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Amor, Corpo e Vida (Liebe, Leib und Leben)

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7 CONVERGÊNCIAS E APROXIMAÇÕES ENTRE C S LEWIS E J PIEPER

7.3 Amor, Corpo e Vida (Liebe, Leib und Leben)

Não é por acaso que na língua alemã as palavras Leib (corpo), Leben (vida) e Liebe (amor) pertencem à mesma raiz “Lb”. É mais um caso curioso da linguagem que – sendo, ao mesmo tempo, distinguente e confundente – traz significativas reflexões confrontadas com o pensamento de nossos autores.

Numa sociedade altamente sexualizada a ampla força do amor para todo o corpo, para toda a vida não é mais transparente. Já a expressão “cópula” soa como uma mecânica das partes do corpo. Mas amor é mais do que o encontro de corpos. Com essa força mais do que biológica não se estabelece de nenhum modo a importância de um amor “incorpóreo”. Mas corresponde a uma ampla experiência cultural que o amor com a redução (exclusiva) ao sexo não se firma ou rapidamente se apaga. Aliás, como já vimos amplamente nesta pesquisa, os amores naturais facilmente tornam-se descontrolados e podem perverter e destruir rapidamente o ser humano. Porém, a ampla experiência do amor pode ser, inclusive, uma cura para a obsessão pelo sexo – justamente isso mostra o mergulho nos fortemente eróticos textos da poesia, da filosofia e da mística. O amor experimenta aqui uma ascensão.

As grandes experiências espirituais não fazem distinção entre o amor que tem em mira o homem e o amor que tem em mira Deus. O poeta persa Rumi, do século 13, fala de Deus ou da amante quando ele canta o seguinte verso?

Sem outros eu posso ser, sem ti não dá.

Meu coração carrega tua marca, não existe outro lugar. Por ti a alma se aquece, o coração sorve de ti.

O entendimento grita: sem ti não dá.

E quem Goethe tem em mente no poema Nähe des Geliebten (Perto da Amada)?

Eu penso em ti quando a mim o raio do sol brilha do mar Eu penso em ti quando o cintilar da lua se desenha na fonte Eu vejo você quando no longo caminho a poeira se levanta

Na noite profunda, quando na estreita vereda o caminhante se arrepia

O terreno e o espiritual estão aqui ligados, o sensual e o êxtase. Verificamos essa curiosa dupla-essência do amor na interpretação de Platão no

Banquete e no Cântico dos Cânticos. Para JP e CSL a visão clara é: o homem

torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade. Nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o amor pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza.

Nesta visão, nem a censura nem a exaltação do corpo é defendida. Faz parte do amor que ele procure permanentemente seu carácter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade, “apenas esta pessoa” e no sentido de “ser para sempre”. O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Pois a natureza do amor visa a eternidade, visa aperfeiçoamento, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação. É o que CSL descreve ao afirmar que o amor humano busca incansavelmente o amor perfeito. Recebe de Deus o que chama de proximidade por semelhança a Ele, porém, ao longo da vida, busca esta semelhança por abordagem, o que compete exclusivamente a ele (embora pura graça do Criador), enquanto faz a trajetória, em fé e esperança.

E é profundamente significativo que, tanto CSL como JP se posicionem contra a desvalorização do amor próprio. Toda a realidade do amor humano acontece na vida cotidiana pelo simples fato de possuirmos corpos. O amor sempre é “encarnado” porque o ato amoroso do Criador o fez ter natureza corpórea.

Ao posicionar-se firmemente na tese de que “boa é a realidade

propriamente dita”, na qual fundamenta toda a sua antropologia filosófica, JP lança

luz sobre um aspecto importante do amor. Para ele – também para CSL – a felicidade dos amantes não está em caminhar altruisticamente ao ar livre, mas principalmente nos “lucros” e em desfrutar da pessoa amada. O amor é sede (Liebe ist Durst) mesmo que queira agradar o outro; não é simplesmente auto-

esquecimento, mesmo quando está querendo agradar o amado; e mesmo diante do amado o amor sempre aprecia e tem sede de uma resposta. Ou seja, o amor de si mesmo é auto-evidente e natural. É o que disse também uma carta paulina: “ninguém jamais odiou o seu próprio corpo”. Na felicidade do outro está o prazer que é refletido no próprio rosto de quem ama.

É por isso que a forma básica do amor humano é o amor a si mesmo, que, por sua vez, é o fundamento do amor pelo outro, como o diz o próprio Cristo: “Ame o teu próximo como a ti mesmo”. Pois, o homem como ser absolutamente contingente, não necessário, tem muitas necessidades, sendo justamente uma das maiores a de precisar ser amado. Nesse sentido nenhuma emoção é mais carente que o amor, não importa quanto ele dê ou compartilhe. E nenhuma emoção é mais condicional. Repudiar o amor por ser carente ou condicional é o mesmo que repudiar o próprio amor. Nossos amores sempre são resposta a um estímulo: o desejo por um “bem para mim”. Incontestavelmente é a necessidade que nos caracteriza totalmente. E mesmo o amor entre homem e mulher não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano.

O amor humano é apenas humano, e somente na medida em que é co- participante do amor criador de Deus. Por isso, dar ao amor humano uma desmedida dimensão divina é torná-lo diabólico. A falsa divinização do amor, priva-o da sua dignidade e o desumaniza. E a privação da sua humanidade retira dele a sua virtude. Porém, o amor humano está em constante busca de unidade. E não lhe serve apenas a consciência da unidade; o desejo é o seu movimento básico e sua força primordial. Um desejo inteiramente condicional e interessado por alguém que acreditamos poder ancorar e afirmar nossa vida – o desejo que alimente a enorme capacidade de doação do amor. Por esta razão o amor humano sempre é falta, necessidade, sede. É precisamente por isso que o outro (meu semelhante, a natureza e toda a criação) está lá, de corpo e alma, para dar- lhe o seu ser. Assim como eu tenho o que tenho para poder ser doado, também não tenho o que me falta, para poder receber como presente. É a ambivalência do amor humano: por ser amado pelo seu “Amante Criador”, pode, ao mesmo tempo, receber e estender seu amor. Por isso, desde o mais simples grunhido de afeto

até o mais grandioso gesto de amor são formas de gratidão, de resposta à graça do doador que impulsionam o ser humano a dizer: propter gloriam tuam – “como você é maravilhoso”!

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