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Dimensões social, política e institucional do processo de escolarização

2 O REFERENCIAL TEÓRICO QUE EMBASA A PESQUISA: UMA PERSPECTIVA

2.3 Para além do reducionismo: uma mudança de foco na Psicologia Escolar

2.3.1 Da centralidade do indivíduo para a análise do processo de escolarização e das relações

2.3.1.1 Dimensões social, política e institucional do processo de escolarização

Conforme indicamos anteriormente, com base nessa perspectiva crítica em Psicologia Escolar, fundamentada no pensamento marxista, a análise dos fenômenos estudados na interface entre Psicologia e Educação parte da compreensão da relação entre o processo educacional e a conjuntura social vigente no Brasil, de modo a se atentar para a dimensão

social e política do processo de escolarização64.

Considerar a constituição social e histórica desse processo implica situá-lo, inicialmente, no modo de produção capitalista, que tem como alicerce a divisão de classes, a exploração e o acúmulo do capital. Nesse sentido, a escola é compreendida como uma instituição social, constituída em uma sociedade que apresenta como base de sua estruturação a desigualdade social e cuja política educacional consiste em um dos instrumentos para a legitimação desta ordem social:

63 Nesse contexto, Souza, M. (2000, p. 129) ressalta que o direcionamento do olhar para a vida diária escolar

envolve a investigação de “como é a escola, quem são seus protagonistas, como se constitui, como as mudanças educacionais são recebidas nessa escola, quem são as crianças que a frequentam, como participam do processo de escolarização (...), o que se passa no contexto escolar, como as crianças ingressam na escola, quais as suas expectativas”.

64 Segundo Patto (1997d, p. 467), a análise dos processos que se dão na vida diária escolar envolve “suas relações

As raízes da insuficiência do ensino oferecido na maior parte das escolas públicas só podem ser alcançadas se não esquecermos que a escola é uma instituição social, que a sociedade que a inclui é uma sociedade extremamente desigual e injusta e que a política educacional é um dos instrumentos de reprodução deste estado de coisas (Patto, 2005, p. 49).

É nesse sentido que, ao contextualizar o processo educacional no modo de produção capitalista brasileiro, Patto ressalta que o descaso do Estado em investir na educação pública de qualidade consiste em um aspecto fundante do modo como o processo de escolarização se configura em muitas escolas públicas no Brasil (1997c, p. 291)65. A produção do fracasso escolar consiste, justamente, em uma das implicações desta falta de interesse do Estado em garantir efetivamente uma educação de qualidade para a população por estar a serviço dos interesses da classe dominante e da manutenção do status quo:

A produção do fracasso escolar está assentada, em grande medida, na insuficiência de verbas destinadas à educação pública e na sua malversação. Ao contrário do que afirma a ideologia liberal, o Estado, nas sociedades capitalistas – e isto é mais óbvio nas sociedades capitalistas do Terceiro Mundo – não está a serviço dos interesses de todos os cidadãos, mesmo porque os interesses de dominantes e dominados são inconciliáveis. Num país como o Brasil, é cada vez mais evidente que o Estado serve aos interesses do capital e investe em educação escolar somente na medida exigida por esses interesses. Falta de dinheiro significa educadores mal pagos e aí tem início uma cadeia de fatos cujo resultado último é a má qualidade do ensino (1997c, p. 289).

Ao explicitar os elos desta cadeia de fatos envolvidos na produção do fracasso escolar, Patto ilustra como estão articulados os aspectos sociais, políticos, institucionais e relacionais que configuram o processo de escolarização. Segundo a autora, em decorrência da falta de investimento do Estado na educação pública, tem-se a má remuneração e desvalorização dos professores, que são submetidos a péssimas condições de trabalho e à posição de submissos nas relações de poder estabelecidas nas escolas, cuja infraestrutura também é precária:

65 O secular descaso do Estado em investir na educação pública de qualidade é mencionado por Patto, por

exemplo, nas seguintes afirmações: “É visível, nesse discurso, a ausência de menção à exploração, à desigualdade social de oportunidades, à dominação cultural e às práticas de exclusão. (...) Há um silêncio significativo a respeito da corrupção e da malversação das verbas públicas e do descaso do Estado pela educação popular” (1997a, p. 23); “Quem conhece por dentro o cotidiano da maioria das escolas públicas, sobretudo das que se situam nas regiões mais empobrecidas e desatendidas da cidade, sabe que sob a aparência de melhora esconde-se uma realidade que agride e frustra diariamente os participantes da vida escolar. Tudo isso decorre do conhecido e sistemático descaso dos governantes pela educação popular, numa sociedade em que os que pertencem às classes populares sempre foram e continuam a ser tratados como súditos” (2005, p. 30).

