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3 CAMINHOS PERCORRIDOS NA PESQUISA DE CAMPO: TRAJETÓRIA E

4.1 Contextualização das disciplinas Psicologia da Educação A e B

4.2.2 A queixa escolar

4.2.2.1 A problematização da queixa escolar

A queixa escolar tem sido objeto de investigação no campo da Psicologia Escolar e discutida por autores como M. Souza (1997; 2000; 2007), Machado (1997; 2000), Freller (1997) e B. Souza (2007140 – o livro Orientação à queixa escolar, organizado por B. Souza, é

composto por capítulos de diversos autores que discorrem sobre esse tema)141.

140 Conforme mencionado anteriormente, este livro atualmente se encontra em sua segunda edição, publicada em

2010.

141 Em sua tese de doutorado, Barbosa contextualiza a origem da utilização do termo “queixa escolar” por autores

173 No texto “A queixa escolar e o predomínio de uma visão de mundo”, M. Souza (1997) refere-se às queixas escolares como problemas de escolarização atribuídos aos alunos, encaminhados predominantemente por profissionais da escola ou da Saúde para atendimento psicológico (pp. 19;24-5). De acordo com a autora, grande parte dos encaminhamentos de crianças realizados aos psicólogos corresponde a questões vivenciadas no processo de escolarização e dentre as queixas escolares mais frequentes encontram-se os “problemas de aprendizagem” e os “problemas de comportamento” (pp. 19;21).

Como exemplos de queixas referentes a “problemas de aprendizagem”, podemos mencionar alegações de que o aluno não consegue aprender, não realiza as atividades propostas, não está alfabetizado, não assimila o conteúdo transmitido, não consegue se concentrar (desatento), é imaturo ou apresenta um ritmo de aprendizagem lento, além de queixas que são expressões do processo de medicalização da Educação, tais como dislexia ou TDA (Transtorno de Déficit de Atenção). Como “problemas de comportamento” citamos como exemplo indisciplina, agressividade, timidez (que pela via da patologização é identificada como apatia) ou agitação (nomeada como hiperatividade, que pode ser associada à desatenção, de modo a compor o diagnóstico de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade).

Subjacentes ao encaminhamento destas queixas ao psicólogo encontram-se a psicologização de questões escolares e o reducionismo do fracasso escolar ao âmbito individual. M. Souza explicita essa ideia ao afirmar a análise de prontuários de atendimentos psicológicos frente à queixa escolar evidencia o predomínio de uma compreensão desta queixa tida como “um problema individual, pertencente à criança encaminhada”, de modo a se interpretar os problemas de escolarização como “dificuldades de aprendizagem cujas causas são de caráter estritamente psicológico” (p. 27). Sendo assim, a autora acrescenta que neste contexto “a causa do fracasso escolar na maioria das práticas psicológicas é entendida como um problema de âmbito emocional, que se revela no início do processo de escolarização em função dos desafios apresentados nesse momento do desenvolvimento da criança”, considerando-se, portanto, que “aquilo que se passa com a criança na escola é um sintoma de conflitos vividos internamente por ela” (pp. 27-8).

Diante disso, M. Souza esclarece que “não se trata de negar a influência dos conflitos psíquicos vivenciados pelas crianças, mas de considerar que as relações escolares contribuem, modificam ou reforçam quaisquer que sejam esses conflitos, criando e recriando

inúmeras outras situações desafiadoras” (pp. 30-1)142. Nesse sentido, a autora questiona a centralidade do funcionamento psíquico como justificativa para a origem da queixa escolar, enquanto se deixa de atentar para aspectos vivenciados no processo de escolarização, que trazem implicações para a vida escolar dos sujeitos e estão envolvidos na produção dessa queixa; reduzida ao âmbito individual, a queixa escolar não é compreendida a partir da complexidade que a constitui, sendo naturalizada. E, então, ao afirmar que “a adesão dos psicólogos ao modelo psicologizante ou medicalizante do atendimento à queixa escolar é um fato”, contextualiza tal adesão, considerando-a “reflexo de uma visão de mundo que explica a realidade a partir de estruturas psíquicas e nega as influências e/ou determinações das relações institucionais e sociais” sobre os fenômenos (e inclusive sobre o próprio psiquismo, do qual também se abstrai sua constituição social), “encobrindo as arbitrariedades, os estereótipos e preconceitos de que as crianças de classes populares são vítimas no processo educacional e social” (M. Souza, 1997, pp. 31-2).

