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6. Retribuição-Noção, Elementos e Modalidades de Retribuição

6.6. A Presunção Estabelecida

O n.º 3 do art. 258.º consagra a presunção de que constitui retribuição “qualquer prestação do empregador ao trabalhador”. A razão de ser da presunção prevista no n.º 3 do art. 258.º é a de precaver os casos em que o empregador pretende efetivamente pagar a

contrapartida do trabalho prestado pelo trabalhador, mas atribui outra nomenclatura à prestação, não assumindo a mesma como retribuição.

A presunção, prevista no art. 349.º do CCivil, indica que nos termos do sistema probatório consagrado nesse diploma legal se dá como demonstrado um facto desconhecido, a partir de um facto conhecido (por exemplo, se sai fumo por uma porta, presume-se que do outro lado há um incêndio). Na verdade o legislador aplica a técnica da presunção para preencher um conceito legal, podendo este ser afastado pela parte interessada que não beneficia da mesma. Assim, por aquele n.º 3 do art. 258.º o legislador faz presumir a natureza retributiva como consequência da conhecida atribuição de uma prestação patrimonial.

No entanto, o empregador pode ilidir esta presunção, pela demonstração de que certa prestação não é um complemento retributivo por, por exemplo, faltar o preenchimento dos requisitos do n.º 1 do art. 258.º, ou estar excluída da qualificação de retribuição nos termos do art. 260.º, ou seja, o ónus da demonstração de que certa atribuição não é retributiva, é do empregador, através, nomeadamente, da demonstração da falta de obrigatoriedade ou de outros elementos essenciais caracterizadores da retribuição.

Convém sublinhar que esta presunção só diz respeito à qualificação de certa atribuição patrimonial como retribuição para efeitos de aplicação dos princípios de tutela e garantias dos créditos retributivos. Segundo BERNARDO LOBO XAVIER115, “não pode dizer-se que o reconhecimento

do carácter retributivo de uma dada atribuição envolva fatalmente a produção de todos os efeitos jurídicos da retribuição, tal como, ao inverso, não pode afirmar-se que as prestações não retributivas não beneficiam de nenhum dos efeitos associados à retribuição”.

Ou seja, se um trabalhador demonstrar que várias vezes, ao longo de um ano, lhe foram pagos certos montantes, este beneficia da presunção do caráter retributivo daquelas prestações, e o empregador terá de ilidir essa presunção, para evitar as consequências legais que daí advêm, nomeadamente, a aplicação do princípio da irredutibilidade salarial. No entanto, não basta ao trabalhador alegar o pagamento efetivo desses montantes e que os mesmos têm caráter retributivo para a aferição dos montantes devidos a título de retribuição e subsídio de férias, uma vez que isso seria extrapolar o sentido do n.º 3 do art. 258.º e interpretar esta norma em excesso. Sendo que com esta interpretação, além de uma presunção de caráter retributivo,

tínhamos também a atribuição de relevância para efeito da aplicação de determinado regime jurídico.

Um exemplo bastante discutido na jurisprudência é o caso de atribuição ao trabalhador de um veículo automóvel (ou de um telemóvel ou computador portátil) para que este o utilize, não só na prestação da sua atividade mas também na sua vida privada, incluindo fins-de-semana e férias116.

Esta atribuição por parte do empregador pode ser considerada retribuição em espécie, uma vez que manifesta uma vantagem de natureza económica para o trabalhador. Conforme diz o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de setembro de 2012117 “sendo a retribuição a

contrapartida da atividade prestada pelo trabalhador em sede de contrato individual de trabalho, ela é paga normalmente em numerário. Tal não impede que uma parte da retribuição, pelo menos, não possa ser paga em espécie, como sucede com a atribuição de alimentos, refeições, ou o uso de viaturas. Porém, a utilização de um veículo automóvel da empresa, com todos os custos a cargo desta, tanto pode configurar um mero instrumento de trabalho, porque é usada durante e por causa da prestação laboral, como pode configurar uma parcela da retribuição do trabalhador, quando o empregador autoriza o trabalhador a usar o veículo irrestritamente, para além do horário normal de trabalho, maxime, em fins-de-semana, feriados e férias. Nesta situação, evitando o trabalhador de adquirir viatura própria para se deslocar de e para o trabalho e em toda a sua vida pessoal e familiar, o empregador confere-lhe uma vantagem patrimonial, suscetível de avaliação em numerário, que integra a designada retribuição em espécie, como se tem entendido”.