65 Mencionemos alguns elos desta cadeia: em primeiro lugar, é preciso lembrar que a quase totalidade do corpo docente da escola primária, até a 4ª série, é constituída de mulheres da classe média média e média baixa que não trabalham mais por ‘amor à arte’, mas porque precisam complementar o orçamento doméstico. Como donas de casa, acabam muitas vezes tendo uma tripla jornada de trabalho (duas profissionais e uma doméstica). Além dessa sobrecarga, carregam o peso de sua desvalorização num sistema educacional que, a partir dos anos setenta, parcelou o trabalho pedagógico, transformando-o numa verdadeira ‘linha de montagem’ na qual os técnicos (orientadores, assistentes pedagógicos, psicólogos, supervisores etc.) supostamente sabem mais, têm mais poder e maiores salários que os professores, são meros executores de decisões superiores, reduzidos à condição de ‘trabalhadores braçais’ mal remunerados. Num dia a dia atribulado, não há tempo para ler, estudar, informar-se. Em condições materiais de trabalho em geral precárias – prédios em más condições físicas, falta de material didático e de consumo, falta de funcionários, períodos escolares muito curtos etc. –, essas trabalhadoras da educação também desenvolvem ‘estratégias’ para sobreviver... (1997c, p.290)

Associada a este descaso do Estado em investir no ensino público de qualidade, encontra-se uma política educacional pautada pela dualidade do ensino. O caráter dual da Educação no Brasil, expresso pela cisão entre a educação destinada à formação da classe dominante (com base na concepção de que a elite deve ser responsável pelo trabalho intelectual) e a educação oferecida à classe dominada (a quem se destina o trabalho braçal), revela o interesse do Estado pela manutenção da ordem social vigente: “a escola alienada e alienante que aí se encontra” está voltada para “formar a mão de obra necessária ao desenvolvimento econômico de uma sociedade urbano-industrial capitalista” (Patto, 1997b, p. 268)66. Desse modo, Patto afirma que a escola pública brasileira, nos Ensinos Fundamental e Médio, “sempre foi tratada pelos governantes muito mais como instituição profissionalizante ou disciplinadora do que como lugar de socialização de habilidades e saberes como direito de

todos” (2005, p. 25 – grifos da autora).

Nesse sentido, ao se referir à política educacional brasileira, “desde sempre ambígua na declaração de seus propósitos, tecnicista em matéria pedagógica e antidemocrática nos princípios políticos que a norteiam” (Patto, 2005, p. 10), a autora ressalta o distanciamento entre o discurso oficial teoricamente democratizante e a realidade das práticas escolares que evidencia a precarização da educação pública no Brasil (2005, p. 33).

É importante ressaltar que esta dimensão social do processo de escolarização envolve a compreensão de sua contextualização histórica. Ou seja, a análise do processo educacional

66 Patto também faz alusão à dualidade no ensino ao afirmar: “Esse tipo de escola secundária consagra o dualismo

educacional. Visando preparar uma elite dirigente, significa que outros ramos de ensino deveriam preparar os que seriam dirigidos. (...) É como se houvesse uma adolescência apta a pensar e a exercer as profissões mais valorizadas socialmente – a que pertence às classes dominante e intermediária – e outra a agir e a exercer as profissões manuais – a que pertence às classes dominadas” (1996, p. 103).

deve ser situada na conjuntura social brasileira, compreendida no interior de um processo que se constitui historicamente e que apresenta as especificidades de um determinado contexto histórico.

Além disto, a investigação do objeto estudado no campo da Psicologia Escolar também exige a apreensão do modo como este objeto se constituiu historicamente nesta área do conhecimento. Ao se dedicar ao estudo sobre o fracasso escolar, Patto (1996) investiga as raízes históricas das concepções proferidas teoricamente sobre este tema na interface entre Psicologia e Educação e situa a produção dessas ideias no contexto social brasileiro (apresentadas nos capítulos intitulados “Raízes históricas das concepções sobre o fracasso escolar: o triunfo de uma classe e sua visão do mundo” e “O modo capitalista de pensar a escolaridade: anotações sobre o caso brasileiro”). Sendo assim, a autora reitera a necessidade de que os psicólogos atentem para a historicidade da Psicologia e afirma que eles “precisam estar cientes de que as teorias são construções culturais que só podem ser entendidas se pensadas no interior da história econômica, social e política de um país” (2005, p. 101).

