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O caráter ideológico do reducionismo de questões sociais ao âmbito individual

2 O REFERENCIAL TEÓRICO QUE EMBASA A PESQUISA: UMA PERSPECTIVA

2.2 O questionamento do reducionismo de fenômenos social e historicamente constituídos ao

2.2.1 O caráter ideológico do reducionismo de questões sociais ao âmbito individual

Em Psicologia e ideologia, Patto (1984, pp. 82-83) evidencia a contribuição das

considerações apresentadas por Chauí para a compreensão do conceito de ideologia utilizado em uma perspectiva crítica em Psicologia Escolar, referindo-se à ideia de “dissimulação e ocultamento da divisão social” presente neste conceito.

De acordo com Chauí, no livro Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas, a

ideologia como “forma específica do imaginário social moderno” consiste na:

(...) maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que

não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou a dissimulação do real (1981, p. 3 – grifo da autora).

Partindo desta definição, Chauí esclarece que o discurso ideológico pretende “coincidir com as coisas e anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser”, identificando o pensamento à realidade e o sujeito à imagem da classe dominante (1981, p. 3). A autora enfatiza que este discurso é lacunar, ou seja, possui brechas, silêncios, espaços em branco em suas explicações, que se configuram como garantia de sua legitimação: “a ideologia ganha coerência e força porque é um discurso lacunar que não pode ser preenchido (...); é aquele discurso no qual os termos ausentes garantem a suposta veracidade daquilo que está explicitamente afirmado” (pp. 3-4). Assim, a ideologia omite as contradições inerentes a seu discurso e à sociedade capitalista vigente, ocultando a exploração e a opressão que estão na

43 base deste modo de produção e justificando a desigualdade social, contribuindo, portanto, para a sua perpetuação39.

Este ocultamento das contradições associa-se à necessidade de se evitar o questionamento e a reflexão, buscando-se garantir o reconhecimento do discurso ideológico como verdadeiro; segundo Chauí, “para que a ideologia seja eficaz é preciso (...) recusar o não saber que habita a experiência, (...) neutralizar a história, abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda tendência de interrogação” (1981, p. 5).

Deste modo, a ideologia distancia-se do saber (instituinte; com permanente reflexão,

crítica e indagação) e prioriza o conhecimento (instituído; como um pensamento cristalizado,

naturalizado, avesso à interrogação) e, nesse sentido, a ideologia é o discurso do conhecimento40. Sendo assim, as teorias científicas produtoras de conhecimento (e não de saber), a favor da manutenção do estado de coisas, apenas reconhecem o que preconizam, coincidindo com o senso comum e reforçando-o (p. 6).

Diante disso, Chauí acrescenta que este discurso científico, enquanto discurso do conhecimento, torna-se um discurso competente41, à medida que sendo proferido por um especialista a partir de um determinado ponto da hierarquia social, “ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado” (p. 7), autoriza-o a falar e “transmitir ordens aos degraus inferiores” desta hierarquia, sem se inspirar “em idéias e valores, mas na suposta realidade dos fatos e na suposta eficácia dos meios de ação”, visando a “dissimular sob a capa da cientificidade a existência real da dominação” (p. 11, sic.) e consistindo, portanto, em uma

39 Essa questão é reiterada por Chauí no livro O que é ideologia (1983), em que a autora esclarece que “além de

procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas idéias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas” (p. 21 – sic.). A esse respeito, a autora acrescenta que “a ideologia consiste precisamente na transformação das idéias da classe dominante em idéias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das idéias)” (p. 93-94); e esclarece, ainda, que “a ideologia é resultado da luta de classes e tem por função esconder a existência dessa luta. Podemos acrescentar que o poder ou a eficácia da ideologia aumentam quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da divisão social em classes e a luta de classes” (p. 89-90).

40 Segundo Chauí (1981), “só há saber quando a reflexão aceita o risco da indeterminação que a faz nascer,

quando aceita o risco de não contar com garantias prévias e exteriores à própria experiência e à própria reflexão que a trabalha. (...) A ideologia teme tudo quanto possa ser instituinte ou fundador, e só pode incorporá-lo quando perdeu a força inaugural e tornou-se algo já instituído. Por essa via podemos perceber a diferença entre ideologia e saber, na medida em que, neste, as idéias são produto de um trabalho, enquanto naquela as ideias assumem a forma de conhecimentos, isto é, de idéias instituídas” (p. 5, sic.).

