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Queixa escolar e medicalização da Educação (a patologização da queixa

3 CAMINHOS PERCORRIDOS NA PESQUISA DE CAMPO: TRAJETÓRIA E

4.1 Contextualização das disciplinas Psicologia da Educação A e B

4.2.2 A queixa escolar

4.2.2.2 Queixa escolar e medicalização da Educação (a patologização da queixa

Medicalização consiste no processo por meio do qual “praticamente todos os problemas da esfera da vida humana – pode-se dizer a própria vida humana” – são transformados em “questões de ordem biológica, individual, portanto inerentes ao campo de atuação médica” (Moysés, 2001 p.84), ou seja, refere-se à “transformação de questões sociais, humanas, em biológicas”, de modo a se aplicar à vida o determinismo biológico, “sendo tudo reduzido ao mundo da natureza” (op.cit., p. 176).

No livro intitulado A institucionalização invisível: crianças que não-aprendem-na-escola,

Moysés (2001) analisa historicamente a medicalização da vida e se detém, em grande profundidade, a uma de suas expressões: a medicalização da Educação ou do processo de ensino e aprendizagem147. A autora explicita a normatização, a prescrição e a predição presentes no discurso médico que incita o “processo de medicalização do comportamento humano”, “transformando em objeto biológico algo social e historicamente construído [e] reduzindo a própria essência da historicidade do objeto – a diferença, o questionamento – a características inerentes ao sujeito-objeto, inatas, biológicas; a uma doença, enfim” (p. 179). E, então, contextualiza a incidência deste discurso médico ou do olhar clínico sobre a aprendizagem, por meio do qual se “medicaliza a educação, transformando os problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas, médicas” (p. 191).

147 Neste livro, Moysés utiliza os termos “medicalização do comportamento e da aprendizagem” (2001, p. 171),

além de “medicalizar a educação” e em textos recentes redigidos juntamente com Collares, as autoras também se referem à “medicalização do processo de ensino-aprendizagem” (Moysés & Collares, 2010, p. 197).

179 Nesse contexto, Moysés esclarece que com base nesse olhar clínico, que “abstrai e silencia” o sujeito (“que, de histórico e concreto, é tomado por objeto”), a Medicina debruça- se com sua normatização sobre a aprendizagem (p. 172), “cria as entidades nosológicas das doenças do não-aprender-na-escola e para elas propõe solução. Antecipando, prevê que os problemas irão ocorrer e se coloca como portadora das soluções” (p. 191). Acrescenta que diante disso, “crianças inicialmente normais são tornadas incapazes de aprender-na-escola, por uma instituição que vem sendo historicamente construída de um modo que inviabiliza o processo ensino-aprendizagem, que se organiza em torno do não aprender” (p. 255); e conclui afirmando que “crianças inicialmente normais são tornadas doentes, ao serem submetidas a olhares que não as vêem, olhares que só conseguem enxergar defeitos, carências, doenças (...). Expropriadas de sua normalidade (...), adoecem... Estigmatizadas (...). Institucionalizadas” (p. 255).

A medicalização do processo de ensino e aprendizagem é referida, portanto, como um “processo de biologização [que] geralmente se manifesta colocando como causas do fracasso escolar quaisquer doenças das crianças. Desloca-se o eixo de uma discussão político-pedagógica para causas e soluções pretensamente médicas” (Moysés & Collares, 2010, p. 197).

No campo da Psicologia Escolar, as discussões sobre a medicalização da Educação (do processo de escolarização ou do ensino e aprendizagem) têm-se intensificado nos últimos anos, o que pode ser ilustrado por meio da realização de pesquisas nessa área e publicação de artigos e livros como Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos, organizado pelo Conselho Regional de

Psicologia de São Paulo e pelo Grupo Interinstitucional de Atendimento à Queixa Escolar (2010), em que diversos autores abordam esse tema.

Em um dos capítulos desse livro, M. Souza (2010, p. 63) esclarece que nesse processo de medicalização, enquanto os problemas de escolarização são reduzidos a questões biológicas ou orgânicas, assistimos ao retorno da teoria organicista, mencionada anteriormente como uma das tradicionais teorizações sobre o fracasso escolar, preconizada no Brasil por volta dos anos 1960, por meio da qual o fracasso era justificado por um distúrbio de aprendizagem atribuído a uma disfunção localizada no organismo do indivíduo. Nesse sentido, a autora ressalta que a partir dos anos 2000, com o avanço dos estudos em Neurologia, Neuropsicologia e Genética, “as explicações organicistas retornam com roupagem nova”, servindo-se de sofisticações tecnológicas, com a utilização de recursos como ressonâncias magnéticas e mapeamentos cerebrais modernos que contribuem para a

legitimação desse reducionismo (p. 63)148. E então, acrescenta que o retorno das explicações organicistas endossa a retomada de “velhos verbetes tão questionados por setores da Psicologia, Educação e Medicina, a saber, dislexia, disortografia, disgrafia, dislalia, transtornos de déficit de atenção, com hiperatividade, sem hiperatividade e hiperatividade” (p. 63).

