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Partindo dos exemplos vivenciados e apresentados na primeira parte desta comunicação, podemos sintetizar as seguintes linhas de força que nos permitem compreender o mundo dos colecionadores:

Salvo raras exceções, a maioria dos colecionadores não conhece e não adota os procedimentos convencionais de uniformização, normalização, higienização e des- crição generalizados entre os técnicos de museus, bibliotecas, arquivos e fonotecas públicas;

As coleções raramente se circunscrevem apenas a fontes sonoras, integrando obje- tos materiais de elevado interesse para o investigador como documentos sonoros (discos, cassetes, bobines, CD, clones de originais existentes ou desaparecidos, re- gistos de ensaios e convívios, gravação de testemunhos), documentos iconográficos (postais, gravuras, cartazes, publicidade, programas de espetáculos, fotografias, ca- pas ilustradas de partituras, caricaturas, medalhas, telas a óleo, capas ilustradas de discos vinil), solfas de música impressa e manuscrita, cancioneiros, livros de poesia, cadernos de letras cantadas com e sem anotação dos tons do acompanhamento,

111 Recensão em Nunes, António Manuel – Saberes e representações em textos sobre o chamado “fado de Coimbra”. Um trinténio de produ-

ção de narrativas (1978-2010). Comunicação apresentada em Coimbra a 28/04/2012 no colóquio “Refletir e fruir a Canção de Coimbra nos

inícios do século XXI. Perceções e consumos”, organizado pela Secção de Fado da AAC. Edição em linha no blogue Guitarra de Coimbra IV, http://guitarrasdecoimbra2.blogspot.pt/2012_05_27_archive.html.

instrumentos musicais, equipamentos de leitura e reprodução de sons, monografias ou biografias correlacionadas com a temática, correspondência trocada com cultores do género ou seus familiares, dossiês de recortes de imprensa e listagens das fontes sonoras em folhas manuscritas, ficheiros word ou excel;

A documentação está disposta de acordo com o sentido empírico de organização do colecionador, que na maior parte das situações observadas reserva para esse fim um escritório, uma cave, uma garagem, um sótão, cujo acesso é limitado mesmo quando se trata de familiares, empregada de limpeza ou amigos;

Os objetos integrados na coleção são arrumados em caixotes, gavetas de móveis, pra- teleiras, tampos de mesas e secretárias, estojos cartonados originais (quando existem); A quantidade e o nível de especialização dos bens colecionados dependem do gos- to pessoal do detentor, da sua capacidade económica e da sua idade. Verifica-se que os colecionadores mais velhos se tornam fortemente seletivos nas aquisições, invocando o argumento da saturação do espaço disponível para custódia e a exor- bitância dos preços praticados pelos antiquários;

Existe uma certa consciência de valores associados à missão do arquivo público como a recolha e a preservação, pese embora menos consistente no que respeita à produção de conhecimento útil e respetiva comunicação. Como refere Michel Platini Silva (2010), os colecionadores são frequentemente “ajuntadores” e não “pesquisa- dores”. Esta atitude marca a diferença entre os interesses do colecionador privado e a missão do arquivo público que tem como objetivos a preservação, o estudo, a comunicação aos utilizadores e a discussão intelectual;

Via de regra, o colecionador mostra-se orgulhoso e possessivo face aos bens acumula- dos, devendo o investigador saber conquistar a sua confiança, manifestar respeito pela forma como se organiza e nunca perder credibilidade ao longo de todo o processo (acesso, empréstimo, reprodução, oferta de exemplares de trabalhos publicados, con- vites para participação em eventos correlacionados, transparência nas conversações, compreensão no ouvir das pequenas estórias). O colecionador gosta de ser o centro das atenções, não tem nada a perder e quem precisa dele é o investigador;

O acesso às coleções é frequentemente dificultado após a morte do colecionador. Ter mantido a melhor das relações com um colecionador entretanto falecido não garante nada ao investigador. Os seus herdeiros podem negar o acesso aos docu- mentos, dispersar a coleção por co-herdeiros domiciliados em locais distantes ou vende-la a antiquários, alfarrabistas e lojas de velharias. Há ainda os herdeiros que mantendo a coleção, mudam para domicílio incerto ou que devido a atritos familia- res se recusam a prestar qualquer informação sobre o colecionador falecido.

III

O colecionador, o investigador, a universidade

Seguidamente indicam-se alguns procedimentos e recomendações, com base na minha experiência pessoal e em boas práticas, que podem beneficiar mutuamente os interesses dos investigadores e as paixões dos colecionadores:

1.º

: não existindo em Portugal um arquivo sonoro público de cariz central, regional ou local,112 nem sendo respeitado o regime do depósito legal, a universidade pode começar

por definir como objetivo estratégico algo de parecido com o “Programa nacional de res- cate y salvaguarda de archivos sonoros”, dinamizado pela Fonoteca Nacional do México,113

cuja missão consiste em “identificar y salvaguardar documentos sonoros, que por su valor social, cultural o histórico, constituyan parte del património sonoro nacional y que hayan sido grabados en México desde finales del siglo XIX a la atualidade en cualquier suporte” (López 2011, 119).

2.º

: sinalizado o colecionador, há que conquistar a sua confiança e conseguir penetrar no seu santuário. Importa falar de forma aberta, dizendo quem se é e ao que se vai.

3.º

: obtida permissão de acesso, é necessário recolher dados para a caracterização do acervo e garantir a manutenção dos contactos através de uma relação marcada pela boa- -fé e pela cordialidade. O diálogo deve ser conduzido sem imposição de visões académi- cas ou de formulação de juízos depreciativos sobre o gosto pessoal do colecionador e forma como organiza a sua coleção.

4.º

: a entidade interessada deve elaborar antecipadamente um manual de procedimentos ilustrado, para apoio aos colecionadores, que defina em linguagem simples e formativa os seguintes campos:

a) natureza do projeto, contendo a designação, a missão, a visão, os valores, os objetivos

e a identificação dos coordenadores responsáveis;

b) procedimentos de acondicionamento (espaço custodial, mobiliário, unidades de

instalação, minimização de riscos de degradação);

c) procedimentos mínimos de higienização (limpeza, manipulação, controlo ambiental,

substituição de unidades de instalação);

112 Mais dados em Nunes 2011. Republicado, numa versão mais extensa, no blogue Guitarra de Coimbra IV, edição de 13/06/2012, disponível em http://guitarrasdecoimbra2.blogspot.pt/2012/06/arquivossonoros-realidade-proto.html.

d) procedimentos de reprodução (equipamentos não agressivos, práticas de migração de

conteúdos);

e) produção e recuperação de informação (identificação das unidades de instalação, criação

e gestão de bases de dados, elaboração e atualização de inventários; descrição fonográfica);114

f) o manual de procedimentos deve estar acessível online para uso imediato e ser alvo de

revisão participada periódica.

5.º

: a colaboração deve visar a produção de informação sobre os bens existentes na co- leção e sua reprodução total ou parcial através da celebração de protocolo escrito, cujo clausulado e anexos resultem de negociação.

6.º

: o protocolo deve especificar com rigor a identificação das partes, os direitos e os