No mesmo sentido o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão datado de 30 de abril de 2014118 diz que “perante a matéria de facto provada, impõe-se concluir que a atribuição ao autor

de veículo automóvel assume natureza retributiva, uma vez que a empregadora, ao conferir àquele o direito de utilização do veículo na sua vida particular, incluindo em fins-de-semana e férias, e ao suportar os respectivos encargos, designadamente, com a sua manutenção, seguros, portagens e combustível, ficou vinculada a efectuar, com carácter de obrigatoriedade, essa

116Fernandes, António Monteiro, op. cit., pág. 397, nota de rodapé n.º 1.

117 Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de setembro de 2012, Processo n.º 749/10.0TTPRT.P1, disponível no website

www.dgsi.pt.

118 Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de abril de 2014, Processo n.º 714/11.00TTPRT.P1.S1, disponível no website

prestação. Trata-se de uma prestação em espécie com carácter regular e periódico e um evidente valor patrimonial, que assume natureza de retribuição, nos termos dos artigos 82.º da LCT, 249.º do Código do Trabalho de 2003 e 258.º do Código do Trabalho de 2009, beneficiando, por isso, da garantia de irredutibilidade, prevista nos artigos 21.º, n.º 1, alínea c), da LCT, 122.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2003 e 129.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2009”.

Não obstante este entendimento generalizado, se o empregador conseguir ilidir a presunção de que constitui retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador, designadamente porque a utilização de veículo automóvel se deve à necessidade das específicas funções do trabalhador, e a utilização do mesmo veículo de trabalho na vida privada do trabalhador configura apenas uma liberalidade do empregador, então esse veículo não é parte integrante da retribuição, conforme é dito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de setembro de 2008119: “no que diz respeito ao automóvel, é óbvio que a sua utilização pelo autor

na sua vida particular lhe trazia vantagens económicas, mas essas vantagens também não constituíam uma contrapartida directa do trabalho, uma vez que resultavam de uma mera liberalidade da entidade empregadora que, como tal, podia ser por ele retirada a todo o tempo, não constituindo, por isso, um componente da sua retribuição”.

Discordando do entendimento maioritário da doutrina, MARIA MANUELA MAIA120, entende

que se a atribuição de viatura não for consagrada no contrato, só em casos especiais deve ser integrada na retribuição, explicando a título de exemplo que nas situações de “mobilidade funcional, do ius variandi ou em consequência de um processo de restruturação e reorganização da empresa sem menoscabo da categoria, retribuição e dignidade, o trabalhador se vê privado da viatura da empresa, não existe ânimo empresarial no sentido de ofender a dignidade do trabalhador ou retirar-lhe competência ou direito, porque a dignidade humana assenta em valores e princípios mais elevados e importantes que o mero uso de uma máquina”.

Dúvidas não há quanto à exclusão de consideração de prestação retributiva nos casos em que o trabalhador de desloca com o seu veículo até as instalações da empresa e apenas aí inicia a sua utilização diária do telemóvel, computador portátil ou veículo disponibilizados pelo

119 Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de setembro de 2008, Processo n.º 08S1031, disponível no website www.dgsi.pt.

120 Maia, Maria Manuela in “O conceito de retribuição e a garantia retributiva”, II Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Lisboa, 1999,

empregador para exercer as suas funções, e ao fim do dia de trabalho devolve esses meios disponibilizados nas instalações do empregador, não tendo a eles acesso em tempo de férias e/ou fins-de-semana.

Questão semelhante é a da atribuição de cartão de crédito, seguros de saúde e de vida, combustível, parqueamento, concessão de stock options, descontos em serviços ou bens da empresa, etc.

O plano de aquisição de ações, as chamadas stock options, diz respeito a opção de aquisição de ações da empresa, concedida pelos empregadores aos trabalhadores.

