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CAPÍTULO II – O DIREITO FUNDAMENTAL À PRIVACIDADE

2.4. A Publicização e a constitucionalização do direito privado

O crescimento da importância doutrinária dos direitos da personalidade vem sendo observado no mundo pela constante mutação em seus aspectos históricos, econômicos, jurídicos, filosóficos e sociais.

A summa divisio do Direito, criada ainda em Roma e que estabelecia a separação entre o direito público e o direito privado, já não tem guarida na realidade jurídica e social dos dias hodiernos.

As normas de direito público que dizem respeito às relações entre o Estado e seus cidadãos, à organização do Estado e às relações internacionais – para comporem o ordenamento jurídico de uma nação – devem ser adicionadas às normas de direito privado.

Com a Revolução Francesa, arquétipo de mudanças sociais da humanidade, nascia o Estado Liberal burguês, caracterizado pela hegemonia dos interesses individuais sobre o social, abrangendo as codificações legais e as disposições correlatas à propriedade, aos contratos e à família.215 Assim, o direito privado exercia a hegemonia do ordenamento jurídico, marcando rigidamente a separação entre os dois ramos do direito (público e privado). Com o advento da revolução industrial, a pessoa humana passou a ser reconhecida em toda a sua conjuntura social, questionando-se o individualismo, exsurgindo daí o fenômeno da repersonalização ou transpersonalização do direito, segundo Ricardo Arone. Para o autor, tal fenômeno consistia no deslocamento dos valores do patrimônio para a pessoa humana, com a axiologização do Direito. Portanto, com a incidência das normas constitucionais nas relações

inter privato, e a adoção de princípios como os da dignidade, igualdade, boa-fé objetiva,

reciprocidade, vulnerabilidade, não-lesividade, o Direito Civil passa a se preocupar mais com

214 PINHEIRO, José Alexandre Guimarães de Sousa. Privacy e Proteção de dados pessoais: a construção

dogmática do direito à identidade informacional. Vol. 2. Tese (Doutorado em Ciências Jurídico- Políticas) –Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, Lisboa, 2011, p. 552 e 573.

215 ARONE, Ricardo. Propriedade e domínio: reexame sistemático das noções nucleares dos direitos

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a pessoa humana, na coletividade, do que no enfoque patrimonialista, individual, reconhecendo-se uma manifesta mudança de paradigma, passando o homem a ser o núcleo de proteção.216

Com a concretização do Estado Social, após o advento da Segunda Guerra Mundial, consolidou-se a busca da igualdade entre as pessoas (welfare state). Assim, chega-se a uma forçosa confluência entre o direito público e o direito privado, evidenciando-se uma relação mútua, uma vez que o direito público marcha em direção ao direito privado, assim como o direito privado marcha em direção ao direito público. Constata-se uma publicização do direito privado. Esta publicização é melhor compreendida pela presença de direitos difusos e coletivos existentes e por institutos de direito privado, como, por exemplo, a função social do contrato, a função social da empresa, a função social da família, a função social na responsabilidade civil, na determinação imperativa do conteúdo de negócios jurídicos e na obrigação legal de contratar.217

Desta maneira, a repersonalização do direito privado é consequência de uma densa revisão de paradigma do Estado Liberal, abandonando-se a orientação individual e patrimonialista por uma perspectiva de indivíduo inserido em uma coletividade e detentor de dignidade. Portanto, em dado momento, a divisão entre direito público e direito privado era manifesta e caracterizada pela supremacia do interesse privado sobre o público, e, posteriormente, constata-se uma aproximação entre os dois ramos do Direito, restando sobrepujado o privado.

O Código de Napoleão, de doutrina individualista e voluntarista, não trazia dispositivos específicos aos direitos da personalidade. Ele foi o paradigma para o Código Civil brasileiro de 1916, cujo escopo maior era garantir o indivíduo como causa e fim do Direito.

A publicização do direito privado começou a ser notada em face da intervenção do Estado na vida dos cidadãos e nas atividades econômicas, passando-se a exercer influência em áreas do direito até então reservadas à vontade das partes. Essa ingerência, notadamente de cunho legislativo, trouxe fundamentos do direito público sobre criação e interpretação do direito privado, advindo a superação do modelo circunspecto ao indivíduo, característica do Estado Liberal, passando-se a notar um proceder do Estado em áreas até então reservadas ao direito privado.

216 ARONE, Ricardo. Propriedade e domínio: reexame sistemático das noções nucleares dos direitos

reais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 40-41.

217 FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. Revista do Instituto Brasileiro

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A intervenção do Estado na atividade econômica e na vida dos cidadãos influenciou o mundo jurídico como um todo, em face da necessidade do Estado em contemporizar os conflitos sociais emergentes, bem como em razão de várias situações jurídicas advindas da realidade econômica e simplesmente não previstas pelo Código Civil, exsurgindo o fenômeno na publicização do direito privado, consoante refere Gustavo Tepedino. Para o mencionado autor, os novos fatos sociais deram ensejo a soluções objetivistas e não mais subjetivistas. Eles exigiram do legislador, do interprete e da doutrina uma preocupação com o conteúdo e com as finalidades das atividades desenvolvidas pelo sujeito de direito, o que ensejava uma abrangência cada vez menor do Código Civil, contrapondo-se à vocação expansionista da legislação especial. Assim, o Código Civil perdia, definitivamente, o seu papel de destaque do direito privado e os textos constitucionais das grandes Constituições do pós-guerra assumiam papel de relevo por estabelecerem princípios e normas de deveres sociais no desenvolvimento da atividade econômica. Demarcaram, assim, os limites da autonomia privada, da propriedade e do controle de bens, antes reservados exclusivamente ao Código Civil e ao império da vontade, como, por exemplo, a função social da propriedade, os limites da atividade econômica e a organização da família.218

Desta maneira, operou-se o fenômeno da constitucionalização do direito privado, com a validação do direito positivo privado no contexto constitucional, à medida que a temática civilista foi levada ao texto constitucional.

Com os efeitos constitucionais sobre as normas civilistas e com a migração para o âmbito privado de valores constitucionais, pode-se afirmar ter ocorrido a constitucionalização do direito civil, deslocando-se a pessoa humana para o centro do ordenamento jurídico, com o afastamento da visão patrimonialista.219 Com isso, adveio o efeito expansivo dos princípio e valores constitucionais brasileiros para todo o sistema jurídico nacional, inclusive no aspecto hermenêutico, com a interpretação conforme da Constituição. Assim, a publicização e posterior constitucionalização do direito privado possibilitou uma mudança de paradigma no Estado brasileiro, posicionando-se a Constituição como centro do ordenamento jurídico e axiológico, irradiando-se os seus efeitos sobre o ordenamento jurídico nacional, passando-se a entender que o direito privado deve ser interpretado de acordo com a Constituição.

218 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 6-7. 219 FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. Revista do Instituto de Direito

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CAPÍTULO III – O DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À