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Racionalidade e imaginação

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7 CONVERGÊNCIAS E APROXIMAÇÕES ENTRE C S LEWIS E J PIEPER

7.4 Racionalidade e imaginação

O segredo do vigor e da perene atualidade do pensamento de CSL e JP para a educação, está no fato de ambos buscarem unir conceitos fundantes da filosofia, aplicando-os à vida cotidiana. Bem fundamentados nos pensadores clássicos, sobretudo em Platão, Aristóteles, Agostinho e Tomás, ambos nos recordam que a missão do sábio é buscar a verdade e, uma vez encontrada, abraçá-la, denunciar o erro e extirpá-lo. Porém, não é tarefa fácil passar de meras palavras às realidades designadas.

Tal missão torna-se ainda mais complexa quando se defende, ora a liberdade das certezas da razão, ora a liberdade das certezas da fé (como um “saber” da salvação). É o que viveram nossos autores há algumas décadas atrás, mas que, de algum modo, ainda vivemos hoje e, talvez, de forma muito mais intensa. Especialmente se observarmos que os perigos da modernidade eram a soberba da razão em detrimento da fé e que os perigos daquilo que se convencionou chamar de “pós-modernidade” sejam uma cultura fundamentada na impressão, nos sentimentos e nas emoções.

CSL e JP são um forte antídoto para este mal inoculado no coração da atualidade. Nos ajudam a encontrar o ponto justo que faz a acolhida cordial e inteligente da razão e da dimensão que a transcende, seja pelos sentidos ou pela imaginação. Denunciam tanto os abusos da razão que desvalorizam os aspectos afetivos, pessoais e cotidianos da vida em que tudo é reduzido ao cálculo, ao número e ao conceito, como também alertam para os perigos presentes na exarcerbação dos aspectos emocionais, relativos e até irracionais da vida, onde vigoram o imediato, a manipulação da informação e o interesse individual.

A aguda percepção de CSL e JP em suas magníficas obras é um verdadeiro resgate do saber. Resgate da capacidade da captação do real que não

tem apenas um componente afetivo, mas também uma importante dimensão de sabedoria que começa com a capacidade de admirar, que passa pelo imaginar, entender e compreender, e, por fim, chegando ao amar. A dimensão da sabedoria tem memória, integra pela percepção do todo e cria esperança; contempla o belo, entende, admira, ama. Esta sabedoria, resgatada pelos nossos autores, recria as certezas mais importantes, em forma de sabedoria, da vida, do mundo e de Deus. Nenhum educador deveria ser capaz de privar seu aluno da dimensão desta sabedoria.

O que, de modo geral, ao homem contemporâneo pode parecer estranho é que nossos autores, especialmente CSL, colocam lado a lado a racionalidade e a imaginação. Acontece que a racionalidade se alimenta do imaginário e tem a função de permitir extrapolar o mundo material objetivo. Como sempre defendem os nossos autores, as necessidades mais profundas do ser humano não podem ser traduzidas em linguagem “científica”. O cerne da realidade que a intuição antige, só pode ser anunciado por metáforas ou por outra figura de linguagem. Daí a utilidade e a importância da imaginação para o conhecimento da verdade. Uma das fontes principais em que a imaginação se manifesta é a literatura que os nossos autores conheciam muito bem.

Em um importante escrito sobre formas de escrever para crianças, cujo título é justamente “Três Maneiras de escrever para crianças”, CSL expõe de maneira interessantíssima o valor desse tipo fantástico de história infantil.