41 Segundo Chauí, o discurso competente corresponde ao discurso que, por haver perdido os laços com a sua

poderosa “arma para um fantástico projeto de dominação e de intimidação social e política” (p. 13).

Antes de nos referirmos especificamente ao caráter ideológico de teorizações psicológicas que se configuram como expressão deste discurso competente ao preconizar o reducionismo de questões sociais ao âmbito individual, passaremos a nos deter, neste momento, às considerações referentes à inversão subjacente ao conceito de ideologia, a partir

das proposições de Marx, apresentadas no capítulo 1 de O capital (2013), para então fazermos

alusão à inversão ideológica no cerne de tais teorizações.

A fim de contextualizar esta ideia de inversão como um elemento constitutivo da ideologia, desenvolvida por Marx ao longo do capítulo intitulado “A mercadoria”, do Livro I

de O capital, ilustraremos brevemente o modo como a inversão encontra-se presente na

consolidação do conceito de ideologia, realizada por Marx.

No Dicionário do pensamento marxista (Bottomore, 2001, pp. 183-187), são explicitadas

algumas fases das referências de Marx ao conceito de ideologia.

Na primeira fase, que compreende o período entre seus primeiros escritos e o ano de 1844, embora a expressão ideologia não compareça nos textos de Marx, os elementos básicos

deste conceito podem ser identificados em sua crítica à religião e à concepção de Hegel sobre o Estado, “definidas como ‘inversões’ que obscurecem o verdadeiro caráter das coisas”, considerando-se que “a fonte da inversão ideológica é uma inversão da própria realidade” (op. cit., p. 184).

Na segunda fase, que se inicia com o rompimento de Marx com Feuerbach em 1845 e segue até o ano de 1857, o conceito de ideologia é utilizado pela primeira vez, no contexto em que Marx conserva a ideia de inversão e a amplia, de modo a abranger a crítica da religião e da filosofia de Hegel, desenvolvida pelos jovens hegelianos (2001, p. 184). Sendo assim, partindo da realidade material, Marx considera que os verdadeiros problemas da humanidade são as “contradições sociais reais” e não as “ideias errôneas”, sendo essas uma consequência daquelas42; e que, então, enquanto os homens são incapazes de resolver estas contradições na prática, por forças das limitações da realidade material, projetam-nas em “formas ideológicas

42 “Assim, a inversão que Marx passa a chamar de ideologia subsume tanto os velhos como os jovens hegelianos e

consiste em partir da consciência em vez de partir da realidade material” (2001, p. 184). No “Posfácio” da segunda edição do Livro I de O capital (2013, pp. 90-91), Marx explicita essa questão, ao afirmar que: “Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem. (...) A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne radical dentro do invólucro místico”.

45 de consciência”, que consistem em “soluções puramente espirituais ou discursivas que ocultam efetivamente, ou disfarçam, a existência e o caráter dessas contradições. Ocultando- as, a distorção ideológica contribui para a sua reprodução e, portanto, serve aos interesses da classe dominante” (p. 184)43.

A terceira fase tem início em 1858, com a redação dos Grundrisse (2011) e culmina com O capital (2013). Ao analisar as relações sociais capitalistas, Marx contribui para a elucidação

de que “a conexão entre ‘consciência invertida’ e ‘realidade invertida’ é mediada por um nível de aparências que é constitutivo da própria realidade” (2001, p. 184). Desse modo, a ideologia “oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente” (p. 184). Esse conceito aplica-se, portanto, “às distorções relacionadas com o ocultamento de uma realidade contraditória e invertida”(p. 185).

Ao longo do capítulo “A mercadoria” de O capital, Marx (2013) ilustra esta inversão

ideológica e, conforme veremos a partir de agora, propicia a compreensão de que a ideologia oculta as contradições do objeto, que está invertido (a própria realidade no modo de produção capitalista encontra-se invertida), de modo a reproduzi-lo tal como aparece; consiste, portanto, em uma representação, uma forma de consciência imediata, que serve como instrumento de dominação e manutenção da ordem social. Esse aspecto pode ser exemplificado pelo fato de que, na sociedade capitalista, as relações sociais são marcadas pela desigualdade, opressão, dominação e exploração, no entanto, por meio da ideologia, estas relações aparecem como igualitárias e como expressão de liberdade.

