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Caridade (o amor dos amores)

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6 O AMOR EM C S LEWIS

6.7 Caridade (o amor dos amores)

Chegamos ao maior e mais esplendoroso dos amores: O amor-Caridade (do grego ἀγάπη - agápē ou Ágape; do latim caritas). De certa forma já tratou-se dele no início deste capítulo. Porém, agora o abordaremos confrontando-o com os amores naturais – a Afeição, a Amizade e Eros.

CSL constata que até os amores mais desgovernados e desmedidos são menos contrários à vontade de Deus do que a ausência de amor autoprovocada e autoprotetora. Essa constatação é de riqueza sem igual, pois lança luz sobre aspectos, à primeira vista, insuspeitos. A nossa proximidade de Deus não acontece na medida em que evitamos os sofrimentos intrínsecos aos amores naturais, mas, ao contrário, quando os aceitamos e os oferecemos a ele, renunciando a toda a carapaça defensiva. Pois as sutilezas podem ser grandes,

158 Ibid., p. 158. 159 Ibid., p. 160.

especialmente quando alguém fica calculando o tempo todo se o seu amor pelo amado não está se tornando maior do que o seu amor por Deus. CSL admite que é verdade que os amores naturais podem, de fato, ser desmedidos. Porém, “é a pequenez do nosso amor por Deus, e não a grandeza de nosso amor pelo ser humano, a causa do excesso”.160 Pois, nenhuma pessoa é tola o suficiente para admitir – pelo menos não o tempo todo – que a natureza, o seu animal, o seu amigo ou o seu amante são perfeitos e substituem permanentemente a tudo aquilo pelo qual anseia e busca na vida. Eles sempre manterão uma restrição oculta em relação ao Amor Absoluto. Um único desacordo, por menor que seja, será suficiente para constatar que o melhor amor (natural), de qualquer tipo, não é cego. “Se na atitude do amado há implícito um “tudo por amor” – “tudo” mesmo –, seu amor não vale a pena. Não está relacionado ao Amor Absoluto da maneira certa”.161 Nossos amores sempre serão meras analogias (mesmo que sombrios) do Amor Absoluto, do inventor de todos os amores.

E então CSL chega, em sua análise sobre a natureza do amor, ao ponto mais importante, que é o mesmo do qual partiu: “Deus é amor”. E este é, para ele, o verdadeiro ponto de partida para explicar o amor-Caridade, mas também é a própria explicação (o ponto de chegada) dos amores naturais. Somente a partir da visão do Amor-Caridade, que é o amor Absoluto, é realmente possível compreender os amores naturais.

Não devemos partir do misticismo, do amor da criatura por Deus ou das maravilhosas antevisões da fruição por Deus concedidas a alguns em sua vida na terra. Nós partimos do verdadeiro ponto de partida. Esse amor primordial é um Amor-Doação. Em Deus não há necessidade a ser preenchida, mas somente abundância querendo doar-se. A doutrina segundo a qual Deus não tinha a necessidade de criar não é uma seca especulação escolástica. É essencial. Sem ela, dificilmente fugiríamos a uma concepção de Deus como “administrador” – um ser cuja função ou natureza é “gerir” o universo, que está para este como o diretor para a escola ou o hoteleiro para o hotel. Mas ser o Soberano do universo não é grande coisa para Deus. Em si mesmo, em seu ‘mundo da Trindade’, ele é Soberano de um reino muito superior. [...] Deus,

160 Ibid., p. 169.

como Criador da natureza, implanta em nós Amores-Doações e Amores-Necessidades.162

O Amor-Doação e o Amor-Necessidade, segundo CSL, têm sua própria subdivisão. O Amor-Doação natural é aquele que se dirige a objetos que o amante considera intrinsecamente amáveis de algum modo; o Amor-Doação de Deus permite ao homem amar aquilo que não é naturalmente amável: os leprosos, os inimigos, os idiotas, os ressentidos, os arrogantes, os cínicos. E, por fim, num sublime paradoxo, Deus permite ao homem ter um Amor-Doação voltado para o próprio Criador. Num certo sentido, é claro, ninguém consegue dar a Deus nada que já não seja dele. Mas podemos recusar a Deus e guardar para nós mesmos a nossa vontade e o nosso coração, embora sejam dele por direito e não existiriam por um só momento se deixassem de ser dele. Mas, por Doação, ele os tornou nossos para que possamos livremente devolvê-los a ele.

