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Amizade

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6 O AMOR EM C S LEWIS

6.5 Amizade

Do grego φιλία e do latim amicitia, o termo é traduzido por CSL como

friendship (Amizade). Do mesmo modo como aconteceu com os outros amores, o

amor Amizade também sofreu muitas distorções e grande esvaziamento na atualidade. Como veremos na análise lewisiana, a Amizade apresenta um paradoxo: Um lado louvável e outro perigoso.

Mesmo que não seja mais um dos pratos principais do banquete da vida, para os antigos, a Amizade parecia o mais feliz e o mais plenamente humano dos amores – coroa da vida e escola da virtude.138 O fato de poucas pessoas valorizarem a Amizade hoje, segundo CSL, tem a ver com a pobreza da experiência que têm dela. Há, inclusive, boa chance de pessoas passarem a vida toda sem ter uma experiência de Amizade. Por isso, ela é o amor menos natural e menos necessário. Sem Eros, nenhum de nós teria sido gerado, e sem Afeição nenhum de nós teria sido criado – mas podemos viver e nos reproduzir sem a Amizade.139 136 Ibid., p. 78. 137 Ibid., p. 79. 138 Ibid., p. 82. 139 Ibid., p. 83.

Porém, a explicação porque ela teve tanta importância na idade antiga e medieval e tão pouca em nossa época é porque vivemos hoje numa perspectiva que valoriza o coletivo acima do individual que também despreza necessariamente a Amizade; ela é uma relação entre homens em seu mais alto grau de individualidade.140 E quem não concebe a Amizade como um amor real, mas apenas um disfarce ou variante de Eros, revela o fato de que nunca teve um amigo. E, ademais, há uma diferença substancial entre a Amizade e Eros.

[...] embora seja possível ter amor erótico e amizade por uma pessoa, nada, sob certos aspectos, se parece menos com a Amizade que um caso de amor. Os amantes vivem conversando entre si sobre seu amor; os amigos nunca falam sobre sua Amizade. Em geral os amantes se põem frente a frente, absortos um ao outro; os amigos, lado a lado, absortos em algum interesse comum. E, acima de tudo, Eros (enquanto dura) se dá necessariamente entre duas pessoas apenas. Mas o número dois, além de não ser necessário para a Amizade, não é sequer o melhor número.141

Não são os gestos de amor Amizade, mas a frequente ausência deles que, em nossos dias, precisa de explicação. E uma explicação para que a Amizade em outros tempos fosse mais cultivada do que na nossa, está no fato de que os nossos antepassados tinham a necessidade de planejar sua sobrevivência nas caçadas. Reunir homens, longe das mulheres e das crianças era a forma de tratar de assuntos da sobrevivência e da segurança do grupo. Muitas vezes a Amizade surgia do mero companheirismo quando dois ou mais companheiros se afastavam do grupo. “A expressão típica do início da Amizade seria algo como: ‘o que? Você também? Pensei que eu fosse o único’”.142 Enquanto Eros quer privacidade a Amizade quer companhia e deseja repartir visões de mundo semelhantes. Quando amigos se perguntam “você me ama” – significa o mesmo que “você vê a mesma coisa que eu?” ou, pelo menos, “você se interessa pela mesma verdade que eu?”

140 Ibid., p. 85.

141 Ibid., p. 86. 142 Ibid., p. 93.

Quando a resposta sincera para a pergunta “você vê a mesma verdade?” é “eu não vejo nada e não me interesso pela verdade, eu só quero um amigo”, não nasce Amizade nenhuma – embora possa nascer uma Afeição. Nesses casos, não há nenhum tema sobre o qual a amizade possa ser, e toda a Amizade precisa ser sobre alguma coisa, mesmo que apenas um interesse por dominó ou ratinhos brancos. Quem não tem nada não pode partilhar nada; quem não está indo para lugar nenhum não pode ter companheiros de viagem.143

A marca do amor Amizade não está no fato de se prestar um favor na hora da necessidade (pois naturalmente se presta), mas que, uma vez prestado o favor, ele não faça a menor diferença. O tempo passado com o amigo não é aquele que se passa perguntando ou tratando de negócios, mas em que se está ombro a ombro, compartilhando visões de mundo, olhando, lado a lado, na mesma direção.

Pois é claro que não queremos saber dos negócios de nossos amigos. A Amizade, ao contrário de Eros, não é inquisitiva. Você se torna amigo de alguém sem saber ou se importar se ele é casado ou solteiro ou como ganha a vida. O que essas coisas “coisas insignificantes e triviais” têm a ver com a pergunta real, que é se você vê ou não a mesma verdade? Num círculo de verdadeiros amigos cada homem é simplesmente o que ele é: não representa nada além dele mesmo. Ninguém dá a mínima para a família, a profissão, a classe social, a renda, a raça ou o passado do outro. É claro que, com o tempo, você acaba sabendo da maior parte dessas coisas. Mas acidentalmente. Elas vão surgindo aos poucos, a título de exemplos ou analogias, ou como pretextos para anedotas – nunca por si mesmas. Essa é a majestade da Amizade. Nós nos reunimos como príncipes de países independentes, no estrangeiro, em território neutro, livres de nossos contextos. Esse amor (em essência) ignora não somente nosso corpo físico como também todo aquele corpo formado por nossa família, nosso trabalho, nosso passado e nossos vínculos... Eros pede corpos nus; a Amizade, personalidades nuas.144