Na análise sobre a mercadoria, desenvolvida por Marx neste texto, subjaz a crítica da representação. Enquanto no início do capítulo a mercadoria aparece como algo trivial, Marx revela, ao longo do texto, suas determinações (representação, valor e fetiche) e propicia uma

43 Na Ideologia alemã (2007), Marx e Engels afirmam que “os homens são os produtores de suas representações, de

suas ideias e assim por diante, mas [como] homens reais, ativos (....); se em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, esse fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico. Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. (...) Os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (p. 94). Nesse sentido, esclarecem que “as ideias dominantes não são nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. (....) [Os indivíduos que compõem a classe dominante] dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, suas ideias são as ideias dominantes da época” (p. 47).

mudança na forma de consciência, ao ir da representação para a essência da mercadoria. Ou seja, inicia o texto referindo-se à mercadoria como expressão de valor de uso e valor de troca. Assim, define-a tal como aparece, no nível da representação, que oculta o valor e o fetiche como determinações da mercadoria. Ao criticar a representação, Marx inverte a inversão, analisando dialeticamente o sistema de produção mercantil, a partir da mercadoria – a unidade mais simples, a célula da economia capitalista44.

Marx inicia, portanto, este primeiro capítulo referindo-se à mercadoria tal como esta aparece, como algo trivial: “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer” (2013, p. 113). Ao analisar a mercadoria ao longo do texto, o autor descreve suas determinações, que consistem em características ou propriedades essenciais que definem o objeto45.

A primeira determinação expressa uma representação da mercadoria, definida tal como aparece, ou seja, como valor de uso e valor de troca: “inicialmente, a mercadoria apareceu-nos como um duplo de valor de uso e valor de troca” (op. cit., p. 119). Na segunda determinação, a mercadoria é definida como suporte material do valor (carrega valor em função do trabalho humano despendido na produção da mercadoria), de modo a revelar o valor que estava oculto: “elas só são mercadorias porque são algo duplo: objetos úteis e, ao mesmo tempo, suporte de valor” (p. 124); “a mercadoria é valor de uso – ou objeto de uso – e valor” (p. 136). A terceira determinação postula a mercadoria como uma forma do valor, ou seja, que exprime o valor: “por meio da relação de valor, a forma natural da mercadoria B converte-se na forma de valor da mercadoria A, ou o corpo da mercadoria B se converte no

espelho do valor da mercadoria A” (p. 129). A quarta determinação define a mercadoria como

fetiche (mercadoria é/tem caráter de fetiche): “Mas tão logo [a madeira] aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível” (p. 146)46.

Neste contexto, Marx explicita alguns aspectos relevantes para a compreensão dessa inversão ideológica. Inicialmente, é importante destacar a ideia de que valor é uma propriedade imanente da mercadoria, comum a todas as mercadorias: “como cristais dessa substância social que lhes é comum, elas são valores – valores de mercadorias” (p. 116). E o valor pode ser medido por meio da quantidade de trabalho socialmente necessário (ou dispêndio de energia física e mental) para a produção da mercadoria: “portanto, é apenas a

44 No “Prefácio” da primeira edição do Livro I de O capital, Marx refere-se à mercadoria como célula do modo de

produção capitalista ao afirmar: “Para a sociedade burguesa, porém, a forma mercadoria do produto do trabalho ou a forma de valor da mercadoria, constitui a forma econômica celular” (2013, p. 78).

45 Conforme Chauí ( 1983, p. 101) explicita, “determinação significa: características intrínsecas a uma realidade e

que foram sendo produzidas pelo processo que deu origem a essa realidade”.

47 quantidade de trabalho socialmente necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso que determina a grandeza de seu valor” (p. 117). Além disso, as condições sociais de produção interferem no valor (apenas é possível medir o valor da mercadoria, dadas as condições sociais de produção); ou seja, embora o valor apareça (como representação) no mercado na esfera da circulação, ele é gerado na esfera da produção: “Como regra geral, quanto maior é a força produtiva do trabalho, menor é o tempo de trabalho requerido para a produção de um artigo, menor a massa de trabalho nele cristalizada e menor seu valor” (p. 118) – ou ainda: “não é a troca que regula a grandeza de valor da mercadoria, mas, inversamente, é a grandeza de valor da mercadoria que regula suas relações de troca” (p. 139).