Mas ele concede ainda outros dois dons: Um Amor-Necessidade sobrenatural por ele mesmo e um Amor-Necessidade de uns pelos outros. Aquele é pura graça. É um dado, um presente. Mas este também o é quando olhado mais de perto.

O Amor-Necessidade sobrenatural por Deus é um presente imerecido que admitimos, mas não percebemos. Preferimos continuar pensando que o merecemos, embora só o façamos veladamente, nunca de maneira explícita. Geralmente o fazemos através da humildade, ou do “magnífico” arrependimento. Porém, não passam de subterfúgios que usamos para apresentar-nos diante Dele como dignos de sua admiração. É uma ilusão à qual a natureza de criatura se apega como último recurso. Nos apegamos a isso com a (falsa) pretensão de que temos algo realmente nosso ou de que somos capazes de conservar. E isso pode ser precisamente o que nos impede o tempo todo de ser felizes. A liberdade, o poder e o valor verdadeiramente humanos estão no fato de sabermos o tempo todo que não são nossos. “Que somos apenas espelhos cujo brilho – se é que o temos – deriva inteiramente do Sol que resplandece sobre nós.”163

162 Ibid., p. 176.

Algo semelhante acontece com o Amor-Necessidade de uns pelos outros. Todos nós precisamos de vez em quando da Caridade dos outros, que, sendo o Amor Absoluto neles, ama o inamável. Porém, nós não queremos ser amados de graça. Queremos ser amados pela nossa inteligência, beleza, generosidade, bondade, utilidade. “Isso é tão amplamente reconhecido que as pessoas maldosas fingem nos amar com Caridade exatamente por saber que isso nos fere.”164 Mas é fato – e CSL o defende como verdade universal – que existe em cada um de nós algo que não pode ser amado naturalmente. E não é defeito dos outros não amá- lo sinceramente, pois só o que é amável pode ser amado naturalmente. Porém, todos nós já experimentamos na vida algumas vezes ou, muito provavelmente, a maior parte do tempo, que fomos amados por Caridade e não por merecimento; que fomos amados porque – e somente porque – o Amor Absoluto esteve presente nos que nos amaram.

Assim, não é a Caridade que se reduz ao mero amor natural, mas é o amor natural que é assumido pelo Amor Absoluto e transformado em seu afinado e obediente instrumento.165

Porém, os aspectos de nossa existência de que mais nos queixamos nos são muito úteis nessa obra necessária. O convite para transformar nossos amores naturais em Caridade nunca é omitido. É provido pelos atritos e frustrações com que deparamos em todos eles, o que é prova inequívoca de que o amor (natural) nunca será “suficiente” – inequívoca, isto é, se não estivermos cegos pelo egoísmo. Quando estamos, fazemos uso deles de maneira absurda. “Se eu tivesse tido mais sorte com meus filhos (o menino está ficando cada dia mais parecido com o pai), eu conseguiria amá-los perfeitamente”. Mas toda criança é irritante, às vezes; a maioria delas não raro é detestável. “Se meu marido fosse mais atencioso, menos preguiçoso, menos extravagante...” “Se minha mulher fosse menos emotiva, mais racional, e fosse menos extravagante...” “Se meu pai não fosse tão infernalmente chato e pão-duro...” Mas em todas as pessoas, o que evidentemente inclui nós mesmos, existe algo que exige paciência, tolerância e perdão. A necessidade de praticar essas virtudes é o que inicialmente nos leva ou nos obriga a tentar transformar –, ou

164 Ibid., p. 183.

mais estritamente, a deixar que Deus transforme o nosso amor em Caridade.166

Mas, o que mais poderíamos desejar, além de que os nossos amores sejam transformados em Caridade? Sem dúvida, o que mais poderíamos desejar, diz CSL, é que Deus conceda a graça de despertar em nós um Amor Apreciativo sobrenatural por ele. “De todas as dádivas, é a que mais se deve desejar”.167 Pois, quando estivermos face a face com Ele, saberemos mais claramente aquilo que sempre soubemos: que ele participou de todas as nossas experiências de amor inocente na terra – ele as criou, manteve e moveu interiormente cada instante, pois o que havia de amor verdadeiro nelas sempre foi, mesmo na terra, bem mais dele que nosso, e nosso apenas porque dele.168

Pode ser um sonho, mas “saber que se está sonhando é já não estar perfeitamente adormecido.”169 166 Ibid., p. 187. 167 Ibid., p. 194. 168 Ibid., p. 193. 169 Ibid., p. 195.

Capítulo VII

7 CONVERGÊNCIAS E APROXIMAÇÕES ENTRE C. S. LEWIS E J. PIEPER

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