951 no Bairro Indígena, e teve início como um clube de futebol, uma vez que o esporte se popularizara, e em praticamente todos os bairros existia um time próprio117. No entanto, como já foi dito, o clube não restringiu suas

atividades ao futebol. Oferecia também atividades recreativas, serviços de alfabetização, consultas médicas, atividades para crianças, almoços nos fins de semana para reunir a população do bairro, entre outros.

O Bairro Indígena foi construído pelo governo colonial durante a década de 1940. Era uma época, como já foi dito, marcada pela explosão populacional de Luanda e pelo inchaço dos musseques, o que chamou a atenção das autoridades para a necessidade de criação de bairros populares, cujo traçado favorecesse uma maior vigilância das populações de origem africana por parte dos agentes da ordem.

De acordo com Moorman, o Bairro Indígena era um bairro mais ou menos de classe

média, definida por ela como o grupo de assimilados em decadência e indígenas em

ascendência, que, na escala social, se localizavam entre a elite colonial e os indígenas mais

117 Nuno Domingos trabalha com os clubes desportivos enquanto via de construção de uma interdependência

entre os bairros suburbanos em Lourenço Marques (atual Maputo), Moçambique. “Os clubes foram envolvendo,

por intermédio de um conjunto de atividades locais, um maior número de indivíduos. Estas iniciativas contribuíram para vincar a relação destes adeptos com os seus bairros e com o espaço suburbano mais largo consolidado pela partilha de práticas e referências que a cultura popular urbana ajudava a desenhar. A dinâmica associativa contribuiu para criar redes de laços sociais que rompiam com os circuitos sociais fechados fundados na origem regional dos seus membros. Sem anular a força do laço étnico, elemento permanente de reprodução social, a cultura popular, nomeadamente a desportiva, ajudou a criar as bases para outro tipo de interdependência urbana, já fomentada por outros fenômenos”. Nuno DOMINGOS. “O futebol no

subúrbio de Lourenço Marques” IN Futebol e colonialismo. Corpo e cultura popular em Moçambique. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012 p. 139.

A colonização portuguesa esteve longe de ser idêntica em todos os seus territórios no continente africano. No entanto, principalmente no caso de Angola e de Moçambique, para onde se dirigiu a maior parte dos imigrantes vindos da metrópole, existem, sim, alguns pontos em comum. Até porque, para as duas colônias, a legislação imposta pela metrópole, como, por exemplo, o Estatuto do Indigenato, foi semelhante.

Desta forma, apesar da necessidade de adaptações, algumas reflexões acerca de Lourenço Marques podem ser interessantes para o estudo de Luanda.

pobres. Muitos deles frequentavam ou frequentaram escolas ou tinham chances de fazê-lo.118 No entanto, como ocorreu com os demais musseques, o Bairro Indígena sofreu igualmente as consequências da intensificação da imigração para Luanda e da radicalização da segregação racial que se seguiu. Era, portanto, um bairro heterogêneo, como relembra Adriano dos Santos.

“Aqui em Luanda, eu vivia no Bairro Indígena. O Bairro Indígena aqui era uma sociedade com muitas misturas, muitas classes e com praticamente todas as raças, que vinham de vários pontos do país. [...] estavam ali todos: pretos, brancos, mestiços, no Bairro Indígena”.

Seus habitantes construíram seus próprios laços de solidariedade, e o Botafogo teve papel importante nesse processo. O futebol era um esporte bastante popular, não só na metrópole, como nas províncias. Assistia-se a uma proliferação de clubes de futebol tanto na Baixa quanto nos musseques. Segundo José Bettencourt, era raro haver um musseque que não contasse com pelo menos um clube119. De acordo com ele, no início dos anos 1960, havia já sessenta clubes de futebol espalhados pelos musseques, que contavam em cerca de nove.