Como explica ROMANO MARTINEZ121, a “dispersão acionista e o designado «capitalismo

popular», dos anos 50-60 do século passado, deram origem à democracia acionista, com as «ações do trabalho», tendo em vista transformar os trabalhadores em capitalistas”.

No entanto, apesar desta ideia inicial, as empresas concedem normalmente as stock options com outros intuitos, como sejam, alinhar os interesses dos gestores com os dos acionistas, reduzindo os custos de agência; como forma de remuneração que permite minimizar o reconhecimento de custos com os trabalhadores; como substitutos de remunerações pagas em caixa e seus equivalentes; para atrair e reter trabalhadores na empresa evitando a transferência para empresas concorrentes e como instrumento de extração de rendimento dos acionistas122 e, acima de tudo, tem por base requisitos variados, como a existência de relação de

trabalho, verificação de resultados da empresa e o bom desempenho do trabalhador para o alcance desses resultados.

Os planos de aquisição de ações podem também ser planos de aquisição de obrigações, convertíveis em ações. Embora do ponto de vista fiscal, as stock options sejam tributadas como rendimentos do trabalho, à luz do regime laboral, normalmente não se integram no conceito de retribuição123.

Em suma, a qualificação destas atribuições como retribuição depende da sua utilização, e deve ser sempre alvo de avaliação casuística, isto é, se aquela atribuição é uma mera

121Martinez, Pedro Romano in “Direito...”, pág. 547.

122 Morais, Ana Isabel in “Stock Options: Principais determinantes da atribuição”, in Revista da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, nº 37

abril/junho de 2007, pág. 49-54.

liberalidade ou tolerância do empregador, revogável pelo mesmo a qualquer momento, ou se, por outro lado, estas atribuições se traduzem numa intenção de atribuição de um benefício económico ao trabalhador.

Ainda quanto às tipologias de retribuição, recentemente os empregadores começaram a atribuir a certos trabalhadores algumas prerrogativas. Normalmente estas regalias são consagradas a trabalhadores que exercem cargos de chefia, dirigentes. São os chamados “fringe benefits” (ou “atribuição de meios”), ou seja, são prestações que têm como objetivo aumentar a motivação dos trabalhadores, reduzir o absentismo, o “turn-over”, aumentar a produtividade, atrair melhores profissionais, melhorar a imagem da empresa dentro do setor ou conexão entre o trabalhador e os objetivos da empresa e da organização onde esta inserido, etc. Podem configurar vários privilégios, “como sejam o pagamento de prémios de seguro, complementos à assistência em caso de doença, pensões complementares de reforma, empréstimos para aquisição de casa ou automóvel”124, bem como prestações de fianças e outras garantias

bancárias aos trabalhadores, a atribuição de um cartão de crédito com um limite de crédito autorizado, atribuição de cargos e situações de consultoria em sociedades coligadas, etc.

Como explica JÚLIO GOMES125, em termos sociológicos, “trata-se de prémios de fidelidade

que exprimem lealdade recíproca, sendo que o valor simbólico destas atribuições, quando dizem respeito a produtos e serviços126, são usados para realçar as diferenças hierárquicas e sociais

nos quadros das empresas”.

É discutível se todos os “fringe benefits” deverão ser entendidos como retribuição em espécie, acompanhando a opinião de DIOGO VAZ MARECOS127, no que diz respeito aos empréstimos

que o empregador realize não devem ser entendidos como retribuição em espécie, em primeiro lugar porque podem deixar de ser concedidos a qualquer momento (com exceção dos resultantes de obrigação contratualmente prevista) em segundo lugar, porque normalmente configuram benefícios sociais atribuídos pelo empregador e que este, a qualquer momento, pode alterar o montante do empréstimo ou até eliminar a concessão destes empréstimos a futuros trabalhadores, não podendo estes últimos alegar o direito a estes empréstimos.

124Gomes, Júlio in “Algumas...”, pág. 57 e 58.

125 Gomes, Júlio in “Algumas...”, pág. 58.

126Nomeadamente, automóveis, relógios ou outros objetos de usos pessoal, viagens, férias, cartas de crédito, formação, etc.