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1.2 CONTRIBUIÇÕES BAKHTINIANAS: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO

1.2.3 A constituição da linguagem na relação com o outro

1.2.3.1 Formas de apreensão da palavra alheia

A palavra do outro, como vimos, é sempre apreendida de modo valorativo. Bakhtin (Volochínov) (2009) entende que o sujeito que busca a palavra alheia não é mudo, mas sim repleto de palavras interiores. Bakhtin (Volochínov) refere que a enunciação de outrem é apreendida no discurso interior por meio das operações de réplica e comentário efetivo (termo consultado em Jakubínski, conforme discutido na obra Marxismo e filosofia da linguagem). Ambas são instâncias interligadas em relações tensas e dinâmicas pelas quais, no processo de compreensão, o discurso alheio é apreendido. As duas operações de apreensão da palavra do outro se realizam no discurso citado, o qual engloba o contexto narrativo.

É preciso então considerar as relações dinâmicas que existem entre o discurso citado e o contexto narrativo para realmente entender o primeiro, cuja discussão aparece no livro

Marxismo e filosofia da linguagem (ibid.). O discurso citado serve para evidenciar a presença constante da palavra alheia nos enunciados, mesmo em gêneros primários como o discurso familiar. O texto destaca a apropriação axiológica da palavra do outro. Bakhtin (Volochínov) (ibid.) fala do discurso citado como “o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (ibid., p. 150), sendo percebido pelo locutor como se tal discurso pertencesse a outro indivíduo. A palavra do locutor e a do outro que habita seu discurso entram em interação. A compreensão do discurso citado requer a consideração das operações de apreensão da palavra alheia, pois envolve um processo de inter-relação dinâmica. A apreensão da palavra alheia, para Bakhtin (Volochínov), pode ocorrer de diferentes maneiras, das quais ele cita diferentes estilos: o estilo pictórico (que suaviza os contornos da palavra alheia) e o linear (que marca os contornos nitidamente)26.

Em um dos últimos textos escritos por Bakhtin, Apontamentos (2010), é afirmado que a interação com a palavra alheia é uma questão praticamente desconhecida pelas ciências humanas. O papel da assimilação da palavra de outrem também é salientado no texto A pessoa que fala no romance, do livro Questões de literatura e estética (1998), quando é apresentada a importância de interpretarmos o discurso dos outros desde as situações cotidianas até as esferas sociais de nível mais elevado. Também é trazida a função imprescindível da apreensão da palavra alheia no processo de formação ideológica do indivíduo. A interação com a palavra alheia irá, portanto, definir as bases da atitude ideológica que o homem tem em relação ao mundo.

A maneira de transmissão da palavra do outro pode assumir inúmeras formas. Bakhtin (1998) salienta a circulação do discurso alheio nos enunciados do cotidiano. Nas conversas na rua, numa multidão, a interpretação da palavra do outro manifesta-se com frequência. Esta transmissão pode acontecer por meio de diferentes procedimentos e em diversos graus de presença (mais ou menos aparente). No processo de apropriação da palavra de outrem, Bakhtin categoriza duas formas de manifestações da atitude ideológica do sujeito em relação ao mundo, as quais podem manifestar-se inclusive na mesma palavra: a palavra autoritária e a palavra interiormente persuasiva.

26 No livro Marxismo e filosofia da linguagem (2009), Bakhtin (Volochínov) discute amplamente diferentes e

interessantes formas de apreensão do discurso do outro, como discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. Entretanto, para os fins da pesquisa em questão, os conceitos não serão objeto de reflexão.

A primeira forma de assimilação é a palavra autoritária, que não dispõe de persuasão interior para a consciência: é o discurso que se impõe ao sujeito. É a palavra que se associa a um passado hierárquico, uma vez que ecoa em uma alta esfera, como é o caso da palavra religiosa, médica, política, paterna. É um tipo de enunciado que, de acordo com Bakhtin (1998), demanda um destaque, pois não se mistura nem se confunde com os demais discursos ao seu respeito. Assim, exige que o locutor o confirme ou o recuse totalmente.

O segundo tipo de apropriação da palavra alheia é a palavra interiormente persuasiva. Ao contrário da exposição anterior, a essa palavra falta autoridade. É um discurso muitas vezes desconhecido, desprovido de lei. Bakhtin (1998) destaca que tal palavra será fundamental para a transformação ideológica da consciência individual. Parece existir uma indiferenciação inicial entre a palavra do sujeito e a do outro – a palavra é dividida entre ambos. A palavra internamente persuasiva é aberta, interminável e contemporânea. Um de seus componentes constitutivos é a concepção de interlocutor, o que lhe confere responsabilidade. Encontra-se aqui uma possibilidade de ressignificação da palavra do outro, pois o sujeito também responde, mas de forma diferente (se comparado ao discurso autoritário), permitindo uma nova contextualização do discurso alheio.

Em um mundo de tantas vozes em contínua interação, o sujeito da linguagem se constitui. São justamente as relações dialógicas as constituintes do sujeito, que busca no outro as palavras que irá se apropriar. No livro Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin (Volochínov) (2009) entende que a consciência forma-se a partir dos signos. A própria compreensão é considerada “uma resposta a um signo por meio de signos” (ibid. p.34). A relação entre os signos é uma cadeia que não se quebra, estendida em cada consciência individual. O processo de apropriação ocorre apenas na interação, visto que o signo é sempre social. Portanto, o Círculo considera a consciência como social, sem, no entanto, recusar a singularidade do sujeito, que é dialógico.

Em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1998), Bakhtin refere a possibilidade unir a perspectiva de objetividade da linguagem ao estudo da palavra na vida, com suas ressonâncias dialógicas. O autor russo afirma que em qualquer tipo de discurso, inclusive os da prática cotidiana, existem palavras de outrem, transmitidas de diferentes maneiras. Todas as formas de transmissão orientam-se, de modo interessado, sobre o discurso individual. Os enunciados comportam uma tensão entre as palavras do autor e as dos outros,

que o locutor reacentua com as suas próprias intenções. Assim, a próxima subseção busca esclarecer as relações de alteridade e as questões quanto à reacentuação da palavra alheia.