Importa aqui ressaltar que os clubes de futebol, ao atraírem torcedores, acabavam por se tornar espaços propícios para a construção de laços solidariedade entre eles, ao passo que fomentam uma relação de disputa com os torcedores dos demais times. No caso do Botafogo, é recorrente a afirmação de que este se tornou um espaço de sociabilidade no qual os moradores do Bairro Indígena construíram vínculos entre si. Além disso, as disputas entre clubes de diferentes musseques, assim como entre clubes dos musseques e clubes da Baixa, fortalecia essa construção de elos, uma vez que unia os torcedores de um time contra os de outro. Torcedores do Botafogo seguiam o time quando este jogava em outros bairros. No fim das contas, o fator que sintetizava, nesse caso, as solidariedades ou as disputas era a adesão ao clube de futebol e, simultaneamente, o pertencimento ao bairro. Ou seja, o clube desportivo contribuía para a criação de uma identidade de bairro, de modo que unia em torno de si indivíduos muitos distintos e com trajetórias também diferentes. Nele eram criadas e desenvolvidas novas formas de se relacionar.

É necessário, mais uma vez, o cuidado para não simplificar. Dizer que os clubes de futebol criaram novas formas de relacionamento não significa que tenha substituído as demais. Provavelmente, um olhar atento às tensões internas dos clubes deixaria ver que diversos fatores de solidariedade e de tensão coexistem e influenciam na própria estrutura dos

118 Marissa J. MOORMAN. Op.cit., p. 70. 119 BETTENCOURT. Op.cit., pp. 119 – 120.

mesmos. No entanto, no momento de confronto com outros clubes, são os vínculos gerados pelo clube e pelo bairro que são mobilizados.

Segundo Moorman, as atividades do Botafogo eram mais acessíveis aos moradores do Bairro Indígena, assim como aos dos musseques vizinhos, do que as publicações de associações como a Anangola. Para fazer parte do clube, era preciso pagar uma mensalidade. No entanto, era possível participar das atividades através da compra de tíquetes a preços acessíveis120.

Adriano dos Santos relembra que, ao longo dos anos 50, o clube também possuía uma publicação, que, diferentemente do Jornal de Angola, era manuscrita. O título era em

kimbundu, e significava “Ergam-se!”, “levantem-se!”, sendo um apelo à ação anticolonial121.

Era um jornal de circulação ainda mais restrita, que circulava basicamente no bairro e, às vezes, conseguia sair de Angola para o exterior devido aos contatos de membros da diretoria do clube. Estando o formato de um texto relacionado às suas condições de produção e às suas intenções, não é de se surpreender as diferenças nas formas físicas dos jornais aqui mencionados, assim como a muito provável diferença de conteúdo, uma vez que, no caso do periódico publicado pelo Botafogo, tratava-se de um jornal clandestino, mais abertamente político, destinado, portanto, a um outro público, e realizado com outras intenções122. Por ser clandestino, não se fazia necessária a negociação com as autoridades, sempre presente nas páginas do Jornal de Angola. Não havia, aqui, quaisquer finalidades de mediação entre negros e mestiços e as autoridades coloniais. No entanto, a sua clandestinidade influenciava também nas suas condições de produção e de circulação.

Por volta de meados dos anos 1950, a atuação política clandestina dos membros do Botafogo tornou-se mais intensa, e o clube passou a servir de cobertura para tais atividades. Era uma luta, de acordo com Adriano dos Santos, restrita aos musseques, mas que ia além do Bairro Indígena, e era uma atividade orientada para a conscientização. Diz ele:

“Elaborávamos panfletos, distribuíamos panfletos pelos bairros na calada da noite. Seguíamos em grupos de dois elementos a distribuir panfletos, atirando pelos quintais, por baixo das portas. Era esse tipo de chamada de consciência da população. A denunciar atitudes de violência das autoridades coloniais, das

120 Marissa J. MOORMAN. Op.cit., pp. 71 – 72.

121 Adriano dos SANTOS. Entrevista concedida a Marcelo Bittencourt. Luanda, 13 de setembro de 1997. 122 Como escreveu McKenzie, “[…] the different physical forms of any text, and the intentions they serve, are

relative to a specific time, place, and person. [...] In fact, change and adaptation are a condition of survival, just as creative application of texts is a condition of their being read at all. [...] They alone make possible, in their sequence, any account of cultural change”. MCKENZIE. Op.cit., pp. 60 – 61.