Sendo assim, diante da relevância de situar a reflexão sobre o processo educacional em sua dimensão social e política na atual conjuntura brasileira, Patto refere-se à política educacional vigente nesta conjuntura social. No livro Exercícios de indignação (2005), a autora

analisa algumas políticas públicas implantadas nos anos 1990 e 2000 no processo educacional brasileiro, como, por exemplo, o Plano Nacional de Educação de 1995 (pp. 29-40; 47-55), bem como programas da política educacional do Estado de São Paulo, tais como os Programas de Classes de Aceleração (p. 17-28) e a Progressão Continuada (pp. 41-45). Dentre as considerações apresentadas pela autora sobre a política educacional brasileira nas últimas décadas, encontra-se a manutenção da dualidade do ensino e do descaso do Estado em investir na educação pública de qualidade como cerne da política educacional brasileira, mencionados anteriormente:

Na área da educação, a política dos anos 90 esteve longe de atacar os reais problemas que instalam a dualidade escolar no coração da sociedade brasileira. Ministros e secretários da educação buscaram, como regra, a melhoria das estatísticas educacionais e o barateamento dos investimentos públicos em educação. Como cortina de fumaça, a retórica da ‘inclusão escolar’, como se não soubessem da impossibilidade dela num país que jamais foi democrático e de uma política educacional pautada em crescente e espantoso descaso pela formação escolar (Patto, 2005, p. 10).

Diante do exposto, pode-se perguntar se, em essência, a política educacional brasileira não continua a mesma. Continua a destinação de verbas ao ensino pago,

67 numa clara tendência privatizante que marca a história da educação brasileira (...); numa sociedade que nunca foi democrática, a promessa de democratização da educação escolar não passa de demagogia enquanto uma parcela insuficiente do PIB for destinada à educação, numa clara demonstração de que a meta dos governantes continua sendo o ensino barato. (...) Entre os problemas que ainda permanecem, (...) [encontra-se] o cerne da miséria da política educacional brasileira: o descaso secular pela instrução pública (Patto, 2005, pp. 52-53).

Neste contexto, Patto refere-se a três aspectos presentes na política educacional vigente nos últimos anos no Brasil, subjacentes ao discurso oficial que preconiza a democratização do ensino. O primeiro seria o barateamento do custo da educação popular aos cofres públicos, a fim de se ajustar a economia nacional à lógica do mercado; o segundo seria aumentar os índices numéricos de escolaridade, sem importar a qualidade do ensino público; e o terceiro seria “dar aos excluídos a ilusão de que estão sendo incluídos na escola e, pela obtenção do diploma, no universo do trabalho” (Patto, 2005, p. 33).

Enfim, no processo de análise da política educacional “no interior das relações de poder numa sociedade de classes extremamente desigual (...), reformas e projetos recentes são entendidos no marco do barateamento da educação pública no bojo do neoliberalismo e da globalização” (Angelucci, Kalmus, Paparelli & Patto, 2004, p. 64) e se atenta para as consequências dessas políticas sobre o funcionamento institucional e as relações estabelecidas na instituição escolar.

Associada, portanto, a estes elementos sociais e políticos que constituem o processo de escolarização, apresentados até o presente momento, encontra-se sua dimensão

institucional.

De acordo com Patto (2005), a política educacional brasileira vigente produz nas escolas públicas uma “dinâmica institucional, muitas vezes difícil e até cruel, que traz danos diários a todos os envolvidos no processo: técnicos, administradores, professores, funcionários, alunos e famílias usuárias da escola” (pp. 19-20).

Nesta dinâmica institucional, tem-se a presença de um “Estado-patrão” como um “patrão que paga mal, seleciona como pode, não oferece condições materiais, pedagógicas e psicológicas adequadas ao exercício da profissão” desempenhada nas escolas e que, além de desenvolver uma “política tecnicista de capacitação docente”, “avalia a qualidade dos serviços prestados apenas por indicadores numéricos, sempre passíveis de manipulação” (op. cit., p. 23).

Neste contexto, sem poder de participação efetiva na tomada de decisões relativas ao funcionamento institucional ou ao trabalho docente, os professores têm sua função reduzida à

execução de projetos e sucessivas reformas elaboradas e planejadas por especialistas (p. 25). Esta descontinuidade de propostas pedagógicas e administrativas implantadas nas escolas também é referida por Patto, ao afirmar que “a história das escolas no Brasil é feita de mudanças pedagógicas e administrativas que, introduzidas numa sucessão vertiginosa e desrespeitosa, atropelam o saber institucional e contribuem para o seu progressivo desconcerto” (2005, p. 101).

