• Nenhum resultado encontrado

1.2 CONTRIBUIÇÕES BAKHTINIANAS: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO

1.2.3 A constituição da linguagem na relação com o outro

1.2.3.2 Alteridade e reacentuação do discurso de outrem

As pontuações anteriores versaram sobre a orientação do discurso em relação ao interlocutor e as formas de apropriação da palavra alheia. Tais questões são bastante valorizadas pelo Círculo, que salienta a relação eu/outro como base para a enunciação. Ela é campo comum ao locutor e o ouvinte, por isso não pertence exclusivamente ao falante (exceto no ato fisiológico). Assim, a estrutura da enunciação define-se a partir da situação social imediata e o meio social amplo, ou seja, é determinada pelas relações sociais. A forma e o estilo da enunciação dependem da relação entre os locutores, que determinará a maneira como o sujeito se dirige ao outro.

O processo de tomada de consciência pressupõe, segundo Bakhtin (Volochínov) (2009), um discurso interior, o qual é delineado pelo contexto social. A partir disso, é possível definir os potenciais ouvintes para os quais a consciência estará orientada, fato que pressupõe um posicionamento avaliativo. Portanto, o pensamento depende de sua orientação social. A atitude valorativa em relação ao objeto de discurso já é trazida de certa forma por Bakhtin desde Para uma filosofia do ato, cujo esboço foi escrito no início da década de 1920. No texto, a atitude valorativa (ou entonação expressiva, como apresentada em outras obras) em relação ao objeto aparece desde o momento em que se começa a falar do objeto. A palavra viva requer uma atitude interessada, participativa, por isso exige minha entonação em relação ao objeto (BAKHTIN, 1993).

O ato, ou seja, o que é experimentado possui um tom emocional-volitivo, pois tudo que se relaciona com o sujeito é dado a ele como um momento constituinte do evento do qual o indivíduo participa. Tal objeto experimentado é sempre acompanhado de sua entonação; logo, para materializar-se no discurso, a palavra precisa conectar-se com uma avaliação real. O pensamento participativo que Bakhtin propõe desde suas primeiras reflexões filosóficas é um pensamento emocional-volitivo, cuja entonação compõe os sentidos do pensar. O ato vivo encontra um grande número de valores culturais e deve reconhecer sua validade, por isso a experiência e o tom emocional-volitivo adquirem unidade somente dentro da unidade cultural:

ele expressa a inteireza do estado de Ser e sua verdade singular. O pensamento participativo adquire um centro único de valor, a partir do qual se singularizam o tempo e espaço reais. Nas palavras do mestre “(...) é como se raios de luz se irradiassem da minha unicidade (...), impregnando com a luz do valor todo o tempo possível (...)” (ibid., p. 77). A arquitetônica do “mundo-evento real” deve ser analisada em sua concretude e junto ao seu tom emocional- volitivo, que singulariza o ato.

O locutor apresenta uma atitude social avaliativa ao enunciar, a qual é materializada na entonação expressiva do enunciado. O assunto segue discutido no ensaio Os gêneros do discurso da obra Estética da criação verbal (2010), quando Bakhtin discorre sobre a expressão de uma atitude valorativa sobre o objeto. A expressividade do locutor em relação ao objeto de seu enunciado é o que determina a composição e o estilo do enunciado. A valoração varia conforme as esferas da comunicação verbal e motiva a seleção dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do discurso, bem como seu estilo. A língua possui um arsenal de recursos linguísticos que se encontram a serviço da posição avaliativa: as palavras abastecem o locutor e suas valorações. Contudo, o juízo de valor do enunciado é estranho aos elementos do sistema, cujos significados são neutros e carecem de expressividade.

Na mesma obra, Bakhtin (2010) discute a introdução dos enunciados alheios no enunciado, algo que o sistema da língua não compreenderia. Porém, são comparados às replicas do diálogo: o tom valorativo isola o discurso do outro, em um fenômeno de alternância dos sujeitos do discurso com limites mais sutis. Assim, encontramos uma dupla expressão no enunciado, pois existe a valoração do outro e a do discurso que o admitiu. Logo, o dizer do outro vem valorado, porém, ao ser introduzido no discurso, é reavaliado a proveito do locutor que o cita. A relação entre ambos ocorre em diferentes graus de alteridade.

O texto sobre gêneros do discurso explora a questão da alteridade ao discutir o conceito de responsividade do enunciado. Segundo Bakhtin (2010), não é possível ocupar uma posição definida em uma determinada esfera da comunicação sem relacionar tal posicionamento com outras posições. As possibilidades de reação à palavra alheia, de acordo com o pensador russo, podem ocorrer de diversas formas: o discurso do outro é, portanto, reassimilado em diferentes graus. No livro Marxismo e filosofia da linguagem, é discutido por Bakhtin (Volochínov) (2009) que a experiência individual sempre se manifesta a partir da relação com os enunciados dos outros: assim, a realização do signo social no discurso é determinada pelas

relações sociais. A situação e os participantes mais imediatos influenciarão inclusive a forma e o estilo do enunciado.

O discurso, com sua natureza responsiva, nunca é proferido pela primeira vez, já foi dito pelos lábios de outrem. Bakhtin (2010) refere que o locutor não pode ser considerado um Adão bíblico diante de objetos virgens e sem nome, os quais nomeia pela primeira vez. Assim, mesmo que não de maneira evidente, o enunciado sempre possui algum grau de alteridade. Bakhtin lembra que o fenômeno da bivocalidade é muito frequente no diálogo cotidiano, quando o locutor reacentua as palavras de seu interlocutor direto, outra questão que remonta à relação eu/outro na linguagem na obra bakhtiniana.

