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O centro de documentação escrita e sonora de música de matriz rural: levantamentos patrocinados pela Junta

de Província do Douro Litoral

Em 1947, este arquivo musical foi alargado à documentação, estudo e reinterpretação de música da tradição oral do território administrado pela Junta, no sentido de dar cumprimento ao referido “plano artístico e científico”. Para tal, a Comissão solicitou à Junta de Província a atribuição de bolsas destinadas à “colheita do folclore musical”, que, como os “célebres cantaréus”, se julgava em risco de desaparecimento (ADP-LA 3, de 8-7-1947). A ênfase foi colocada no valor arqueológico dos exemplos e, por isso, a pesquisa foi direcionada para os géneros polifónicos e para a seleção de detentores da tradição idosos e mulheres. Vergílio Pereira,87 um dos bolseiros, partiu para Cinfães onde, entre 5 de agosto e 22 de setembro, procedeu ao levantamento extensivo do concelho, dando preferência aos géneros musicais vocais e polifónicos. Desse levantamento, foram publicados em 1950 no Cancioneiro de Cinfães, edição integralmente patrocinada pela Junta de Província: 8 “embalos”; 25 “modas para os Reis”; 10 “modas para a Quaresma”; 67 “modas para as diferentes espécies de faina”; 108 “cantas para o erguer da faina”; 20 “chulas e desafios”; 57 “coreias”; 6 “cramóis” (Pereira 1950). No ano seguinte, foi atribuída nova bolsa ao mesmo coletor, agora para proceder ao levantamento das práticas musicais rurais do concelho de Resende. Entre 8 de agosto e 22 de setembro de 1948, Pereira tinha reunido 123 transcrições musicais, publicadas nove anos depois no Cancioneiro de

Resende: 4 “cramóis” a três vozes (realizado por um coro que começa a uníssono para

se dividir primeiro em duas partes, em terceiras paralelas, e depois em três, em terceiras e quintas paralelas); 34 “canções lúdricas”; treze “chulas e cantigas ao desafio”; 26 “cantigas de trabalho”; 18 “cantigas de embalar”; 21 “cânticos da Natividade”; e 7 “cantos devotos e religiosos”, sendo que um destes consiste na reconstituição de uma ritual de “encomendação das almas” segundo a descrição de residentes em Cetos (Barro) que a tinham realizado pela última vez, em 1946 (Pereira 1957, 388). Relativamente à coleção realizada no ano anterior, na qual apenas tinha identificado as intérpretes dos ‘cramóis’, neste levantamento identificou todos os informantes e fotografou vinte e um dos “grupos que interpretaram as cantigas” (Ibid.).

87 Nasceu em Vilela, Paredes, em 1900 (m. Porto em 1965). Foi professor do ensino primário, regente de coros e compositor. Destacou-se no domínio da etnografia musical tendo coligido no continente português milhares de documentos (transcrições e registos sonoros) da música de matriz rural. Iniciou a aprendizagem musical com o seu pai, regente da Banda Filarmónica de Paredes e frequentou, depois, o Conservatório de Música do Porto e a Academia Mozart do Porto, obtendo a carteira profissional de Chefe de Orquestra. Concluído o curso na Escola Normal do Porto, em 1919, fundou e dirigiu vários grupos corais escolares e amadores: Orfeão Infantil do Porto, Orfeão “Castro Araújo” de Lordelo de Paredes, orfeão da Escola Oliveira Martins, Coral Infantil do Porto, Coral Polifónico do Porto, coro Pequenas Can- toras do Postigo do Sol, grupo que se transformará nas Pequenas Cantoras de Portugal, Orfeão da Covilhã e Coro Etnográfico da Covilhã. Dirigiu ainda os orfeões do Porto e de Matosinhos. Durante onze anos trabalhou para a Mocidade Portuguesa, integrando, postumamente, o Quadro de Mérito da Organização. Foi um dos fundadores e diretor da Academia de Música da Covilhã, desde a sua fundação, em 1959. Compôs obras e harmonizou música da tradição oral de matriz rural para coro. Foi, também, autor de coletâneas de repertório para canto coral. Em 1947, ingressou na Comissão de Etnografia e História do Douro Litoral, sob cujo patrocínio desenvolveu trabalho de campo nos concelhos de Cinfães, Resende, Arouca e Santo Tirso. Por iniciativa própria, procedeu, ainda, na década de cinquenta, ao levantamento de práticas musicais na região raiana do norte do país. Entre 1961 e 1963, realizou trabalhos de “prospecção folclórica” nas províncias do Douro Litoral (nos concelhos de Baião, Felgueiras e Santo Tirso), Beira Baixa (em todos os concelhos) e Beira Alta (no distrito da Guarda) para a Comissão de Etno-musicologia da Fundação Calouste Gulbenkian. Ao longo da sua vida, Pereira teve um papel central no movimento orfeónico desde a sua chegada à cidade do Porto, em finais da segunda década do século XX: (i) fundou e dirigiu orfeões e grupos corais escolares; (ii) participou em eventos orfeónicos; (iii) elaborou manuais de ensino e repertório coral; (iv) utilizou a rádio como meio de difusão do repertório dos grupos que dirigiu.