M. Souza enfatiza, ainda, que este modelo clínico psicológico hegemônico, por meio do qual se situa “a queixa escolar num contexto psíquico”, exerce forte influência nas concepções e práticas dos professores ou, mais especificamente, em suas explicações acerca dos “problemas de aprendizagem” (p. 31). Ao abordar essa questão em outro texto, a autora afirma que as principais causas das queixas escolares apresentadas por professores e psicólogos são atribuídas ao psiquismo (com referências a problemas emocionais) e ao funcionamento cerebral (em alusão à ideia de rebaixamento intelectual – deficiência mental – ou problemas neurológicos), o que na maioria dos casos não condiz com a realidade das crianças encaminhadas, embora tais hipóteses sejam legitimadas por meio de laudos e diagnósticos proferidos pelos psicólogos (M. Souza, 2007, p. 52). E, então, ressalta que a principal implicação de se restringir a origem queixa escolar a explicações centradas no indivíduo consiste em se compactuar com a “manutenção de uma escola sabidamente excludente” (p.55), bem como de relações escolares atravessadas pela estigmatização e pelo preconceito que a constituem; nesse sentido, afirma: “desconsiderar a produção do fracasso no conjunto das relações do processo de escolarização dificulta propor ações que venham a modificar, pelo menos minimamente, as relações escolares” (p. 52).

142 Em relação a esse aspecto, a autora também faz alusão à consideração de Patto (1996, p. 296), segundo a qual:

“Mesmo no caso de identificação de uma psicodinâmica familiar dificultadora do bom rendimento escolar, não se pode entender o comportamento escolar de uma criança sem levar em conta a maneira como a escola se relaciona com a subjetividade. Não basta dizer que a criança vem para a escola presa de angústias predominantemente esquizo-paranóides ou depressivas decorrentes das relações familiares que se estabelecem na pobreza. Mesmo nos casos em que isto for demonstrável, é preciso levar em conta a natureza da experiência escolar e suas relações com os temores com os quais a criança pode ter chegado à escola; estas experiências certamente consolidam e aumentam tais temores ou colaboram para sua elaboração e superação”.

175 Ao centrar a causa da queixa escolar no indivíduo, profissionais da Saúde e da Educação (professores e gestores) reproduzem as tradicionais explicações sobre o fracasso escolar e culpabilizam o aluno (ou a família), que é encaminhado para tratamento médico e/ou psicológico. Esta concepção sobre a queixa escolar reduzida ao âmbito individual, que se apresenta em diversas instituições escolares, vem sendo criticada no campo da Psicologia Escolar, conforme se evidencia no livro Orientação à queixa escolar, mencionado acima. Nesse

sentido, diante do questionamento da centralidade da queixa escolar em um âmbito individual, sua gênese passa a ser investigada no processo de escolarização, de modo a atentar para a rede de relações que o configuram, tendo os profissionais da escola, os alunos e as famílias como personagens integrantes dessa rede, cujas versões e hipóteses sobre a produção da queixa escolar são ouvidas, discutidas e problematizadas (B. Souza, 2007a, p.100)143.

A problematização da queixa escolar implica, portanto, a reflexão sobre sua naturalização, sobre a atribuição de suas causas a fatores reduzidos à esfera individual e sobre a reprodução de estereótipos e preconceitos socialmente difundidos que podem embasar as explicações sobre sua origem; envolve a investigação da história escolar do aluno, das relações entre os participantes do contexto escolar e de suas versões sobre a queixa, com base na compreensão de que há uma complexidade de fatores envolvidos no processo de escolarização que estão implicados em sua produção, atravessada por esta rede de relações, pelo funcionamento institucional escolar, pela política educacional e pelo modo como estas dimensões se concretizam no dia a dia escolar e na experiência singular dos sujeitos que a vivenciam144.

