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II. 2 “Tempo de acções e não de palavras!”: Lusotropicalismo e Ação Psicossocial

III.3 Uma outra guerra

Em Luanda, a guerra, portanto, era outra. Guerra que era consequência de outra guerra. Esta última, distante e incerta, transformou a vida na capital. A eclosão da luta pela independência de Angola trouxe à tona elementos já existentes, mas muitas vezes negados. A insistência na teoria lusotropicalista como prova maior de que havia harmonia racial em terras portuguesas foi acompanhada de um agravamento das tensões raciais dentro de Luanda. O negro tornara-se o inimigo em potencial. E a repressão policial dirigiu-se basicamente contra ele.

Essa guerra estava, porém, localizada em uma área da cidade: na periferia, onde erguiam-se musseques e bairros populares. Era lá que os habitantes tinham que lidar com a violência policial e com a agressividade da população branca. Não contavam, no entanto, com qualquer ajuda estrangeira e menos ainda com campos de treinamento para enfrentá-las. Tinham que usar as armas disponíveis, e a principal delas era o melhor conhecimento que tinham do espaço e a própria solidariedade que construíram para defender-se mutuamente.

Do outro lado da cidade, viva-se, porém, o auge do que a capital poderia oferecer. Lá pouco se sabia sobre a cidade localizada para lá do asfalto. Os jornais, por sua vez, não contribuíam para um maior esclarecimento. O subúrbio aparecia, principalmente, nas matérias relacionadas às construções em transgressão e nas seções Pelo Hospital e Pela Polícia, onde

448 Adriano dos SANTOS. Entrevista concedida a Marcelo Bittencourt. Luanda, 13 de Setembro de 1997. 449 SCCIA. Relatório especial de informações nº6. Actividade do inimigo em 1967, p. 155.

figuravam as agressões entre os moradores daqueles bairros e os inúmeros casos de roubo que lá eram comuns. A violência dos policiais no tratamento a essas populações não se tornava noticiário. Por outro lado, insistia-se na não-discriminação racial em terras portuguesas.

Nessa parte de Luanda, onde as ruas eram asfaltadas e as construções eram regulamentadas, não havia guerra. Havia conforto. Conforto este cujas bases assentavam em uma violenta exploração de uma mão-de-obra que, não obstante o discurso empregado, era ainda extremamente mal paga. As relações de força eram ainda marcadas pela situação colonial, e não seria desejável para os habitantes da cidade do asfalto que o fosse de outra maneira. Como vimos no capítulo anterior, o Estado português criou uma sociedade baseada na distinção racial. Sem ela, a própria relação colonial deixaria de existir.

Na Luanda do asfalto, repito, não havia guerra. E se ela influenciou a vida desse lado da cidade, o fez, principalmente, através do aumento de impostos e, por conseguinte, do custo de vida, consequências estas que foram sentidas na vida dos habitantes da cidade como um todo450, e de algumas medidas que respondiam à Ação Psicossocial – como, por exemplo, a imposição de um salário mínimo aos seus trabalhadores e criados, que em Luanda girava em torno dos 25$00 e 30$00 dependendo da ocupação, e uma maior presença, embora ainda extremamente desigual, de funcionários negros nos escritórios e companhias antes ocupados quase que exclusivamente por brancos.

Em suma, a guerra saiu de Luanda logo após o 4 de Fevereiro. A situação de guerra, porém, lá permaneceu, em especial na área dos musseques. Sendo uma zona sensível aos olhos das autoridades, toda atenção para com Luanda era pouca. E a principal vítima dessa guerra foi a população suburbana negra e mestiça, mesmo que supostamente não existisse preconceito racial na pátria portuguesa, onde, dizia-se, brancos e negros viviam em perfeita harmonia.

450 Lembremos que, em 1973, o custo de vida em Luanda aumentou em 13,2%. Os impostos diretos, ao longo da

primeira metade da guerra, aumentaram em 97%, enquanto os indiretos em 114%. Já o imposto mínimo geral, que variava de acordo com o distrito, atingiu uma média de 300$00 entre os anos de 1966 e 1973. Ver: Gerald BENDER. Op.cit., p. 276.

O custo de vida aumentou também por conta da crise de alimentos que se abateu sobre a Província e acabou por ter suas consequências nos centros urbanos. Os reordenamentos, os quais mencionamos na nota 193 (segundo capítulo, página 84), diminuíram a produtividade dos camponeses, assim como a fuga de populações para os territórios vizinhos e o uso de herbicidas pelo exército português com o objetivo de anular as fontes de abastecimento dos guerrilheiros. Dessa forma, Angola passou a ter que importar produtos que antes exportava, como, por exemplo, o arroz e a batata, o que se refletiu nos preços dos mesmos. Artigos sobre a carência de alimentos podem ser encontrados nos jornais angolanos. Ainda em janeiro 1965, a Revista de Angola publica uma matéria intitulada “Angola importa arroz”. Na revista Notícia, por exemplo, ao longo do ano de 1973, a falta de batata aparece na seção Cartas na Mesa, dedicada às cartas dos leitores. Vale assinalar que, apesar dessas consequências da guerra terem afetado a vida dos habitantes dos centros urbanos como um todo, é inegável que as camadas socioeconômicas mais baixas tenham sido, novamente, as mais atingidas.

Inimigos por excelência, prováveis terroristas, as populações negras da capital atraíram para si toda a violência dos agentes da ordem, empenhados na manutenção de um regime que tinha como pressuposto a diferenciação rácica, cujos ideólogos utilizavam toda a sua habilidade para disfarçar. Como resposta a essa situação de guerra, os negros do subúrbio responderam como podiam, principalmente através de ações espontâneas que, mesmo sem consequências de vulto, chamaram a atenção para o descontentamento desses homens e mulheres com o sistema vigente. Por certo, essas ações sofreram influência da propaganda do MPLA, mas os olhos da PIDE/DGS não tornaram possível a configuração de grupos clandestinos que sobrevivessem o suficiente para colocar em prática as instruções do movimento.

Uma outra guerra, com outras questões, e com maior rivalidade rácica. Era também uma guerra ainda em estado de latência, mas que estava a cada ano mais perto de estourar. Luanda se encontrava nessas circunstâncias quando se recebe a notícia de que o governo de Marcelo Caetano chegara ao fim. A crise de hegemonia, colocada já desde o fim da década de 1940, agravou-se com o passar dos anos. O 25 de Abril de 1974 encontra a capital de Angola em um estado de subversão ainda latente, mas já prestes a explodir.

Figura 11: A “guerra” das paredes.