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1.2 CONTRIBUIÇÕES BAKHTINIANAS: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO

1.2.2 A responsividade e a pluralidade de vozes no discurso

1.2.2.2 Vozes bakhtinianas no discurso

A discussão precedente apontou para a natureza responsiva do enunciado e o papel fundamental do destinatário na composição do enunciado. Na resposta antecipada do ouvinte, cria-se uma imagem do interlocutor e de um supradestinatário, para quem o discurso é constituído. No processo, o texto responde a diferentes vozes que falam do objeto, interagindo com elas de diferentes maneiras.

É bastante discutida pelo Círculo de Bakhtin a tensão de vozes produtora de sentidos, em uma interação entre discursos. Muitas vezes a dinâmica pode ser encontrada em uma mesma palavra, na qual diferentes sentidos interagem. O Círculo salienta que o domínio cultural vive nas fronteiras, convivendo com outras perspectivas. Contudo, existem forças centrífugas e centrípetas no fenômeno de atribuição de sentidos. Assim, observa-se a existência de jogos de poder que tentam impor sua verdade e dar a última palavra, ainda que não exista a primeira ou a última palavra no contexto dialógico, já que os sentidos sempre se renovam (BAKHTIN, 1998). As forças centrípetas procuram, então, centralizar sua posição axiológica enquanto que as centrífugas buscam o movimento oposto, desgastando aquelas forças impositivas e monologizantes. Esta tensão contínua das duas forças caracteriza o plurilinguismo dialogizado do enunciado.

A história de discursos que acompanham a palavra é constituinte de seus sentidos, num processo dinâmico de interação entre as diferentes ressonâncias dialógicas. Daí a importância de se considerar que a aquisição de conhecimento que faz do sujeito um ser social é constituída por meio do valor histórico da linguagem. A teoria bakhtiniana nos permite constatar que esse ser social carrega suas visões de mundo que obteve pela relação discursiva abstraída desde a infância, nos diálogos com a mãe, na escola, até o momento mais transcendental nas relações sócio-culturais. Bakhtin (1998) entende que tal processo faz do sujeito um ser que fala por si, pelo outro e por meio do outro. Pode-se considerá-lo então, um ser discursivo, que enuncia em planos dialógicos, respondendo e questionando as diferentes vozes encontradas em sua trajetória discursiva. Da mesma forma, a língua, para o teórico

russo (ibid.) também precisa ser considerada em sua existência histórico-cultural, pois se encontra em constante renovação. O autor refere que a língua pode ser tratada como uma questão historicamente real, concebida em um processo de transformação plurilíngue.

A relação eu/outro na linguagem24 é trabalhada em diferentes momentos nas obras do Círculo de Bakhtin. No texto Discurso na vida e discurso na arte, o enunciado concreto, para Bakhtin/Voloshinov (1976), une os participantes de um contexto comum como co- participantes da situação. O contato entre locutor e interlocutor dá-se por meio da expressividade sobre o objeto de discurso, visto que o ato enunciativo (e sua inerente entonação) é considerado um ato social. Assim, a expressão individual apenas se manifesta sobre a base da avaliação social. A realização verbal do “eu” somente pode ocorrer sobre a base do “nós”. O sujeito dessa abordagem se constitui numa relação de alteridade e pode ser considerado, de acordo com Faraco (2009), “um agitado balaio de vozes sociais” (p.84).

Retornando aos textos de Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1998), Bakhtin mais uma vez trata da multiplicidade de vozes no discurso, quando diz que o ponto de vista criador somente existe na interação com outros pontos de vista: ele nasce nas fronteiras. O ensaio O discurso no romance aborda amplamente a questão. O simples fato apenas adquire sentido na sua orientação cultural e concreta no momento em que irá posicionar-se axiologicamente. Ao abordar o romance, o autor afirma que os sentidos contemplam uma heterogeneidade social de linguagens organizadas de maneira artística, com eventuais estratificações de línguas e vozes individuais nos diferentes períodos de sua história. Cada personagem comporta distintas vozes sociais em graus diversos de dialogização. Ele aborda a questão do plurilinguismo25 situado dentro de uma perspectiva ideológica e concreta, real.

O universo plurilíngue aponta para a diversidade de vozes sociais, que se encontram em constante e tensa interação. Bakhtin (1998) também aponta para a construção de uma

24 A relação eu/outro na linguagem será discutida com maior profundidade na próxima seção.

25 Ao falar da heterogeneidade de linguagem, Faraco (2009) alerta que os conceitos de heteroglossia e

plurivocidade não devem ser confundidos com o termo polifonia. Este último corresponde ao que Bakhtin chama

de universo de vozes equipolentes, para descrever o que defende ser um mundo em que todas as vozes encontram-se em pé de igualdade. Como Bakhtin considerou apenas o trabalho de Dostoiévski como polifônico, o termo não se aplicaria neste estudo. Faraco cita Tezza (2002) para apontar a possibilidade de ver o conceito como uma categoria filosófica, uma maneira de ver um mundo democrático e igualitário.

consciência galileana, um lugar distante do mundo ptolomaico monológico, a fim de descrever sua concepção de romance. Cita que o discurso romanesco percebe a multiplicidade de línguas sociais que se relacionam no texto. Ao abordar o romance e sua diversidade social de linguagens, o mestre russo discute outros discursos, como a cotidiano. Um dos pilares do trabalho bakhtiniano refere-se à heterogeneidade intrínseca ao discurso, o qual pressupõe uma diversidade de vozes que habitam as fronteiras dos sentidos.

O discurso concreto, para Bakhtin (1998), encontra seu objeto já permeado por outros pontos de vista e interage com eles, adquirindo um caráter dialogizado. Todos os tipos de manifestações verbais podem estratificar a linguagem, sobrecarregando suas palavras com acentuações típicas de valor, visto que qualquer enunciado valora com suas entonações de sentidos.A linguagem é, em todos os seus momentos históricos, pluridiscursiva, fato que se deve à existência simultânea de diferentes vozes. A palavra torna-se, então, impregnada de intenções alheias, as quais evocam contextos que perpassam sua vida. No encontro com tantas linguagens, o discurso relaciona-se com múltiplas vozes, fato que nos leva a abordar a seguir a concepção do Círculo de Bakhtin sobre modos de apreensão da palavra do outro.