O conto de fadas é acusado de dar às crianças uma falsa impressão do mundo em que vivem. Na minha opinião, porém, nenhum outro tipo de literatura que as crianças poderiam ler lhes daria uma impressão tão verdadeira. As histórias infantis que se pretendem “realistas” tendem muito mais a enganar as crianças. Quanto a mim, nunca achei que o mundo real pudesse ser igual aos contos de fadas. Acho que eu esperava que escola fosse igual às histórias da escola. As fantasias não me enganavam, as histórias de escola, sim. Todas as histórias em que as crianças passam por aventuras e sucessos que são possíveis, no sentido de que não rompem as leis da natureza, mas quase infinitamente improváveis, tendem muito mais que os contos de fadas a criar falsas expectativas. [...] Será que alguém supõe que uma criança, de fato e prosaicamente, anseia pelos perigos e desconfortos de um conto de fadas? – que seu desejo é de fato que houvesse

dragões na Inglaterra contemporânea? De jeito nenhum. Seria muito mais verdadeiro dizer que o país das fadas desperta nela um anseio por algo que ela não sabe o que é. Comove-a e perturba-a (enriquecendo a sua vida) com a vaga sensação de algo que está além do seu alcance, e, longe de tornar insípido ou vazio o mundo exterior, acrescenta-lhe uma nova dimensão de profundidade. A criança não despreza as florestas de verdade por ter lido sobre florestas encantadas: a leitura torna todas as florestas de verdade um pouco mais encantadas. [...] A criança que lê conto de fadas simplesmente deseja e sente-se feliz no próprio ato de desejar. Sua mente não esteve concentrada nela mesma, como acontece frequentemente nas histórias mais realistas. (LEWIS, 2009, p. 746 e 747).

O aspecto relevante aqui é precisamente o papel educacional dos contos de fadas e de todas as histórias fantásticas que rompem as leis da natureza e aguçam a imaginação. CSL defende que esse tipo de história não é perigosa e não causa nenhum mal. Pois,

A fantasia perigosa é sempre superficialmente realista. A verdadeira vítima do devaneio [no sentido clínico do termo] em que todos os desejos se realizam não se inspiram na Odisséia, em A tempestade ou em A serpente Uroboros. Prefere histórias que falam de milionários, beldades irresistíveis, hotéis de luxo, praias tropicais e cenas picantes – coisas que poderiam realmente acontecer, que deveriam acontecer, que teriam acontecido se o leitor tivesse tido a justa oportunidade. [...] Ora, nos contos de fadas, ao lado das figuras terríveis, encontramos os seres radiantes, os eternos protetores e consoladores; e as figuras terríveis não são meramente terríveis, mas também sublimes. Seria ótimo se nenhum menino, deitado em sua cama, ao ouvir ou imaginar que ouviu um ruído, jamais sentisse medo. Mas, se o medo é inevitável, é melhor que a criança pense em gigantes e dragões do que em meros ladrões. E acho que São Jorge, ou qualquer outro paladino armado, é um consolo bem maior que a ideia da polícia. (LEWIS, 2009, p. 749).

O alcance antropológico-filosófico e educacional desta percepção lewisiana é incalculável. Trata-se, sobretudo de um convite para ver além do limitado horizonte de uma sociedade doente, na qual vigora a tirania do utilitarismo, a ditadura da “seriedade” e o triunfo da amargura. A imaginação, portanto, aparece como um remédio contra a desesperança que anuncia: há algo além da cortina dos nossos sentidos que nos plenifica e nos convida a admirar, a desejar uma resposta, a amar. Também JP registra essa percepção ao dizer que o amor está

mais junto à coisa e tem mais alcance que o conhecimento. O amor dirige-se à realidade (Wirklichsein) concreta do ser. Não é apenas constatação cognitiva.

Portanto, a novidade (novum) apresentada aqui é que o campo da racionalidade não tem a concretude do amor. Ao contrário do que normalmente se pensa, a concretude está mais para a imaginação do que para a racionalidade. Não é por acaso que essa concretude apareça de forma sintética numa expressão corriqueira, mas que arremete certeiramente sobre o tema central desta pesquisa: “O amor é mais forte que a própria morte”. É a primazia do amor em relação à racionalidade. E é assim, pois, de fato, antes de ser um pensante (ens cogitans) e um ser de vontade (ens volens), o ser humano é um “amante” (ens amans).

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