Estes termos, socialmente difundidos, são reproduzidos por profissionais de várias áreas, inclusive da Educação, assim como pelos participantes do contexto escolar de modo geral, passando a atravessar as relações entre esses sujeitos e a integrar o rol de queixas escolares, cujas causas são atribuídas a fatores orgânicos ou a doenças, de modo a evidenciar a patologização de tais queixas – ou seja, associadas a disfunções ou problemas situados no organismo do indivíduo, estas queixas escolares adquirem um caráter patológico que endossa a culpabilização do aluno pelo fracasso escolar.

A medicalização da Educação e a patologização dos problemas de escolarização são abordadas nas disciplinas Psicologia da Educação A e B.

Em Psicologia da Educação A, esses temas são discutidos durante a apresentação do

seminário sobre o texto “Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização” (Collares & Moysés, 1996). Ao longo do seminário, Anita e os estudantes problematizam o processo de medicalização, referindo-se à patologização de determinados comportamentos dos alunos ou de aspectos relativos à aprendizagem, tidos como doenças neurológicas geneticamente transmitidas (como dislexia ou TDAH), bem como à sua implicação na escolarização e na vida destes alunos, vistos como portadores de uma doença (por profissionais da área da Saúde, da escola e pela família), com a qual passam a se identificar. Neste contexto, reiteram o questionamento da culpabilização do indivíduo pelo fracasso escolar:

CENA X

Estudante do seminário: As autoras desse texto contam a história do aluno que foi rotulado como burro, com problema na cabeça e isso afetou sua própria visão de si mesmo. Mesmo com um laudo do médico de normalidade, as professoras e a escola alegaram que ele precisava de

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Diante do questionamento do reducionismo de questões sociais ao âmbito individual, presente neste processo de medicalização, M. Souza afirma: “É o momento de uma revisão estrutural do sistema educacional para compreendermos tantos casos de crianças que permanecem anos na escola e continuam analfabetas. Jamais devemos atribuir a elas as causas do não aprender, pois, nesse caso, estaremos penalizando-as duplamente, por não termos cumprido nosso papel social – deixando de oferecer uma escola de qualidade para toda uma geração – e por acreditar que ao encontrar em seu corpo, ou em seu cérebro, os sinais do não cumprimento desse papel social, denominamos tal constatação de distúrbio e utilizamos terapias e tratamentos, inclusive medicamentosos, para aliviar o peso do não aprender” (2010, p .65).

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outro laudo, pois tinha problema. Com que saber e emoções se está lidando? O que faz com que a escola não acredite na normalidade?

Docente: Ele era visto na escola como quem tinha algo errado. As autoras questionam como certos comportamentos são taxados de problemáticos. A escola produz problemas e taxa os alunos, como se tivessem algum tipo de déficit, problema de aprendizagem, dislexia ou TDAH. (...) E qual o lugar da Psicologia? Qual a forma de encarar os problemas? O problema é considerado psicológico, familiar. Isso é transformar fatores sociais em fatores psíquicos. (...) Muitas vezes, este processo se torna uma via-crúcis; encaminha para um psicólogo e um médico e os pais se acalmam porque se nomeia o problema e a criança se identifica com isso. E é o sujeito que vai se ver o resto da vida como portador desse problema. Tem gente que acha que tem déficit de atenção e que o filho também tem, inclusive em diferentes classes sociais. Isso é visto como transmitido geneticamente, não como algo produzido social e historicamente. É uma questão social, que também está nos meios de comunicação. O problema com atenção e memória... A sociedade é desatenta; (...) é a sociedade do esquecimento.

(...) Estudante do seminário: As autoras analisavam a frequência com que os diretores e professores associam o fracasso escolar com questões neurológicas, dislexia etc. E identificavam, a partir do discurso dos professores, qual o referencial que sustentava os diagnósticos dos professores e as consequências psicológicas desses diagnósticos nas crianças. Reginaldo começou a se identificar com a doença; e as pessoas também. Como o diagnóstico pode ter efeitos psicológicos...

Docente: ... E produzir a doença.

