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Frederico de Freitas e o projecto da Severa: entre legitimação cultural e indústria do entretenimento

A inauguração no dia 5 de abril de 1930 do Royal Cine, primeira sala de cinema de Lisboa exclusivamente dedicada ao cinema sonoro, teve um acolhimento muito favorável por parte da crítica, suscitando um particular entusiasmo entre os jovens cineastas e cinéfilos.39 Em

agosto desse mesmo ano, o governo da Ditadura encarregou uma comissão, que reunia realizadores, produtores, distribuidores e jornalistas, de estudar a possibilidade da criação de um estúdio de produção de filmes sonoros em Portugal. José Leitão de Barros (1896- 1967), um dos realizadores mais reconhecidos no meio cinematográfico nacional, não quis no entanto esperar pelos resultados da comissão e anunciou desde logo a sua vontade de realizar um filme sonoro com artistas portugueses (Diário de Lisboa, 07/08/1930). O projecto consistia na adaptação ao ecrã da famosa peça de teatro que Júlio Dantas escrevera em 1901 sobre a vida da mítica fadista Maria Severa Onofriana, conhecida como A Severa (Dantas 1901). Na ausência de um estúdio com condições técnicas para a realização de filmes sonoros em Portugal, Leitão de Barros foi obrigado a deslocar uma parte da produção do filme para o estrangeiro, escolhendo os estúdios da Tobis francesa, em Épinay-sur-Seine, perto de Paris. A produção ficou a cargo da Sociedade Universal de Super-Films (SUS), apoiada por um produtor português instalado em França, Hamílcar da Costa, que assegurava a distribuição no mercado português das produções da Tobis francesa e serviu de intermediário para o aluguer dos estúdios em Paris.

A escolha da obra de Dantas para enredo do primeiro filme sonoro português era, sobre vários pontos de vista, estratégica. Numa entrevista publicada em 1930, Leitão de Barros incluía

A Severa numa lista de quatro obras-primas da literatura portuguesa que mereciam uma

adaptação cinematográfica, sendo as outras os Lusíadas, a lenda de Inês de Castro e o Frei

Luís de Sousa de Almeida Garrett (O Ano Cinematográfico e Teatral para 1930-1931 1930, 197-

198).40 Tratava-se assim, antes de mais, de legitimar culturalmente o cinema sonoro português

através da referência ao cânone da literatura nacional. Por outro lado, a escolha de A Severa associava o primeiro filme sonoro português ao universo do fado, uma referência cultural forte e distintiva que, apesar da intensa controvérsia que provocava no meio intelectual, se ia afirmando nesse período como a “canção nacional” portuguesa. O filme foi aliás apresentado inicialmente com o título provisório de O Fado (Diário de Lisboa, 07/08/1930), ecoando

39 Esta sessão inaugural, apresentada na época como “a estreia do cinema sonoro em Portugal”, não foi na verdade a primeira vez que se experimentaram as tecnologias do cinema sonoro no país, tendo constituído sobretudo “uma enorme e muito bem sucedida manobra de auto-promoção dos equipamentos de reprodução de som Western Electric” (Baptista 2014, 84-85).

40 Estes quatro temas vieram a ser efetivamente objecto de adaptações cinematográficas nos anos seguintes. Leitão de Barros, para além da Severa, realizou Inês de Castro (1945) e Camões (1946), e António Lopes Ribeiro adaptou Frei Luís de Sousa ao cinema em 1950.

assim explicitamente o famoso quadro de Malhoa (1910) e o filme de Maurice Mariaud (1924), duas anteriores tentativas de apropriação cultural do género musical lisboeta. Esta associação permitia igualmente que o filme beneficiasse do sucesso crescente do fado enquanto produto de consumo musical urbano, sobretudo fomentado pelo desenvolvimento da indústria fonográfica e da rádio. Assim, se a referência a Júlio Dantas colocava o filme no contexto do património literário legítimo, a temática do fado permitia investir o território das emergentes indústrias de entretenimento, ao mesmo tempo que inscrevia o filme no contexto de uma singularidade cultural “tipicamente portuguesa”, uma aposta para fixar o interesse do mercado cinematográfico interno que não era nova no cinema português. Desde o início do cinema mudo que a estratégia de produção de filmes sobre temas nacionais fora dominante, uma vez que os produtores portugueses consideravam que essa era a única forma de se defenderem do domínio das produções americanas, alemãs e francesas (Baptista 2008). A escolha do responsável pela direcção musical do primeiro filme sonoro português adquiria, neste contexto, uma particular importância. Leitão de Barros convidou para esta tarefa Frederico de Freitas, então o compositor mais solicitado pelas emergentes indústrias da música em Portugal. Frederico de Freitas tinha-se afirmado como uma jovem promessa da música erudita portuguesa no início dos anos 20, ainda estudante do Conservatório Nacional, através de algumas obras onde explorou técnicas associadas ao modernismo musical, nomeadamente a politonalidade na sua Sonata para violino e