As queixas escolares são abordadas na disciplina Psicologia da Educação A durante a

aula sobre preconceitos e estereótipos referentes ao funcionamento intelectual e ao fracasso escolar, em que os estudantes apresentam seminários fundamentados nos textos de Oliveira

143 Esta compreensão sobre a queixa escolar é apresentada por B. Souza (2007a, p. 100), segundo a qual: “Trata-se

de uma abordagem que parte de uma determinada concepção da natureza e da gênese da queixa escolar. Entende-a como aquela que tem, em seu centro, o processo de escolarização. Trata-se de um emergente da uma rede de relações que tem como personagens principais, via de regra, a criança/adolescente, sua escola e sua família. O cenário principal em que surge e é sustentada é o universo escolar. Assim, nosso objeto de investigação/intervenção é esta rede e como as relações entre seus integrantes desenvolvem-se. Considerando que um movimento é construído ao longo de uma história que lhe dá sentido, conhecer e problematizar tal história inclui-se necessariamente no atendimento”.

144 A necessidade de problematização no trabalho do psicólogo frente à queixa escolar é enfatizada por Machado

e M. Souza (1997a, p. 42) e Machado (2000) e os elementos que envolvem esta problematização, mencionados nesse parágrafo, são referidos por M. Souza e Checchia (2003) no texto “Queixa escolar e atuação profissional: apontamentos para a formação de psicólogos”. Não iremos nos deter, neste trabalho, aos elementos constitutivos de uma atuação do psicólogo, em uma perspectiva crítica, diante da queixa escolar – a esse respeito, além dos textos citados neste item, ver Meira e Antunes (2003a; 2003b); indicamos, apenas, o modo como a queixa escolar vem sendo compreendida com base nessa perspectiva.

(1997) e Collares e Moysés (1996). Ao longo dessa aula, os estudantes questionam a atribuição de rótulos e estereótipos vinculados às queixas escolares imputadas aos alunos, cujos recursos e potencial deixam de ser reconhecidos pelos participantes do contexto escolar e por eles mesmos: “Comecei a trabalhar com Educação Infantil e percebo que tem estereótipos criados para as crianças, que qualquer coisa é culpa delas: são desinteressadas, não querem fazer... A professora já rotulou e os alunos dizem que não adianta, porque a professora não acredita neles” (Registro

de observação). Sendo assim, enfatizam que enquanto a origem das queixas é identificada como um problema situado no indivíduo, a culpabilização do fracasso escolar recai sobre esse aluno: “O que a maioria das pessoas pensa é que a pessoa tem algum tipo de distúrbio, dislexia, dificuldade de aprendizagem, sem que seja real; se atribui isso a ela. (...) Mas não quer ver que a escola também tem uma parcela de culpa” (Registro de observação). A partir de então, inicia-se uma

discussão sobre queixa escolar e medicalização da Educação, que será citada no próximo item.

Em Psicologia da Educação B, Clarice dedica um dia de aula para discussão sobre indisciplina, a partir da leitura de dois capítulos do livro Histórias de indisciplina escolar (Freller,

2001), indicados como bibliografia básica145.

Neste livro, Freller problematiza o conceito de indisciplina, de modo a contribuir para a reflexão sobre elementos envolvidos em sua produção no contexto escolar e sobre as concepções naturalizantes socialmente difundidas sobre esse tema, por meio das quais se reproduz a culpabilização do indivíduo. Ao articular os pressupostos da teoria psicanalítica fundamentada na obra de Winnicott a uma perspectiva crítica em Psicologia Escolar, a autora considera que muitas situações de indisciplina “expressam a procura dos alunos [assim como dos professores ou pais] pela satisfação de suas necessidades relativas ao mundo da escola e de sua rede de relações, formuladas de diversas maneiras” (p. 244).