Entre 1953 e 1955, foi concedida nova bolsa a Vergílio Pereira agora para transcrever prá- ticas musicais no concelho de Arouca: “[...] 526 espécies, entre as quais 47 coros a 3 e 4 vozes, predominando as modais [...] os coros a 2 vozes, chamados também cantas, [...] são mais de 400!” (MNE/VP/CAI VII 3 gG). No último ano de trabalho de campo, agosto e outubro de 1955, Vergílio Pereira fez também o registo sonoro de 156 práticas, graças à aquisição, por parte da Junta, de um gravador de fita de marca Grundig. As transcrições musicais e poéticas, fotografias de campo e a identificação dos informantes foram publi- cadas em 1959, no Cancioneiro de Arouca. Desconhece-se, contudo, o paradeiro atual das fichas de campo e negativos das fotografias de Vergílio Pereira, bem como dos registos sonoros coligidos no concelho de Arouca.

Em 1958, Vergílio Pereira reuniu uma coleção de transcrições musicais e poéticas, registos sonoros, imagens fotográficas e notas de campo na freguesia de Monte Córdova, con- celho de Santo Tirso, durante o trabalho de campo efectuado entre 30 de agosto e 29 de setembro, com vista à realização de um cancioneiro de Santo Tirso, a qual não veio a concretizar-se devido à extinção das autarquias provinciais em 1959.88 Dos 84 exemplos coligidos em Santo Tirso, 76 são a duas vozes (em terceiras paralelas) e dois a 3 vozes (em 3ªs e 5ªs paralelas). Não foi registado nenhum exemplo de música exclusivamente instru- mental. Os instrumentos - viola, harmónio, bombo, tambor, ferrinhos e reque-reque - cujo som podemos ouvir nesta coleção, realizam acompanhamentos.

Além destes levantamentos sistemáticos que seguiram o método cartográfico proposto pelo antropólogo Jorge Dias,89 membros da Comissão com conhecimento de música procede- ram à transcrição musical e poética de práticas “tradicionais” nas localidades onde residiam. Esses documentos foram publicados no boletim Douro Litoral e nas monografias Cancionei- ro de Monte Córdova90 (1960) e Cancioneiro Popular de Cete91 (1963). Existem, atualmente,

no Museu de Etnologia do Porto, dezoito transcrições musicais de Cantaréus,92 coligidas na

freguesia de Abragão, concelho de Penafiel, pelo padre José Nunes de Oliveira.93

88 Dos dados coligidos por Vergílio Pereira ao longo das suas incursões no terreno da província do Douro Litoral, os relativos ao concelho de Santo Tirso, 1958, estão arquivados no Museu Nacional de Etnologia, inéditos: cópia em fita magnética de 84 registos sonoros (por mim digitalizada em 2004-2005) e respetivas fichas de registo de dados, transcrições musicais e poéticas e fotografias dos informantes. 89 Jorge Dias defendeu o levantamento extensivo do território por oposição à documentação de nichos da música portuguesa (1948, 1-6). 90 Da autoria do médico Lima Carneiro, reúne um conjunto de transcrições musicais de Luís Carneiro Barbosa, chefe da banda do Instituto Nun’Álvares de Santo Tirso.

91 O Cancioneiro Popular de Cete, da autoria de Lopes Cardoso e Nunes de Oliveira, documenta a prática de cumprimento de promessas por encomenda, realizada por grupos de raparigas (de idade infanto-juvenil) que realizam um percurso determinado, cantando e rezando, em Cete, concelho de Paredes.

92 Com os seguintes títulos: “Ao Sol Oh! La-ri-lo-lela”, “Lavadeiras”, “Ó Mariquinhas”, “Ó Mariquinhas (outra versão)”, “Ribaldinha”, “Da banda d’além do rio”, “Corre... corre”, “Ó Senhora Aninhas”, “Eu hei-de ir à missa”, “Eu fui ao jardim”, “O comboio de Coimbra”, “Ó ribeira, ó ribeira”, “Eu chamei pelo António”, “Da banda d’além do rio”, “Ó ribeira”, “Ó Lindo António”, “Tumba, catatumba”, “Pelo mar abaixo”, dos quais cinco foram publicados em 1949 no Douro Litoral.

93 José Moreira Nunes de Oliveira (n. Oldrões, concelho de Penafiel, 1914; m. Mouriz, concelho de Paredes, em 1994). Ordenado padre em 1940, depois de permanecer, como coadjutor, um ano na Sé do Porto como coadjutor, paroquiou: dois anos numa freguesia do concelho de Amarante: entre 1945 e 1953, em Cete, Paredes; e entre 1954 e 1994 em Mouriz, também concelho de Parede. Procedeu à documentação de música da tradição oral nos concelhos de Penafiel e Paredes. Autor de composições religiosas e colaborador do jornal O Progresso de