(...) Estudante do seminário: As autoras falam sobre a patologização do processo de ensino e aprendizagem. Uma questão que é pra ser da sociedade acaba se tornando biológica. Essa biologização está presente na história da humanidade e teve respaldo na ciência de cunho positivista, como a questão da superioridade do homem sobre a mulher ou do branco sobre o negro; isenta a responsabilidade da sociedade, culpabilizando o indivíduo por aquilo.

(Registro de observação em aula)

Ao situar o materialismo histórico como perspectiva que embasa a pesquisa realizada por Moysés e Collares, a docente e os estudantes fazem alusão à contribuição da obra de Agnes Heller para o embasamento teórico de seu trabalho. Sendo assim, atentam para a constituição social e histórica do preconceito e do fracasso escolar, de modo a questionar seu reducionismo ao âmbito individual e, diante disto, Anita enfatiza a relevância de tal discussão para a atuação profissional do educador:

CENA XI

Estudante do seminário: As autoras têm essa concepção de um processo constituído social e historicamente, com o materialismo histórico que fundamenta essa perspectiva. E fazem

essas questões aqui (da página 20)149. (...) Elas estudam Agnes Heller, que analisa a relação entre indivíduo e sociedade.

Docente: Agnes Heller vem de uma linha marxista e trabalha com Lukács. Tem o livro

História e cotidiano e desenvolve o conceito de ser humano genérico e ser humano no cotidiano. Heller fala sobre a vida no cotidiano do indivíduo, em sua particularidade, mas o indivíduo está inserido nas particularidades e nesse contexto social em que tem os preconceitos. O preconceito é instituído socialmente. As autoras deste texto questionam a culpabilização da pessoa, ficar no individual sem considerar o que está ao redor, o Estado, que produz o fracasso escolar (...) que recai no aluno ou na família. Quando Reginaldo é identificado como diferente, é excluído do grupo. Quando instituímos um diferente, já tem um padrão de normalidade e o diferente fica identificado como fora do padrão. (...) E o que a gente quer como educador?

Estudante do seminário: A gente não pode focar no indivíduo essa questão.

Docente: A gente, como educador, tem que rever isso sempre: a favor do quê estamos?

(Registro de observação em aula)

Na prova final dessa disciplina, ao analisar um episódio em que um aluno recebe o diagnóstico de “retardo no desenvolvimento neuro-psico-motor”, uma estudante expressa o caráter ideológico da medicalização da Educação, ao explicitar que a inversão que se opera neste processo – em que questões sociais são transformadas em biológicas, de modo a se abstrair sua constituição social e histórica e reduzi-las à esfera individual – serve aos interesses do Estado e à manutenção da ordem social vigente. Nesse sentido, a estudante situa essa patologização do processo de ensino e aprendizagem como mais um mecanismo de legitimação da culpabilização do indivíduo pelo fracasso escolar:

Atrelado ao tema em questão, podemos relacionar a patologização do processo de ensino e aprendizagem, na qual questões sociais são transformadas em biológicas, com o fim, normalmente, de isentar o sistema social de suas reponsabilidades. No cotidiano escolar isso é muito comum quando atribuem o fracasso escolar a questões sociais ou questões de saúde, até mesmo com diagnósticos que não possuem validade médica, nos quais rotulam as crianças com doenças do tipo: dislexia; desnutrição; disfunção cerebral ou distúrbios. É difícil, em situações como essa, julgar ou culpabilizar algum sujeito, seja a professora, o aluno ou os pais deste, visto que muitas vezes estes sujeitos são meras vítimas de um sistema capitalista que se aproveita da ignorância popular para se beneficiar, se ausentando da responsabilidade de oferecer melhores meios para o progresso educacional, formando desse modo sujeitos que facilmente são manipulados de acordo com os interesses do Estado. Isso tudo é mais comum e notável em escolas que atendem as classes populares,

149 “Como se origina e se dissemina, tornando-se consensual, uma forma de pensar a escola e as pessoas que

permite conviver, aparentemente de forma pacífica, com este fracasso, que é de cada um e é de todos? Como pode se manter este processo de culpabilização de pessoas, seja a criança, a mãe, ou a professora, quando todos são vítimas e sofrem? O que faz esta professora, que também é vítima, assumir o papel de agente acusador, quando se percebe em sua fala sua própria angústia e ambiguidades? Por que a mãe e a criança incorporam a culpa, aceitam o rótulo e o fracasso? Como se naturaliza uma violência social contra quase todos?” (Collares & Moysés, 1996, p. 20).

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uma vez que com esse público se torna mais simples atribuir o não aprendizado a fatores relacionados à pobreza, à raça, à origem e coisas que se enquadram neste aspecto determinista.

