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A prudência

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3 ALGUNS TEMAS PRÉVIOS DE JOSEF PIEPER

3.6 A prudência

Para JP a prudência é – dito de maneira sintética – a arte de tomar a decisão certa. Ou, como já afirmava Tomás de Aquino, a recta ratio agibilium: a reta razão aplicada ao agir. Esta ação correta se fundamenta na visão da realidade. E essa visão é formadora do conteúdo intrínseco da razão teórica, que se torna prática e determina o conteúdo do ato moral bom. Mas, como bem lembra

o Prof. Roberto Castro34, a razão que desvela a realidade e torna possível a ação correta não possui papel determinante. A razão é a faculdade do homem de perceber o real, de receber a verdade das coisas reais.35

Na visão pieperiana,

A prudência, na medida em que é a “justa constituição” da razão prática, apresenta como esta, uma dupla face. É cognoscitiva e volitiva. Está voltada para a intelecção do real, e por outro lado, para a determinação do querer e do agir. Mas o intelecto dá-se primeiro e constitui o “padrão determinante”. A decisão, que por sua vez é determinante do querer e do agir, recebe o seu “padrão” do conhecimento, como algo que ela é de secundário e subordinado. Como diz São Tomás, o “comando” da prudência é um “conhecimento diretivo”; a decisão prudente traduz uma refundição dos verdadeiros conhecimentos que a precederam. (Esta originária e fundamental cognoscibilidade da prudência encontra-se de resto confirmada na significação etimológica direta, tanto da palavra alemã Ge-wissen como da latina con-scientia; consciência e prudência, como já dissemos, significam em rigoroso sentido a mesma coisa).36

Com certeza um dos pontos mais valiosos dos estudos de JP e a espantosa atualidade do seu pensamento está no fato de que tenha resgatado os pressupostos teológicos e realistas, que, especialmente Kant,37 havia lançado na subjetividade, fazendo separação entre o real e a sua representação, entre a matéria e sua forma. Kant deixa em aberto o abismo entre o essencial e o existente, e JP reafirma – como havia feito seu grande mestre Tomás de Aquino – o conceito unificador da existência que é a absoluta unidade do ser (que aí está, mas também tem potencialidades ainda não desenvolvidas), sem recortes da realidade (Ausschnitt-Wircklichkeit), como é o caso da percepção da realidade dos animais presos a um meio adaptado e trancado pela sua animalidade, limitado em um meio recortado.

34 Doutor em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da USP e professor das Faculdades Integradas Alcântara Machado (Fiam), em São Paulo.

35 CASTRO, Roberto C. G. Josef Pieper: A realidade como fundamento da educação moral. Disponível em: http://www.hottopos.com/rih24/41-46roberto.pdf Acesso em: 13 de julho de 2014. 36 Josef Pieper, Virtudes Fundamentais, p. 21.

37 Imannuel Kant - 1724 - 1804 – filósofo alemão que inaugurou uma nova forma de pensar ao rejeitar o dogmatismo e o ceticismo, algo que revolucionou o pensamento filosófico conhecido até então. Defendia que o sujeito apenas pode conhecer os fenômenos, objetos da intuição empírica, pois, tudo o que não passar nessa verificação, é incognoscível. O ideal para Kant seria que as ações morais fossem cumpridas pelo puro respeito ao dever.

Qualquer outro ser possui somente uma participação fragmentária no ser, pois a essência das coisas se mantém oculta para eles. Mas o homem, por ter, não apenas vida vegetativa e animal, mas também e, sobretudo, vida espiritual, é capaz de apreender o ser total. Pois, como ser espiritual, o homem não vive “num mundo” ou em “seu” mundo, mas “no” mundo. Pertence a esse mundo no sentido de visibilia omnia et invisibilia [totalidade do visível e do invisível].38 Precisamente por isso é entendido como composto de matéria e forma, unificado pelo pensamento criacional divino.

Fundamentado nessa visão de unidade do ser, JP diz que a função da virtude da prudência não é descobrir as finalidades, ou antes, a finalidade da vida, e determinar a orientação fundamental do ser humano. É a de encontrar os meios e os caminhos adequados àqueles fins e a adequada realização aqui e agora daquela orientação fundamental. Os fins são um dado anterior. A prudência pressupõe uma real aspiração ao fim humano, a intentio finis. É precedida pela voluntária aceitação da justiça, da fortaleza e da temperança como rumo fundamental do homem em direção ao seu bem essencial – que é o “ser de acordo com a razão”. É por isso que a prudência não só é chamada de mãe de todas as virtudes cardeais (genitrix virtutum), mas também de guia das virtudes (auriga virtutum).39

Visto que também neste conceito JP segue fielmente40 a posição de Tomás de Aquino e faz profundos estudos que resgatam a riqueza filosófica deste grande pensador para o mundo ocidental, nos valemos aqui de alguns trechos de uma conferência do Prof. Lauand, tematicamente dirigida ao assunto.