Mas, por mais singulares que fossem (e eram) tais publicações, havia entre elas o que McKenzie chama de “dimensões intertextuais” que não devem ser ignoradas.

deportações que se faziam para o São Tomé, as injustiças que eram cometidas nos postos de trabalho [...]”123.

Foi através do Botafogo que Adriano dos Santos, assim como outros de seus companheiros, ingressaram em reuniões clandestinas, muitas das quais lideradas por Viriato da Cruz, e acabaram por atuar no Partido Comunista Angolano (PCA).

Essa atividade política clandestina, levada a cabo pelos membros do clube Botafogo, levou alguns acadêmicos, como a própria Marissa Moorman, a concluírem que existia uma espécie de vácuo entre associações como a Anangola e a Liga Nacional Africana, e agremiações recreativas, como o Botafogo.

Sem dúvida, houve um conflito geracional, e acredito que se pode inclusive, para usar os termos de Michel de Certeau, dizer que havia uma tensão entre maneiras de fazer de ordem tática, que estariam “dentro do campo de visão do inimigo”, e que, portanto, teriam que recorrer à negociação como forma de se poderem efetuar, e outras que iam em direção a uma atuação estratégica, possibilitadas a partir de um isolamento com relação ao ambiente ao qual se dirige124. Em outras palavras, havia um conflito entre ações dentro da legalidade colonial, e que, portanto, tinham que com ela negociar, e aquelas que, situadas na clandestinidade, eram mais claramente de resistência e de oposição.

É possível, entretanto, lançar a hipótese de que tais maneiras de fazer de ordem táticas e estratégicas eram, muitas vezes, e apesar dos conflitos e tensões existentes, exercidas simultaneamente. Já foi ressaltada a contribuição do escritor Luandino Vieira na edição do Jornal de Angola. Moorman, ao tratar do romancista, o contrapõe a atividades como as do Botafogo, e chega a afirmar que, apesar de ter os musseques como temas de seus escritos, os mesmos não eram difundidos nos bairros periféricos, mas eram lidos, no mais das vezes, pela elite metropolitana125. Todavia, não era somente através dos seus escritos que Vieira atuou

123 Adriano dos SANTOS. Entrevista concedida a Marcelo Bittencourt. Luanda, 13 de setembro de 1997. 124 “A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio a ser a base de onde se

podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças. [...] chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’, como dizia von Büllow, e no espaço por ele controlado. [...] As estratégias são portanto ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem.”

Michel de CERTEAU. A Invenção do Cotidiano: Artes de fazer. 3ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, pp. 99 – 102.

nessa passagem dos anos 1950 aos 1960126. Ele, inclusive, colaborou com as publicações do Botafogo, como ele mesmo relembra.

“[...] como era muito jovem, eu via os meus mais-velhos fazendo a revista Mensagem e o jornal Cultura, e tudo quanto eram as seções culturais do clube Botafogo que tinha um nome brasileiro e eu sempre participei disto colaborando com desenhos, com meus textos. E ao mesmo tempo também colaborava no movimento político traduzindo, por exemplo do inglês, poemas e textos, difundindo, distribuindo panfletos, aquela coisa da atividade política básica”127.

Ademais, Moorman apresenta dados em uma de suas notas que reforçam esta hipótese. Segundo ela, entre abril de 1948 e abril de 1957, a Comissão Administrativa para Bairros Nativos em Luanda recebeu dezesseis correspondências, sendo que destas, dez foram enviadas pela Liga Nacional Africana e pela Anangola, que requeriam casas para seus membros no Bairro Indígena128. Lá, em suma, conviviam membros de ambas as associações, da Anangola e do Botafogo, e seria ingênuo imaginar que esses homens e mulheres não circulassem por elas, e que existisse uma barreira intransponível entre as atitudes reivindicativas dentro da legalidade colonial e àquelas clandestinas, voltadas mais propriamente para a luta pela independência. A opção por uma determinada associação, em detrimento de outra, quando era feita, passava por questões de geração, posicionamento político, e, por que não, por afinidade com outros membros. Nelas, porém, construíam-se novos laços assim como travavam-se novas disputas.