É por isso que o amor Amizade é, para CSL o exemplo perfeito de Amor Apreciativo. A Amizade não enxerga necessidades. Enquanto no amor Eros existe o olhar nos olhos, os amigos olham ao longe, na mesma direção; lutam lado a lado, discutem juntos, oram juntos, leem juntos. “É o melhor presente que a vida –

143 Ibid., p. 94. 144 Ibid., p. 99.

a vida natural – tem para nos dar.” 145 Não surpreende, diz CSL, que os antigos tenham visto a Amizade como algo que quase nos eleva acima da humanidade. Esse amor, livre do instinto, livre de todas as obrigações exceto as que o amor assume livremente, quase totalmente livre de ciúme e livre incondicionalmente da necessidade de ser necessário, e eminentemente espiritual. Mas não devemos nos apressar pensando então que o amor Amizade é aquele máximo de Amor que pode até dispensar a Caridade. É curioso que só muito raramente as Escrituras representam o amor entre Deus e os homens como Amizade. “Ela não é inteiramente negligenciada, mas é bem mais frequente, quando se busca um símbolo para o maior de todos os amores. Quando Deus é representado como nosso Pai, a imagem é a da Afeição; quando Cristo é representado como Esposo da Igreja, a imagem é a de Eros.”146 Muito raramente é representado como “amigo”. E não é por acaso. A ambiguidade dos amores, reafirma CSL, também aparece no amor Amizade.

A amizade, como eu disse, nasce no momento em que um homem diz para o outro: “O que? Você também? Pensei que ninguém além de mim...” Mas o gosto, a visão ou o ponto de vista em comum que se descobre nessas situações não é necessariamente bom. Desse momento pode nascer uma arte, uma filosofia ou um progresso da religião ou da moral – mas por que não também tortura, canibalismo ou sacrifício humano? A maioria de nós certamente experimentou a natureza ambígua desses momentos na juventude. Foi maravilhoso quando conhecemos alguém que se interessava por nosso poeta favorito. O que mal entendíamos até aquele momento adquiriu uma forma clara. Aquilo de que nos envergonhávamos passou a ser admitido livremente. Mas não foi menos delicioso quando conhecemos alguém que partilhava conosco de um vício secreto. Esse vício também se tornou mais palpável e explícito; deixamos de nos envergonhar dele também. Mas hoje, qualquer que seja a idade, conhecemos o perigoso encanto de um ódio ou ressentimento em comum... Os pequenos bolsões dos primeiros cristãos sobreviveram porque se preocupavam exclusivamente com o amor dos “irmãos” e não davam ouvidos às opiniões da sociedade pagã em torno. Mas os círculos de criminosos, loucos ou pervertidos sobrevivem exatamente do mesmo modo: fazendo-se de surdos à opinião do mundo exterior e descontando-a como tagarelice de estranhos que “não entendem nada”, de gente “convencional”, dos “burgueses”,

145 Ibid., p. 102.

do “establishment”, de pessoas mesquinhas, puritanas e hipócritas. 147

A Amizade, como também os outros amores, é ambivalente. Um grupo de amigos ainda não diz nada sobre que valores, pensamentos, intenções, interesses regem o caminho que trilham. “Torna melhores os homens bons e piores os homens maus.”148 Mas o perigo não está especificamente nisso, mas na surdez total dos amigos. De não permitirem que nenhuma voz externa se aproxime. O perigo não está em fazer uma “panelinha”, mas em colocar uma tampa e impedir a entrada de mais alguém; de se enxergar como um círculo perfeito sem necessidade de qualquer abertura. É a doença congênita dos amores naturais. A surdez parcial, que é nobre e necessária, cede lugar para a completa e absoluta surdez que é arrogante e desumana. É a transição da humildade individual para o orgulho corporativo, onde os outros são estranhos e vistos com olhos de superioridade. É claro que esse senso de superioridade pode ser tolerante, cortês e sutil, mas pode também apresentar-se titânico, militante e amargo. O risco desse orgulho é quase inseparável do amor entre amigos. Pois a Amizade necessariamente exclui, porquê é seletiva. E, precisamente por ser o mais espiritual dos amores, o risco que o assedia é também espiritual. E assim descobrimos por que o amor Amizade deve ser preservado da tentação de ser o amor supremo. “Na verdade ele é espiritual demais para ser um bom símbolo das coisas do Espírito.” Ele convida para que nos elevemos acima do resto da humanidade por termos o poder de escolha. Os outros amores não convidam a esse tipo de ilusão. Embora a Afeição busque afinidade e Eros, em muitos contextos, pense que o amado é seu destino, a Amizade, por ser livre de tudo isso, imagina que somos nós que escolhemos os nossos pares, ou que nossos amigos surgem por acaso. Pura ilusão. Há um Mestre de Cerimônias invisível em atividade. Nesse banquete é ele quem determina o cardápio e escolhe os convidados.149

147 Ibid., p. 112.

148 Ibid., p. 114. 149 Ibid., p. 126.

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