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As melodias de Matriz Rural na construção da nação

O projeto de “aportuguesamento”53 da música ligeira constitui um dos principais programas

ideológicos a enformar a organização da produção musical da EN nos anos 40, do século XX, indo ao encontro de outras políticas “nacionalizantes” de instituições como o SPN/SNI ou a FNAT (Moreira 2012). Os pressupostos de autenticidade do plano de “aportuguesar” Portugal, radicados numa cultura popular atemporal e instrumentalizada, enquadravam- se num desígnio propagandístico iniciado nos anos 30, no qual “o SPN deveria preparar a necessária ‘atmosfera’ capaz de desencadear o aparecimento de uma arte saudável” (Rosas 1992, 411).

A mediação ideológica dos símbolos nacionalistas traduzidos no plano do “aportugue- samento” da música ligeira e erudita, como de resto acontecerá com outras iniciativas integradas no âmbito institucional do Secretariado Nacional de Informação (SNI) (Alves 2007), tornou-se central na construção do nacionalismo musical integrado no projeto do GEM. O “aportuguesamento” do repertório musical e dos programas da EN, enquanto projeto enquadrado no ressurgimento da identidade nacional, assentava em pressupostos de autenticidade54 que estipulavam as melodias de matriz rural como a inspiração e ma-

téria-prima necessária à reestruturação da produção musical e, em particular, da própria composição. Assistimos neste contexto à tentativa de afirmação, por parte dos decisores da EN, de “uma cultura erudita moderna, dinâmica e ‘sobre rodas’ (...) [que se] celebra a si própria com canções e danças que pede emprestadas (...) a uma cultura popular que crê, ingenuamente, estar a perpetuar, defender e reafirmar” (Gellner 1993, 82).

53 O conceito émico “aportuguesamento” é utilizado enquanto elemento central do campo discursivo construído por António Ferro nos anos 30 e 40, tendo como base a utilização de elementos presumivelmente autênticos da cultura popular, e sua posterior introdução em contextos urbanos para consumo das classes médias (Alves 2007; Moreira 2012).

54 Utilizo o conceito de autenticidade no sentido atribuído por Bruno Nettl, ou seja “the idea that each culture has a primordial musical style of its own, and that songs and traits learned at a later time in its history are not properly part of its music. An authentic song is thought to be one truly belonging to the people who sing it, one that really reflects their spirit and personality” (1973, 9).

Os novos meios tecnológicos, como a rádio, produziram eles próprios novas aceções, apli- cações e modos de inculcação de ideologias (Edensor 2004), servindo como elemento de mediação de ideários com vista a uma pretendida hegemonia e sentimento de unidade cultural. Como explica Anne-Marie Thiesse, nos processos de construção do nacionalismo, “o Povo desempenha o fóssil vivo (...), é a expressão mais autêntica da relação íntima entre uma nação e a sua terra” (Thiesse 2000, 159). No entanto, se o lançamento das primeiras recolhas etnográficas e coleções de melodias populares coligidas no séc. XIX55 marcam

a modernidade que se afirma pelo resgate e invenção da tradição (Id. ibid.), o séc. XX assistirá à intervenção do Estado no sentido de utilizar essas mesmas recolhas e instru- mentalizá-las enquanto parte de um amplo projeto do Estado-nação (Bohlman 2004, 119). Num período marcado pela guerra, a rádio tornou-se um meio de afirmação da identidade nacional através de estratégias e políticas culturais do Estado (Id. ibid.). Segundo António Ferro, era necessário fazer ouvir a “voz de Portugal” e, como tal, a EN era o modo de fazer lembrar quem se “[esquece] da nossa existência ou da nossa vitalidade” uma vez que “atravessamos um momento em que ouvir a rádio é sentir palpitar o coração das nações, conhecer o seu estado de alma” (Ferro 1950, 24).

A utilização das melodias de matriz rural no contexto da EN, assim como o processo de arranjo musical das mesmas, deve ser enquadrado num plano mais lato de “nacionalização da cultura” no qual existem procedimentos obrigatórios na fabricação da nação, parafra- seando o etnólogo Orvar Löfgren (1991, 104).56 Uma análise à check-list, como Löfgren

referiu, evidencia a tendência para a valorização dos produtos em si, ou seja, daquilo que a “nação” consegue efetivamente produzir, sem a valorização dos respetivos processos. As melodias de matriz rural representam a “matéria-prima” que António Ferro crê ser uma “mina inesgotável” (Ferro 1950) na construção do nacionalismo musical e do “aportugue- samento” na reconfiguração dos programas musicais da EN. Os usos pelo Estado Novo desta “arte popular hiperactiva”, onde se inclui o “folclore”, revela nas palavras da antropó- loga Vera Alves, a criação de um “idioma, não apenas para acentuar o carácter remoto da nacionalidade portuguesa, mas também para falar de uma nação a transbordar de criativi- dade, plena de vitalidade no tempo presente” (Alves 2007, 268). A “matéria-prima”, como as melodias de matriz rural, não constitui, portanto, no projeto do “aportuguesamento” no quadro do GEM da EN, apenas uma reminiscência de uma tradição atemporal que le- gitima a nação e se torna na quintessência da identidade nacional. Como refere Ramos do Ó, trata-se de “exibir a rusticidade, o conservadorismo, o tradicionalismo e reivindicar o seu carácter arquétipo. As marcas da alma do povo personificariam a unidade funcional de toda a comunidade” (Ó 1992, 438). A prova de que a nação está viva e vibra a partir da cultura expressiva do “povo” é evidente no discurso de António Ferro. Essa presumível vitalidade, ancorada em discursos de autenticidade e de virtudes da raça, constitui nada mais do que, na sua ideologia, a adequação da tradição ao mundo moderno.

55 Acerca das recolhas etnográficas realizadas em Portugal, consultar Castelo-Branco 2010.

56 Segundo Thiesse, comentando Löfgren, a “lista de elementos simbólicos e materiais” que uma nação deve apresentar para se afirmar são “uma história que estabelece uma continuidade com ilustres antepassados, uma série de heróis modelos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos culturais, um folclore, locais eleitos e uma paisagem típica, uma determinada mentalidade, representações oficiais – hino e bandeira – e identificações pitorescas- trajes, especialidades culinárias ou um animal emblemático” (Thiesse 2000, 18).