(Trecho de prova de uma estudante)

Além disso, durante a entrevista em grupo realizada com estudantes dessa disciplina (grupo focal), estes fazem menção à ideia de que com a medicalização da Educação, enquanto aspectos referentes ao processo de escolarização passam a ser compreendidos como um problema centrado no aluno, buscando-se o conter e silenciar por meio de uma medicação, deixa-se de analisar elementos referentes à dinâmica institucional escolar, de modo a isentar a implicação da escola nesse processo: “Eu acho que medicalizar é a saída fácil pra escola. Medicalizar é você conter os alunos e evitar que eles manifestem ou que eles digam, pensem ou façam coisas que te obrigariam, como dono ou gestor de uma escola, a mudar e pensar essa escola” (Entrevista em grupo com

estudantes).

Como já foi dito antes, a medicalização da Educação também é discutida brevemente

em Psicologia da Educação B, durante uma aula em que Clarice se refere ao encaminhamento de

alunos, por parte de profissionais da escola, para especialistas da área da Saúde que, diante de tais queixas escolares, indicam a necessidade de um tratamento medicamentoso. Nesse contexto, a docente faz alusão à prescrição “massiva e indiscriminada” de medicamentos para alunos de escolas públicas e privadas e, então, um estudante afirma que “se a criança se excede em algo, já é considerada hiperativa, com TDAH; e a indústria farmacêutica está se beneficiando com isso”

(Registro de observação). Clarice acrescenta que esta patologização da queixa escolar – por meio da qual se atribui um caráter patológico à queixa, compreendida como uma doença ou distúrbio orgânico, legitimada pela elaboração de diagnósticos e prescrição de medicamentos por parte de profissionais da Saúde (médicos e psicólogos) – produz marcas e implicações severas para a vida do sujeito e que a Psicologia tem compactuado com esse processo de normatização, juntamente com a Medicina, tornando-se aliada da indústria farmacêutica150.

A patologização da queixa escolar também é referida pelos estudantes de Psicologia da Educação B que participaram da entrevista em grupo. Ao relatar uma situação vivenciada em

sua experiência como professora, uma estudante ilustra a naturalização e a normatização

150 A fim de aprofundar o questionamento sobre a origem da preconização de supostos distúrbios como dislexia e

TDAH, bem como sobre sua vinculação com os interesses da indústria farmacêutica, ver Moysés e Collares (1992; 2010).

subjacentes à atribuição de um rótulo, associado à ideia de falta, problema ou patologia, com que o aluno se identifica:

Gisele: Tem uma classe, em que eu dou aula, que tem dois alunos que têm letra muito ruim, mas eu acabo sendo legal com eles e não reclamo das letras que são... compreensíveis. Às vezes eu peço pra um aluno ler o exercício do outro e um dia os outros não conseguiram ler, porque só os olhos treinados de uma professora conseguem (risos). E aí ele falou: ‘É que eu sou dísgrafo’.

Joselita: Dísgrafo?

Gisele: E eu perguntei: ‘Mas de onde você tirou isso?’. E ele disse: ‘A psicopedagoga falou que eu tenho disgrafia’. ‘Mas você toma remédio pra isso?’. ‘Não, mas ela me trata pra isso’. E eu pensei: ‘Ah, meu Deus!’.

Helena: Então, você tem uma solução: você é dísgrafo!

Gisele: E eu falei: ‘Então, quer dizer que você parou de fazer caderno de caligrafia? Parou de se preocupar com sua letra porque você é disgrafo, né?’. Ele falou: ‘Ah, é!’.

Joselita: E então ele se trata com a psicopedagoga.

Gisele: Todo mês.

Joselita: Paga um valor ‘x’ pra ela falar: ‘Mas não se preocupe. É só sua disgrafia!’.

Gisele: Deve sair no sangue, o fator disgrafia.

(Entrevista em grupo com estudantes)

Nesse processo, a escrita de uma letra que não corresponde ao padrão estipulado passa a ser vista como um problema orgânico (genético, como Gisele ironiza), localizado no aluno e, portanto, naturalizado, tal como se profere com base na concepção organicista por meio da qual o fracasso escolar é justificado por uma disfunção orgânica do indivíduo, conforme mencionado anteriormente. Sendo assim, em coerência com o olhar clínico e prescritivo do modelo médico, busca-se um tratamento para tal patologia, de modo a se recorrer a uma especialista em Psicopedagogia.

Enfim, diante de tais considerações sobre as queixas escolares, faremos alusão, a seguir, às discussões sobre as relações entre os sujeitos no dia a dia escolar, realizadas ao longo das disciplinas investigadas.