Será dessa dinâmica de alteridade que o singular se constitui, quando o sujeito assume e responsabiliza-se por um lugar ao interagir com outras vozes. Tal processo ocorre, portanto, por meio da relação com o outro. Em Apontamentos (2010), a questão da alteridade é retomada para reafirmar que a constituição do eu depende do outro. No texto, o pensador compara o fenômeno ao sol, o qual se transforma ao ser conscientizado pela testemunha e pelo juiz, embora a estrutura física do astro continue a mesma. Bakhtin continua o assunto afirmando que tudo o que refere ao sujeito, a começar pelo seu nome, chega à consciência pela boca dos outros, junto com seus acentos de valor. Logo, a minha consciência se dá através dos outros, desde o início, como o corpo surge a partir do corpo da mãe, para depois adequar para si as palavras da língua.

No mesmo texto, Bakhtin (2010) entende a palavra do outro como aquela “não minha”, embora todas as palavras sejam dos outros, pois vivemos em um mundo de palavras alheias. A vida é justamente uma reação a tais palavras, cuja relação completa a vida humana. O indivíduo percebe (ou não) uma divisão entre as suas próprias palavras e as alheias, porém suas fronteiras podem confundir-se e nelas se estabelecer uma tensão dialógica. O pensador complementa em O problema do texto na lingüística, na filologia e em outras ciências humanas (de Estética da criação verbal (2010)) que o discurso alheio é assimilado pelo autor em diferentes graus de alteridade.

Na discussão sobre a reacentuação da palavra alheia do texto Discurso na vida, discurso na arte, a entoação é entendida por Voloshinov/Bakhtin (1976) como um ato social, tendo em vista sua avaliação de outro ponto de vista, o que leva qualquer ato a ser orientado para o(s) interlocutor(es). Mesmo na autoavaliação o sujeito avalia a si mesmo por meio de

outro ponto de vista. Em O todo semântico da personagem (de Estética da criação verbal (2010)), podemos estender a discussão a partir das reflexões bakhtinianas sobre a lírica. Bakhtin refere que “eu me encontro a mim mesmo na voz inquieto-emocionada do outro, encarno-me na voz cantante do outro (...)” (p.156). É necessário sentir o outro em si mesmo: a voz nunca poderia ecoar no silêncio.

No texto anterior, Bakhtin entende que o sujeito percebe a si em uma coletividade; a contemplação de sua própria vida é somente uma antecipação de tal existência pelos olhos alheios. A questão da alteridade também aparece em alguns momentos do texto O corpo como valor: o corpo interior (do capítulo A forma espacial da personagem de Estética da criação verbal (2010)) de forma que nos permite refletir sobre a instauração da criança na linguagem. Bakhtin (2010) trata da inscrição de valores maternos para o sujeito, afirmando que a vida biológica do organismo somente se torna um valor pela simpatia que o outro materno lhe demonstra. A imagem do sujeito é esculpida pelo reconhecimento do outro, o que corresponde inicialmente às pessoas mais íntimas, como a mãe. Segundo o pensador, “[...] dos lábios da mãe e de pessoas íntimas a criança recebe todas as definições iniciais de si mesma.” (ibid., p.46). Assim, podemos entender que vida do bebê é colocada em um novo contexto de valores, fato que lhe permite a inscrição subjetiva. Portanto, a imagem de locutor que a criança constrói é, em grande parte, enformada axiologicamente pelo dizer do outro materno.

A criança começa a perceber-se a partir dos olhos da mãe, de acordo com Bakhtin (2010), expressando-se nos tons volitivo-emocionais dela. O autor russo entende que o bebê se determina pelas palavras maternas: “esse amor da mãe e das outras pessoas, que desde a infância forma o homem de fora ao longo de toda a sua vida, dá a consistência ao seu corpo interior” (ibid., p.47). O texto bakhtiniano mostra a importância das primeiras relações sociais na representação interior que a criança elabora de si mesma, questão que contribui para nosso objeto de estudo: a relação eu/outro na linguagem na interação da criança com deficiência e sua família. Os recursos para tal investigação serão expostos no próximo capítulo, que trata das considerações da metodologia de trabalho.

2 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

A perspectiva teórica do Círculo de Bakhtin considera o sujeito na relação com o outro, estimando sua singularidade. Tal pressuposto, abordado desde as primeiras obras do Círculo, guia a construção de nosso método de análise, que percebe o significado do ato nunca a priori e sim como algo que se manifesta na relação do sujeito com sua própria atividade. Desde o ensaio Para uma filosofia do ato, Bakhtin discute que a teoria precisa compartilhar com o evento real, motivo pelo qual nos leva a propor a metodologia a partir do objeto: a relação eu/outro que atravessa o discurso familiar e a manifestação clínica da linguagem infantil.

Visamos, neste capítulo, expor os procedimentos metodológicos escolhidos para o estudo, a partir da base teórica que os fundamenta. O primeiro momento busca apresentar o objeto de pesquisa selecionado para a investigação. Em seguida, partimos para as especificações metodológicas, trazendo considerações no que se refere ao registro, à transcrição e à análise. As etapas seguem os princípios da teoria dialógica do Círculo de Bakhtin, levando em conta as questões discutidas na revisão teórica e os objetivos da investigação, quais sejam: como objetivo geral, visamos analisar a relação eu/outro na interação entre uma criança com deficiência e familiares (mãe e irmã); como objetivos específicos, buscamos (i) verificar o favorecimento ou não das potencialidades de linguagem da criança nas cenas de interação com os familiares, bem como (ii) investigar imagens de sujeito discursivo construídas sobre a criança pelo discurso de familiares.

2.1

ORIENTAÇÕES PARA UMA METODOLOGIA BAKHTINIANA: UM OLHAR