E, então, ao fazer alusão à forma do valor da mercadoria, Marx explicita a materialidade social do valor47. O valor de uma mercadoria não é apreensível de forma imediata e, sim, por mediação de outra mercadoria, que, como um espelho, cede seu corpo para expressar o valor da primeira48. Assim, enquanto o valor de uso consiste em uma forma natural da mercadoria (uma propriedade física), o valor é uma forma social (uma propriedade social, produto do trabalho humano e, portanto, com materialidade social). O valor apenas se expressa socialmente na relação de uma mercadoria com as outras, ou seja, a expressão material do valor, que está oculto, só é obtida pela mediação de outra mercadoria. Portanto, o fato de que uma mercadoria expressa o valor de outra implica uma relação social entre mercadorias, uma relação mediada por mercadorias.

Diante da explicitação desta dimensão social do valor, Marx evidencia o poder que o modo de produção capitalista e as mercadorias (que são produtos do homem) exercem sobre o próprio homem (que se constitui social e historicamente, como produto e produtor da sociedade e das relações sociais49); nesse sentido, afirma que no capitalismo “a forma

47 O caráter social do valor também está presente em sua vinculação com o trabalho socialmente necessário para

a produção da mercadoria. Segundo Marx: “as mercadorias possuem objetividade de valor apenas na medida em são expressões da mesma unidade social, do trabalho humano, pois sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é evidente que ela só se manifestar numa relação social entre mercadorias. Partimos do valor de troca ou da relação de troca das mercadorias para seguir as pegadas do valor que nelas se esconde” (2013, p. 125).

48 Segundo Marx, “como a forma de valor relativa de uma mercadoria, por exemplo, o linho, expressa sua

qualidade de ter valor como algo totalmente diferente de seu corpo e de suas propriedades, como algo igual a um casaco, essa mesma expressão esconde em si uma relação social” (p. 134); “Por meio de sua forma valor, o linho se encontra agora em relação social não mais com apenas outro tipo de mercadoria individual, mas com o mundo das mercadorias” (p. 139); “Com isso, revela-se que a objetividade do valor das mercadorias, por ser mera ‘existência social’ dessas coisas, também só pode ser expressa por uma relação social universal, e sua forma de valor, por isso, tem de ser uma forma socialmente válida” (p. 142); “A forma valor universal, que apresenta os produtos de trabalho como meras geleias de trabalho humano, mostra por meio se sua própria estrutura, que ela é a expressão social do mundo das mercadorias. Desse modo, ela revela que, no interior desse mundo, o caráter humano universal do trabalho constitui seu caráter especificamente social” (p. 143).

mercadoria é a forma universal do produto de trabalho e, portanto, também a relação entre homens como possuidores de mercadorias é a relação social dominante” (p. 136) e que nela “o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção” (p. 156)50. No entanto, esta relação aparece, como representação, de forma invertida, de modo a parecer que o homem domina a produção e as mercadorias; sendo assim, Marx explicita essa inversão e revela as contradições que estão ocultas nesse processo. Uma das contradições do capitalismo consiste no fato de que o trabalho pode ser socializado, mas o produto não, pois é produzido na forma mercadoria (o produto e os meios de produção não são socializados no modo de produção capitalista, em que a desigualdade social é estrutural). Enquanto as relações sociais na sociedade capitalista aparecem como livres e igualitárias, Marx denuncia a exploração que está na base deste modo de produção51.

Esta aparente dominação do homem sobre a mercadoria, mencionada acima, também é referida por Marx ao fazer alusão ao caráter fetichista da mercadoria; ao longo de sua análise sobre o fetichismo, o autor evidencia a inversão que se opera na relação entre os homens e as coisas (ou entre sujeito e objeto) no modo de produção capitalista:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. (...) É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (...) Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação uma com as outras e com os homens. (...) A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos de trabalho, tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a análise anterior já mostrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias (2013, pp. 147-148).

50 A ideia da dominação do modo de produção capitalista e da mercadoria sobre homem é ilustrada por Marx nos

Manuscritos econômico-filosóficos: “A produção produz o homem não somente como uma mercadoria, a mercadoria