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A Produção Musical e o Gabinete de Estudos Musicais

A tomada de posse de António Ferro em 1941 marcou uma profunda reorganização da pro- dução e programação musical da EN. A rádio pública em tempo de guerra devia funcionar como polo dinamizador da vida musical portuguesa e, como tal, implementar uma política de produção musical de base nacionalista que afetasse a composição da “música ligeira” e da música erudita. Para implementar os diversos projetos que havia delineado, o diretor do SPN/SNI escolheu Pedro do Prado (1908-1990) como Chefe da Secção Musical da EN. Com o auxílio do novo Chefe da Secção Musical, a EN promoveu uma dinâmica musical que procurava responder ao projeto do “aportuguesamento” dos programas, mas que vincasse de modo inequívoco as diferenças entre “Alta Cultura” e “Cultura Popular e Espetáculos” (Nery 2010) no âmbito das políticas culturais implementadas durante o período do Estado Novo.

Enquanto “poderoso instrumento de cultura popular” (Ferro 1950, 37), a EN deveria repensar as “colunas” que sustentariam a sua programação, tornando-se para tal indispensável: “aligeirá-las, adelgaçá-las, tornar acessível o profundo, tornar leve o pesado. (...) [que] a parte recreativa seja tratada tão a sério como a parte séria.” (Id. ibid.). “Tratar a sério o ligeiro”, implicava para o novo diretor da EN “torná-lo o mais amável, em rodeá-lo de todas as condições para que não deixe de cumprir o seu principal objetivo: distrair” (Id. ibid.). Tal como fizera no SPN/SNI (Alves 2007), António Ferro desenvolveu várias estratégias de apoio à produção artística, promovendo concursos de composição, de instrumentistas, lançando novas orquestras, novos programas radiofónicos, parcerias institucionais, e.o. No conjunto de reformas e medidas lançadas na EN pela administração de António Ferro, foi lançado em 1942 o GEM, dividido em várias secções dedicadas às harmonizações de melodias de matriz rural, música erudita, música ligeira e investigação musical (Moreira 2012). O surgimento do GEM deve ser enquadrado na sequência da reestruturação da produção musical da EN e marcado pela existência prévia de orquestras e de outros agrupamentos musicais dedicados a repertórios distintos, pela colaboração de maestros também compositores e arranjadores, e pela afirmação do modelo, na “música ligeira”, do cantor com orquestra.

A ação do GEM no contexto da rádio pública representou a mais significativa medida da administração de António Ferro no sentido de institucionalizar a composição, revelando também uma nova relação institucional dos compositores com a EN no contexto da sua produção musical (Moreira 2012, 155 e segs.).

A par do que havia sido a política do SPN/SNI (Silva 2005), a encomenda de obras através do GEM, assim como a realização de concursos e a atribuição de prémios, constituiu um dos pilares da reforma de António Ferro, com a criação dos prémios de composição em 1942, que visavam “estimular a produção musical” de “autores portugueses” (Rádio Na-

cional, 01/03/1942), ou do Concurso de Artistas da Rádio, com o objetivo de promover e

premiar os principais cantores da EN (Rádio Nacional, 28/03/1943).

A linha de produção musical foi também conduzida no sentido de construção de uma aura nacionalista integrada no desígnio “do ressurgimento nacional”. A rádio pública era, segundo António Ferro, a instituição que deveria estimular a produção musical de modo a preencher, por exemplo, a lacuna de gravações de “música portuguesa” por parte das etiquetas fonográficas em funcionamento:

Que fazer então? Só existem dois caminhos: gravar, com urgência, todas as boas canções portuguesas e estimular a aparição, a criação daqueles que possuam o mínimo de tempero exigível às produções que pretendam entreter a imaginação internacional dos radiouvintes nacionais. Ora é, precisamente, o que estamos fazendo. Vários dos nossos compositores foram já convidados a harmonizar os nossos ritmos populares e, por outro lado, a mobilar os novos programas de variedades, com o intuito de encontrar a fórmula desejada, essa mistura de Portugal com o Mundo e com a nossa época (Ferro 1950, 40).

O discurso de Ferro não refere de modo peremptório que o “aportuguesamento” visava a exclusão da música estrangeira presente na programação radiofónica, substituindo ape- nas por géneros presumivelmente nacionais, uma vez que a “fórmula”, segundo António Ferro consistia na “mistura de Portugal com o mundo e com a nossa época” (ibid.), na integração de elementos presumivelmente autênticos e tradicionais no mundo moderno. Assim, as referências ao excesso de música de dança norte-americana contrastam, no seu discurso, com a manutenção de uma “imaginação internacional” (Moreira e Silva 2010) que era fundamental para “nunca aborrecer” o público (Silva 2005). Repare-se que os compositores e arranjadores do repertório “aportuguesado” no contexto da produção de “música ligeira” no GEM e dos géneros musicais norte-americanos como o Fox-trot, o

Swing, e.o., eram também maestros que se apresentavam regularmente nos espaços de

lazer urbanos, sobretudo de Lisboa, à frente de orquestras que interpretavam a música em voga na época, como é o caso dos maestros Tavares Belo, António Melo, e.o.

No caso da “música ligeira”, o GEM desempenhou uma função preponderante, uma vez que ali deram entrada centenas de obras para serem interpretadas pelas orquestras e outros agrupamentos musicais da EN, e pelos grupos vocais ou cantores solistas, ainda que não fosse a única fonte da composição do repertório necessário para os programas radiofónicos. Neste sentido, urge esclarecer que António Ferro e Pedro do Prado não pre- tendiam que todas as composições e arranjos musicais na rádio pública tivessem como destino o GEM. A par das obras compostas para o GEM, continuou, fora dele, uma intensa atividade de arranjo musical e composição, efectuado principalmente pelos diretores mu- sicais das orquestras da EN, como Tavares Belo, Belo Marques, António Melo, Fernando Carvalho, e.o. (Moreira 2012).

O objetivo primeiro do GEM, liderado por Pedro do Prado, era colmatar a falta de repertó- rio para as orquestras da rádio estatal, de modo a substituir uma parte da música estran- geira, mas sem deixar de lhe conferir a referida “imaginação internacional”. Os problemas a resolver, em virtude da presença considerada excessiva da música proveniente de outros países, eram colocados e sintetizados pelo novo diretor da EN com as seguintes questões:

Substituir essa música frenética por música ligeira portuguesa que possua a mesma sedução? Substituí-las por melodias nossas que não se limitem a ser regionalistas, folclóricas (música preciosa que tem o seu lugar), mas que tanto possam ser ouvidas com agrado em Lisboa, como em Paris, Berlim, Roma, Londres ou Nova Iorque? (Ferro 1950/1942, 39).

Para António Ferro, a substituição da “música americana e de outros países” (Id. ibid.) impunha-se, ainda que dentro de moldes que conciliassem modelos performativos em voga com materiais presumivelmente autênticos.