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1.2 CONTRIBUIÇÕES BAKHTINIANAS: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO

1.2.2 A responsividade e a pluralidade de vozes no discurso

1.2.2.1 Responsividade do enunciado e imagem de sujeito discursivo

enunciado. Bakhtin (2010) critica a falta de reconhecimento, por alguns estudiosos, da atitude ativa dos interlocutores, indicando uma compreensão deturpada do processo da comunicação viva, uma vez que o diálogo é concreto, nunca abstrato: todo enunciado é de natureza responsiva e social. Assim como o enunciado vivo, sua compreensão também é de natureza ativamente responsiva, ou seja, toda fala é uma resposta a outra que a antecedeu. O autor afirma que nosso discurso é pleno de palavras dos outros, as quais trazem sua própria expressão e seu tom valorativo. Contudo, existe uma reelaboração e reacentuação pelo locutor que incorpora tais palavras, sendo essas de modo algum indiferentes ao enunciado que as incorporou.

A vida do discurso é considerada dinâmica e ativa no processo de resposta. Assim, a compreensão será sempre responsiva. O próprio conceito de dialogismo contempla o aspecto da responsividade. As relações dialógicas aparecem para Bakhtin (Volochínov) (2009) como relações de sentidos que provêm dessa responsividade, no momento em que o sujeito assume um posicionamento valorativo ao enunciar.

Quando o Círculo discute os signos, refere que eles refletem e refratam a realidade, o que significa dizer que os enunciados são “reelaborados” de diferentes formas cada vez que proferidos. Segundo Bakhtin (Volochínov) (2009) o produto ideológico não apenas é parte da realidade exterior, como apresenta o reflexo e a refração dessa realidade. Diversos tons permeiam a palavra, motivo pelo qual essa não pode ser uma cópia da realidade, que atravessa de distintas maneiras o olhar dos grupos sociais, ressignificando o mundo com vários sentidos. O processo é inerente à condição de ser signo, uma vez que circula inevitavelmente por muitos contextos semânticos-axiológicos, de acordo com Faraco (2009).

O processo de significação convoca as numerosas axiologias que participam do processo histórico-cultural humano, no momento em que o universo da criação ideológica demanda uma dinamicidade das relações dialógicas. A refração é entendida como a atmosfera plurilíngue que reveste os objetos do mundo, em cujo meio surge a voz, a entonação do locutor dentre os discursos alheios. Uma das metáforas bakhtinianas compara o conceito a incontáveis fios dialógicos, “tecidos pela consciência socioideológica” (1998, p.86). São justamente essas vozes que refratam a realidade, entendimento que aponta para a perspectiva estratificada com que o grupo vê a linguagem. Tal estratificação se dá tanto do ponto de vista linguístico como pelas axiologias sociais.

O entendimento de resposta para o Círculo apresenta-se num sentido mais amplo do que a simples réplica. Quando Bakhtin pontua em Para uma filosofia do ato que todo o ato deve ser responsável, significa que o indivíduo deve posicionar-se em relação a algo, responsabilizando-se por seu ato. No caso do discurso, é necessário responder ao que já foi dito, posicionando-se sobre o dizer, o que pode variar entre concordância, discordância, ironia etc. O diálogo é uma dinâmica tensa em que vozes sociais são aceitas ou recusadas. Por meio da posição avaliativa são construídas as relações de sentidos do enunciado.

As diferentes vozes sociais que compõem o enunciado, bem como os variados campos da atividade humana, são constitutivas do enunciado e interferem, segundo Bakhtin (2010), no uso da linguagem. As esferas ideológicas criam ao longo de cada momento histórico os diferentes gêneros e as formas do que Bakhtin (Volochínov) (2009) chama de comunicação socioideológica. Os gêneros discursivos também são apresentados em uma perspectiva dinâmica, que evoca respostas, marcadas na historicidade dos gêneros. Eles são formas relativamente estáveis de enunciado, originados a partir das diferentes esferas (BAKHTIN, 2010). É possível perceber o conceito de responsividade no gênero, dada sua natureza social: os tipos de interação verbal relacionam-se com seus contextos sociais específicos. Bakhtin (Volochínov) (2009) destaca a esfera da comunicação na vida cotidiana, que está relacionada aos processos de produção, bem como às esferas ideológicas especializadas.

O enunciado, para Bakhtin (2010), possui, como unidade da comunicação discursiva, peculiaridades estruturais comuns e limites precisos, definidos pela alternância dos sujeitos do discurso. Para o enunciado ser concluído, ele precisa da exauribilidade23 do sentido, do projeto de discurso do locutor, bem como apresentar as formas típicas e composicionais de gênero e de acabamento (BAKHTIN, 2010). O fim do enunciado dá lugar à fala do outro ou à compreensão responsiva. Todavia, a alternância proposta por Bakhtin ultrapassa os limites do diálogo estrito, pois as diferentes vozes alternam-se no interior do próprio enunciado: elas proferem tons, como expectativa, incerteza. Além disso, no momento em que o enunciado é proferido, é endereçado a alguém, de quem se constitui uma imagem. O pensador russo (ibid.) valoriza mais uma vez o papel do outro a quem se direciona o enunciado.