Além da burocratização do trabalho, outros elementos desta dimensão institucional configuram-se como desafios concretos para a qualidade do ensino nas escolas públicas, tais como: a precariedade da infraestrutura das escolas, incluindo péssimas condições de suas instalações físicas e das condições de trabalho dos professores, a falta de material didático, bem como de profissionais nas escolas, a concentração de um grande número de alunos por sala de aula, a falta de tempo e de condições para a efetivação do planejamento (individual e coletivo) das atividades pedagógicas ou para discussão, reflexão e estudo (Patto, 1997c, p. 290).

Ao se referir às más condições de trabalho dos professores, Patto remete-se às considerações apresentadas por Florestan Fernandes67 sobre o desrespeito a essa categoria profissional, que abrange três aspectos: baixa remuneração (que os submete à sobrecarga de trabalho), má qualidade dos cursos de formação docente e exclusão do processo de decisões administrativas e pedagógicas (ou seja, falta de participação nas deliberações sobre a política educacional e sobre a atividade docente nas escolas) (Patto, 2005, pp. 29-30)68.

É importante ressaltar que o modo como os elementos sociais e políticos envolvidos no processo educacional atravessam e configuram o funcionamento das instituições escolares não é homogêneo. A dinâmica institucional em cada escola apresenta sua especificidade, seus movimentos e contradições, que precisam ser analisados juntamente com as relações de poder que compõem a vida diária escolar69.

67 Fernandes, Florestan (1989).

O desafio educacional. São Paulo: Cortez/Autores Associados.

68 Com base nestas ideias, Patto afirma, em outro capítulo, que um dos requisitos para a educação de qualidade

seria a valorização do professor, que contemplaria os três aspectos mencionados anteriormente: a boa formação do educador como um trabalhador intelectual, de modo a transcender os treinamentos técnicos e burocráticos (com possibilidade de crítica da realidade brasileira e da educação, reflexão sobre a natureza ideológica do preconceito, discussão sobre o lugar real e o possível da escola pública em uma sociedade de classes); a remuneração justa (de modo a lhe permitir uma vida digna, a fruição dos produtos da cultura intelectual e o estudo, além da redução da sobrecarga de trabalho) e a democratização do planejamento da atividade docente (com participação nas decisões pedagógicas e administrativas) (Patto, 2005, pp. 43-44).

69 Segundo Patto: “A burocracia não tem o poder de eliminar o sujeito; pode, no máximo, amordaçá-lo. Palco

simultâneo da subordinação e da insubordinação, da voz silenciada pelas mensagens ideológicas e da voz consciente das arbitrariedades e injustiças, lugar de antagonismo, enfim, a escola existe como lugar de contradições que, longe de serem disfunções indesejáveis das relações humanas numa sociedade patrimonialista, são a matéria-prima da transformação possível do estado de coisas vigente em instituições como as escolas

69 Ao investigar a realidade concreta da dinâmica institucional e as relações que se configuram no dia a dia em uma determinada escola pública de São Paulo, durante a pesquisa publicada no livro A produção do fracasso escolar (1996), Patto considera as especificidades da

vida diária nessa escola, de modo a não considerá-la uma instituição abstrata ou recair em generalizações, enquanto evidencia o contexto social em que esta se insere:

Em busca de algum conhecimento sobre a trama de inter-relações e do sentido das práticas e processos observáveis numa escola de bairro periférico e de suas relações com a produção do fracasso escolar de tantos de seus alunos, fomos ao encontro de um bairro, de uma escola e das pessoas que os integram. (...) Este não é, portanto, um estudo sobre o professor, a escola pública, o aluno reprovado e a família

carente, mas sobre educadores que atuam numa escola situada num bairro onde habitam crianças e adultos num certo sentido únicos mas que nem por isso deixam de ser porta-vozes dos que vivem em condições sociais de exploração e opressão. (...) Realizamos em síntese, um estudo no qual a atenção do pesquisador esteve voltada para a especificidade da situação e das pessoas pesquisadas (Patto, 1996, pp. 4-5; 160 – grifos da autora).

É, portanto, a partir de tal contextualização do processo de escolarização que se realiza a análise das relações entre os sujeitos que configuram o dia a dia dessa escola e de sua história escolar, conforme mencionaremos no próximo item. Antes de darmos continuidade a tal exposição, devemos ressaltar que contribuições de demais autores em pesquisas recentes, no campo da Psicologia Escolar nesta perspectiva crítica, para a compreensão das dimensões social, política e institucional da escolarização e o modo como tais questões são abordadas ao longo das disciplinas investigadas na pesquisa de campo, serão apresentados no quarto capítulo.