Por mais que nosso tempo insista em querer relativizar a verdade, no fundo sabemos que há certo e “errados” objetivos e que a decisão do agir é um problema de ratio, de recta ratio... Quando, diante de uma ação, perguntamos “por quê?”, estamos perguntando é pela razão (reason, raison...): “Por que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de razão”, etc. E

38 PIEPER, Josef. Que é Filosofar? Edições Loyola, São Paulo: 2007, p. 30-32. 39 Josef Pieper, Virtudes fundamentais, p. 46.

40 Pieper diz claramente que seu trabalho não procura louros na originalidade do pensamento, e que, pelo contrário, não há qualquer frase que não possa ser extraída da obra de São Tomás de Aquino, “doutor universal” da Igreja. In Virtudes Fundamentais, p. 172.

para uma ação que é um grave mal moral, dizemos: “Que absurdo!!!”. Ela é uma virtude que - como insiste Tomás - versa sobre o "aqui e o agora", sobre a realidade contingente, singular, infinitamente variada, com a qual eu me encontro e requer de mim uma decisão. Para decidir corretamente, devo enxergar a verdade, o logos, o que a realidade exige de mim. Trata-se, portanto, antes de mais nada, de uma clarividência, de uma simplicitas, de uma capacidade intelectual de ver o real. Mas não de um real teórico, teoremático; e sim do concreto: saber discernir no "aqui e agora" o que vai me realizar ou o que vai me destruir... Tomás, sempre atento à linguagem, dirá que prudens vem de porro videns, “ver longe”. Nesse sentido, há uma sugestiva expressão que se usa muito em espanhol: "las veo venir", equivalente aos nossos: "já vi esse filme antes", "já dá para ver onde isto vai parar"... Esse caráter dramático da prudentia manifesta-se no fato de que ela, sim, é uma atitude racional, é a limpidez da inteligência que vê o real (e isto é uma qualidade moral: só o homem de coração puro vê o real), mas não há critérios operacionais para determinar qual a decisão certa. Suponhamos, por exemplo, que aceitemos os dez mandamentos como guia moral e que estejamos todos de acordo em que é necessário, digamos, amar pai e mãe... Porém, como realizar este “amar pai e mãe” na situação concreta em que estes pais reais - Sr. João e Da. Maria - se encontram no aqui e no agora: o que é o melhor, objetiva e concretamente, para eles? Oferecer-lhes todas as comodidades, poupando-lhes todo trabalho ou deixá-los que se ocupem de suas tarefas para que não caiam numa torpe alienação?A condição humana é tal que - muitas vezes - não dispomos de regras operacionais concretas: há um certo e um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom lance no xadrez, há até critérios objetivos... mas, não operacionais!41

Esta inexistência de operacionalidade para a ação humana, segundo a visão pieperiana, evita o moralismo (a menoridade moral do homem), tão frequentemente defendido em alguns círculos da convivência humana, sobretudo nas religiões – onde o comportamento moral é transferido para mãos de especialista, de quem se espera, passivamente, uma prescrição para as ações morais.

A virtude da prudência, sendo a perfeita capacidade de decisão a partir da análise da realidade, é, portanto, a característica da maioridade moral. Mas não somente isso, conforme JP, a primeira e a mais importante das virtudes cardeais

41 LAUAND, Luiz Jean. A arte de decidir: A virtude da prudentia em Tomás de Aquino. Disponível em http://www.hottopos.com/videtur15/jean.htm Acesso em: 13 de julho de 2014.

(a prudentia), não é apenas o indicativo de maioridade moral; é também, e precisamente por isso, o indicativo de liberdade. Uma liberdade que, por causa da virtude da prudência, não cede à tentação da casuística,42 - parente mais próxima do moralismo. Por isso, diz JP, uma teologia moral é tanto mais verdadeira, mais autêntica, e, acima de tudo, tanto mais cheia de vitalidade, quanto mais conscientemente renunciar a esta pretensão. Pois o papel mais importante da prudência é aplicar princípios universais às conclusões particulares das vivências humanas fazendo retamente aquilo que agora deve ser feito.43 Porém, como as realidades que circundam o concreto agir humano são duma variedade quase infinita, quase infinitae diversitatis, jamais poderiam haver critérios operacionais que pudessem abarca-las.44

42 Pieper chama de casuística, além da clássica definição como “ordenação dos atos morais”, o humaníssimo desejo de certeza, de globalização, de fixidez, de limitação exata, tentação de ordenar e de dominar aquela indeterminação nos modos de realizar o bem, através de paradigmas racionais e abstratos de mais ou menos longo alcance, como descreve em seu livro Virtudes fundamentais.

43 Josef Pieper, Virtudes Fundamentais, p. 41. 44 Ibid., p. 44.

Capítulo IV

4 O ÜBER DIE LIEBE DE JOSEF PIEPER

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