Sendo assim, Freller afirma que a compreensão de que as práticas escolares se constituem em uma sociedade desigual e contraditória e que também são produto e produtoras de conflitos propicia o esclarecimento de que não se trata de buscar “curar” alunos tidos como indisciplinados, que “são essencialmente saudáveis, em busca de interação criativa com o universo apresentado pela escola, de enfrentamento de conflitos e tensões estruturais das relações escolares” (p. 245). E acrescenta que “quando essas necessidades estão impossibilitadas de serem satisfeitas, devido à própria estrutura da

145 Os capítulos deste livro indicados para fundamentar teoricamente essa discussão são “O método” e “O

177 sociedade”, é preciso “esclarecer, apontar o conflito, a tensão, desculpabilizar e despatologizar o aluno, que é quem recebe mais incisivamente a carga da culpa por um fenômeno coletivo” (p. 245). Diante disso, enfatiza a necessidade de explicitar “os determinantes que sustentam práticas escolares humilhantes, ineficientes e insatisfatórias, produzindo encontros e experiências que potencializam comunicações e relações significativas com colegas e com objetos do conhecimento” (p. 246).

Nos dois capítulos discutidos em aula, a autora contextualiza seu trabalho realizado em escolas públicas, voltado para a reflexão sobre cenas de indisciplina ocorridas nestas instituições e sobre formas de enfrentamento desta questão. Esclarece que busca propiciar o diálogo entre os participantes do contexto escolar (“inclusive como alternativa de expressão de conteúdos que, muitas vezes, por falta de canais adequados, são expressos pelas condutas indisciplinadas” – p. 53), a fim de refletir sobre a produção da indisciplina, por meio da circulação das versões de todos esses participantes e de procurar conjuntamente soluções para lidar com tal situação. Nesse sentido, visa problematizar as hipóteses e concepções de todos os envolvidos nesse contexto sobre a indisciplina, atentando para a complexidade de fatores implicados em sua produção (p. 56).

Diante disso, Freller apresenta em seu texto as versões dos alunos, professores e pais sobre a indisciplina, suas causas e estratégias de enfrentamento, de modo a questionar a associação da indisciplina à violência e a estereótipos socialmente difundidos (por meio dos quais se reproduz a culpabilização do aluno), contextualizar sua produção nas instituições escolares, atentar para a humilhação e o preconceito no contexto escolar e ressaltar a necessidade de humanização nas práticas escolares, bem como de interlocução, elaboração coletiva de regras coerentes e significativas e de possibilidades de expressão (inclusive da criatividade) nas escolas (pp. 90-93)146.

Além da indisciplina, as queixas escolares, de modo geral, são brevemente mencionadas em Psicologia da Educação B, durante a aula em que Clarice contextualiza

historicamente os modos de se pensar os problemas de escolarização, apresentando os tradicionais modelos que embasam as explicações sobre o fracasso escolar (psicométrico, clínico, preventivo e a teoria da carência cultural). Nesse contexto, a docente ressalta que com base no modelo clínico, calcado na concepção de que o fracasso escolar é justificado pelo ambiente familiar (ou por seus “desajustes”), a criança é encaminhada por profissionais

146 Como infelizmente não foi possível estar presente neste dia de aula, expusemos sucintamente algumas

considerações gerais sobre indisciplina apresentadas no texto utilizado como referência para discussão desse tema, a fim de ilustrar o modo como essa questão é abordada em Psicologia da Educação B.

da escola para o psicólogo, que realiza um diagnóstico a partir da anamnese – em busca de associações entre a queixa escolar e o processo inicial do desenvolvimento e da socialização da criança – e formula uma hipótese embasada na atribuição da origem dessa queixa ao ambiente familiar, de modo a encaminhá-la para um atendimento psicológico, com acompanhamento dos pais. Clarice acrescenta que diante de uma queixa escolar, muitos profissionais da escola solicitam o encaminhamento do aluno a especialistas (como psicólogos, psiquiatras, neurologistas ou pediatras), que indicam a necessidade de um tratamento medicamentoso. Diante disso, inicia-se uma discussão sobre a medicalização da Educação, que consiste em um tema a ser abordado a partir de então, no próximo item.