23 Bakhtin (2010) desenvolve uma discussão detalhada sobre as peculiaridades do enunciado no ensaio Os gêneros do discurso. É importante salientar que a exauribilidade do enunciado, um dos elementos abordados

O autor, para Bakhtin, é considerado o agente da unidade ativa do todo acabado, da personagem e da obra, fato que se deve a sua expressão ativa e criadora, a qual abrange o mundo da personagem. É possível realizar um recorte da questão da autobiografia que Bakhtin discute no capítulo O autor e a personagem na atividade estética (2010) para refletir algumas questões pertinentes ao processo de instauração na linguagem, cujas considerações abordaremos ao fim do trabalho. No texto, o pensador russo ressalta que a autobiografia não significa um discurso enunciado diretamente do interior. Ao contrário, exige um certo distanciamento da própria vida, olhando a si como se fosse com olhos dos outros. O excedente de visão do autor em relação à personagem (mesmo que ela corresponda ao próprio autor), o “ver além”, é necessário para o acabamento da obra, cuja orientação ético-cognitiva a personagem irá seguir.

Consideramos válido retomar o texto Discurso na vida e discurso na arte (1926/1976), no qual Bakhtin/Voloshinov pontuam: toda locução que pretende comunicar algo resulta da interação social do falante/locutor (autor), do interlocutor (leitor) e do tópico da fala (o que ou quem/ o herói). Assim, consideram o enunciado como um evento social. Ao enunciar, o locutor elabora uma resposta antecipada de seu ouvinte e seu círculo, ou seja, os que já falaram sobre o tema e os que dele falarão (BAKHTIN, 1998). No ato enunciativo é criada então uma imagem de interlocutor, uma representação que orientará os sentidos do discurso. Tal orientação existe devido à natureza dialógica do discurso, pois o enunciado interage com o discurso de outrem no(s) percurso(s) para chegar ao objeto. O livro Estética da criação verbal (2010) retoma o tema no texto Os gêneros do discurso, salientando o papel dos outros para os quais o discurso é construído e a participação ativa do locutor e do interlocutor.

Ao tratar sobre a ideia de compreensão responsiva, Bakhtin (2010) destaca o endereçamento do enunciado como traço constitutivo do discurso. O termo corresponde ao direcionamento que o locutor realiza para outra pessoa ao enunciar. É lembrado que, diferentemente da oração, o enunciado sempre tem autor, destinatário e se manifesta de diversas maneiras, conforme o campo da atividade humana que está relacionado ao discurso. Cada gênero e, consequentemente, sua composição e estilo são dependentes da representação que o locutor faz de seu interlocutor, visto que a percepção do destinatário é sempre considerada (e antecipada) no ato de enunciação. No diálogo cotidiano, a variação dos tons usados pelo locutor estará sujeita a sua proximidade do interlocutor. Os gêneros também “percebem” seu destinatário em distintos níveis de hierarquia social, motivo que nos leva a

considerar a relação entre o locutor e o outro para um entendimento de gênero mais coerente a uma concepção enunciativa. As particularidades quanto ao direcionamento são propriedade do enunciado; a oração desconhece tais propriedades. Assim, a seleção dos recursos linguísticos está sujeita à influência do destinatário.

Além do conceito de destinatário (o segundo) já desenvolvido, Bakhtin (2010) entende que o locutor também propõe um terceiro ao enunciar, que chama de supradestinatário superior, o qual recebe diversas expressões ideológicas concretas. O terceiro situa-se acima dos demais participantes e se caracteriza como uma instância superior e, assim como os demais elementos, é constitutivo do enunciado. O supradestinatário funciona como um fundo onde o diálogo acontece, em uma manifestação que se deve à natureza responsiva da palavra. Em Marxismo e filosofia da linguagem, é mostrado que o discurso resulta da interação de dois sujeitos organizados socialmente. A interação entre sujeitos discursivos, esclarece Bakhtin (Volochínov) (2009), independe da existência de um interlocutor real: é necessário apenas que o sujeito pertença ao mesmo grupo social. Assim, a enunciação é determinada pela situação social e “a palavra dirige-se a um interlocutor” (ibid. p. 116), logo, apenas na relação com o outro ela se realiza. Na enunciação, faz-se necessário supor um auditório social, que definirá a criação ideológica do grupo social. A consciência interior dispõe desse auditório, a partir do qual elabora suas deduções e acentuações.

Retomando a obra Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, observamos que Bakhtin (1998), ao criticar a teoria da imagem na poética russa no texto O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (ibid.), define imagem estética como sendo uma formação estético-singular que se realiza, no caso da poesia, com o auxílio da palavra. O elemento não está relacionado a representações visuais, mas ao componente formalizado no conteúdo. A imagem do autor-criador é criada pelo autor- pessoa, que enforma a obra, uma vez que o primeiro corresponde apenas a um momento constitutivo da forma artística. A atividade do autor, orientada sobre o conteúdo, determina as articulações composicionais do conjunto verbal, ou seja, o material. Ao discutir o romance, o pensador russo afirma que a característica da imagem do autor não é a imagem do homem, mas sim a imagem de sua linguagem. Na exposição sobre cronotopia, o autor também aborda a possibilidade de mais de uma forma de representação da personagem durante uma mesma obra, durante as transformações de tempo e espaço. Já no discurso cotidiano, Bakhtin (ibid.) valoriza os procedimentos de transmissão, devido ao seu caráter prático, além de salientar a

importância de contextualizar a cena de discurso para captá-lo adequadamente.