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1.2 CONTRIBUIÇÕES BAKHTINIANAS: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO

1.2.1 Dialogismo e linguagem

1.2.1.3 A proposta bakhtiniana: uma nova disciplina?

O tema da linguagem permeia toda a obra bakhtiniana, transcendendo os limites da linguística geral ou do sistema. O enunciado é entendido desde o texto Para uma filosofia do ato, escrito entre 1919 e 1921, como um ato singular e único, sempre relacionado à situação concreta da sua enunciação. Nesse manuscrito, já é possível observar princípios que confrontam uma linguística tradicional. Os conceitos fazem referência, ainda que nem sempre colocados explicitamente no texto, ao plurilinguismo (que se refere à diversidade de pontos de vista), a relação eu/outro, bem como o ato avaliativo que o indivíduo apresenta em sua relação com o mundo.

No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária, escrito em 1924 e publicado em Questões de literatura e de estética, Bakhtin (1998) destaca a importância da linguística tradicional, porém como uma disciplina auxiliar, considerada pelo autor russo um aspecto imprescindível na análise estética. Todavia, a linguística não pode ocupar um lugar de protagonismo no exame estético: é possível a compreensão da forma como material, mas também como valor, o qual transcende os limites da obra. Tais concepções não poderiam ser observadas pela linguística do sistema, que Bakhtin (Volochínov) (2009) afirmaria mais tarde estar relacionada ao estudo das línguas mortas, sem contemplar o estudo da fala viva, a qual se encontra em contínua evolução.

A temática da linguagem passa a ser abordada de forma mais evidente pelo Círculo a partir da metade da década de 20. Tal período é chamado por Faraco (2009) de virada linguística. O assunto passa a ser o ponto comum entre os textos do grupo, ainda que apresentem distintas perspectivas em relação ao tema. Faraco (ibid) refere que Voloshinov se ocupou em desenvolver a teoria da linguagem, enquanto que Medvedev dedicou-se ao estudo das ideologias, ou o que chama de pluralidade das esferas da produção imaterial. Não apenas Medvedev, mas também seus companheiros de estudo levam o conceito de ideologia para a reflexão sobre linguagem.

Na metade da década de 20, a questão da linguagem aparece destacada no texto, publicado em 1976, Discurso na vida e discurso na arte, de Voloshinov/Bakhtin. Os autores referem que os enunciados cotidianos e os artísticos compartilham uma mesma base: a linguagem. A discussão sobre o enunciado artístico é realizada a partir da reflexão sobre os

enunciados cotidianos, mostrando assim sua natureza comum. No texto, os autores pontuam que o enunciado deve ser estudado como um “fenômeno de comunicação cultural” e assim, sempre relacionado à situação social que lhe gerou. Sendo o discurso verbal um evento social, ele não pode ser preso à abstração da linguística formal nem ser olhado como produto isolado da subjetividade. Os pensadores afirmam que ambas as abordagens deixam escapar a natureza sociológica da linguagem. A vida do discurso nasce da interação social, que constitui sua forma e significado. Se a relação social for retirada do enunciado, “tudo que nos resta é uma casca lingüística abstrata ou um esquema semântico igualmente abstrato” (ibid., p.13).

O enunciado analisado de uma perspectiva da linguística formal ignora, segundo Voloshinov/Bakhtin (1976), a existência do evento e de seus participantes vivos, porque considera apenas palavras e componentes abstratos. Assim, a análise formal não contempla a totalidade do conteúdo e valor ideológico do discurso. Para os autores, o ponto de partida da análise sociológica deve ser a conformação linguística, porém não pode ficar limitada a ela, deve ultrapassá-la para além da fronteira dos elementos verbais. Visto que os autores consideram o enunciado como “um cenário de um evento” (ibid., p.17), as relações entre as pessoas são transpostas para o material verbal, aspecto desconsiderado pela linguística formal, que enxerga apenas as relações dos elementos abstratos da palavra, como a fonética, morfologia e sintaxe.

As questões referentes à linguagem aparecem claramente definidas no texto O problema do conteúdo, do material e da forma nos estudos literários, escrito na metade da década de 1920, publicado em 1993 e reeditado em 1998. No ensaio, é possível encontrar relações entre a natureza dos enunciados e o contexto cultural de sentidos valorativos. A linguística do sistema parece então insuficiente para contemplar o estudo da língua viva, uma vez que sua relação com o enunciado trata apenas da unidade da língua.

A perspectiva translinguística (ou metalinguística)22 da obra bakhtiniana atravessa os limites da linguística formal para estudar o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva. O conceito é bastante discutido em Problemas da poética de Dostoiévski (1999), especialmente no capítulo O discurso em Dostoiévski. Sendo o discurso impregnado

22 Embora o termo metalinguística seja utilizado na obra bakhtiniana, o conceito de translinguística é sugerido

preferencialmente por di Fanti (2009), uma vez que o prefixo “trans” indica um sentido de ultrapassagem à linguística formal.

de relações dialógicas, que são de índole extralinguística, precisa ser analisado pela translinguística. Bakhtin (1999) reitera que não se pode recusar a contribuição da linguística do sistema (ainda que não seja seu foco de interesse) e sim admitir que as perspectivas de estudo da linguística e da translinguística olham para o mesmo objeto e precisam ser complementares, inclusive com frequente violação dos limites das disciplinas.

Bakhtin (1999) esclarece que a linguística tradicional toma a linguagem em sua generalidade, excluindo assim as relações dialógicas de sua investigação. O autor conclui que o discurso precisa ser estudado pela metalinguística (translinguística), cujo objeto de pesquisa é o estudo das relações dialógicas intrínsecas ao discurso. Ele situa seus estudos dentro desse campo, visto que deseja conhecer a língua em sua manifestação viva e materializada no discurso.

A nova disciplina proposta por Bakhtin pode ser considerada de extrema relevância, pois seu estudo permite tratar dos sentidos do enunciado e suas relações dialógicas. O autor não compreende a língua de maneira isolada, ou seja, para ele uma análise linguística pressupõe a consideração de fatores que vão além do linguístico estrito, como a interlocução empreendida, o contexto, o momento histórico e as posições ideológicas. Um dos autores que resgata temas importantes da obra bakhtiniana é Zavala (2009), cuja obra recupera os conceitos de palavra como fenômeno social, alteridade e diálogo, afirmando que toda palavra presume uma escuta: uma abordagem que certamente vai além do que uma linguística “do sistema” poderia contemplar. Lembra que Bakhtin elabora uma teoria discursiva baseada nas relações dialógicas, onde traz a questão da intersubjetividade percebida como processo dinâmico, sendo o outro constitutivo do processo de comunicação verbal. É nessa relação que a enunciação se constitui, motivo pelo qual abordaremos nos capítulos seguintes conceitos relativos à responsividade e à imagem de autor, além da relação eu/outro na linguagem.