violoncelo (1923). Em 1927, iniciou uma carreira particularmente ativa no teatro ligeiro,

tendo desde logo obtido um sucesso assinalável com a sua música para a revista Água-Pé, que se manteve em palco mais de um ano no Teatro Avenida. Tratava-se de uma revista resolutamente modernista, com decorações e figurinos de José Barbosa, influenciados pelos bailados russos, e a participação do coreógrafo e bailarino Francis (Santos 2000). Frederico de Freitas, juntamente com este grupo de artistas, a que se juntaria Almeida Negreiros, realizaria no ano seguinte o vaudeville A Flor de S. Roque e a revista A Rambóia, tendo sido neste laboratório, em que as aquisições do modernismo plástico e sonoro se punham ao serviço da indústria de entretenimento, que Frederico de Freitas começou a forjar um novo tipo de música popular, que depois transportaria para o cinema sonoro. Frederico de Freitas afirmou-se, na transição entre as décadas de 1920 e 30, como o único compositor português capaz de estabelecer uma ponte entre as esferas da criação musical erudita e ligeira. Interrogado pela revista Ilustração, em maio de 1930, o compositor continuava a valorizar sobretudo a sua acção no domínio da “música pura”, afirmando que a sua “incursão pela revista” era um “simples incidente”. Considerava, no entanto, que no teatro de revista, “quando há um bailarino como Francis, uma voz como a de Corina Freire, e cortinas como as de António Soares”, se podiam fazer “coisas muito interessantes”. Quando o entrevistador sugeriu que escrever música ligeira deveria ser “extremamente fácil” para um compositor com a formação de Frederico de Freitas, este respondeu:

- Não tanto como pode supor. A música para a revista deve ter interêsse e ser, ao mesmo tempo, tão fácil que o público saia do teatro assobiando-a. É essa a dificuldade mais custosa de vencer... (Ilustração, 16/05/1930, 36).

A afirmação de Frederico de Freitas no teatro de revista coincidiu com um momento decisivo no desenvolvimento das indústrias musicais, marcado pela emergência da radiofonia, que proliferou em Portugal na segunda metade da década de 1920 (Silva 2010), e por importantes transformações tecnológicas no campo da fonografia, nomeadamente a substituição da gravação acústica pela gravação eléctrica a partir de 1925. Esta nova tecnologia de gravação permitiu melhorar consideravelmente a qualidade sonora dos fonogramas e deu um novo impulso à indústria musical internacional, tendo sido nesse contexto que companhias como a Columbia ou a Gramophone Company se instalaram em Portugal, respectivamente em 1926 e 1927. As duas empresas desenvolveram estratégias diferentes de implementação, tendo a Columbia aberto uma loja própria na Rua Garrett, em Lisboa, e a Gramophone Company assinado um contrato de representação com o Grande Bazar do Porto, que se tornou assim o agente em Portugal da principal marca fonográfica da empresa, a His Master’s Voice (HMV). Como as outras companhias concorrentes, a HMV procurou desenvolver um catálogo de repertório local que lhe permitisse penetrar no mercado português, tendo sido nesse contexto que Frederico de Freitas foi convidado em 1929 a assumir, a convite de Alfredo Allen, gerente do Grande Bazar do Porto, o cargo de seu director artístico. O compositor foi o principal organizador das campanhas de gravações realizadas pela HMV em Lisboa nos anos seguintes, escolhendo artistas, dirigindo orquestras, escrevendo arranjos e harmonizaçõs, seleccionado os masters definitivos a enviar para Inglaterra, e colaborando activamente na difusão dos discos editados pela empresa, nomeadamente nas emissões da estação de rádio CT1 BO (Pestana 2014 e Pestana e Marinho, em preparação).

O envolvimento de Frederico de Freitas na produção de A Severa iniciou-se pouco depois do anúncio do projecto por Leitão de Barros, em agosto de 1930. A 8 de setembro desse ano, Frederico de Freitas confessava a Alfredo Allen ter sido “completamente açambarcado” pelo realizador (Freitas a Allen, 08/09/1930) e, poucos dias depois, que tinha começado a receber os artistas do filme nas instalações do Bazar em Lisboa (Freitas a Allen, 11/09/1930).

A colaboração de Frederico de Freitas com a SUS teve assim início antes da assinatura de qualquer contrato formal. Apenas a 17 de outubro o compositor refere que Leitão de Barros tinha a intenção de lhe propor um contrato de longo prazo, anunciando um mês depois que tinham sido enfim acertadas as condições da sua participação na produção da Severa:

Já combinei as condições em que se fará o meu contrato com a SUS. Receberei por pôr a musica em fita e realizar a partitura 15 contos, e 2 ½ % sobre os lucros liquidos durante 3 anos que é a verba de direitos de autor. A minha deslocação para Paris será paga por eles com a verba diária de (x) igual às primeiras figuras do film. Não sei ainda quanto. Falta passar isto a papel e depois lhe direi mais qualquer coisa (Freitas a Allen, 17/11/1930).