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CAPÍTULO II – O DIREITO FUNDAMENTAL À PRIVACIDADE

2.2. O contexto de um modelo de direito à privacidade

A tentativa de conceituar o direito à privacidade é tarefa difícil. Uma das definições do direito à privacidade se verifica na habilidade de uma pessoa em controlar a sua exposição. Ou seja, a privacidade é ter controle sobre as informações existentes sobre si e exercer um controle de forma consistente, utilizando seus interesses e valores pessoais. Deste modo, toma-se, pois, a privacidade como o conjunto de informações acerca de um indivíduo, que,

189 PINHEIRO, José Alexandre Guimarães de Sousa. Privacy e Proteção de dados pessoais: a construção

dogmática do direito à identidade informacional. Vol. 1. Tese (Doutorado em Ciências Jurídico- Políticas) - Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, Lisboa, 2011, p. 3, 67-68 e 368.

190 PINHEIRO, José Alexandre Guimarães de Sousa. Privacy e Proteção de dados pessoais: a construção

dogmática do direito à identidade informacional. Vol. 1. Tese (Doutorado em Ciências Jurídico- Políticas) –Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, Lisboa, 2011, p. 389.

191 PINHEIRO, José Alexandre Guimarães de Sousa. Privacy e Proteção de dados pessoais: a construção

dogmática do direito à identidade informacional. Vol. 1. Tese (Doutorado em Ciências Jurídico- Políticas) - Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, Lisboa, 2011, p. 90 e 116.

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por sua vez, pode decidir mantê-las sob o seu controle exclusivamente ou, se quiser, comunicar a outrem, nas condições que desejar”. 192

Como referem Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins, trata-se de uma faculdade que cada pessoa tem de impedir a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar. Além disso, obsta o acesso a informação sobre a privacidade de cada um e impede que sejam divulgadas informações sobre a área da manifestação existencial do ser humano.193

Na acepção de Celso Lafer, tal garantia se traduz no:

(...) direito do indivíduo de estar só e a possibilidade que deve ter toda pessoa de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que a ela só se refere, e que diz respeito ao seu modo de ser no âmbito da vida privada.194

É preciso ter em mente que a expressão privacidade não deve ser confundida com aquilo que deve ser camuflado, escondido, o que é secreto ou aquilo que os outros não podem ver ou saber. Pelo contrário, tal expressão se alinha à ideia de controle de detalhes das vidas das pessoas, estipulando-se quais fatos ou particularidades devem ficar reservados para a sua morada e quais os outros devem ser levados para fora dela.

Mas para a delimitação do âmbito de proteção desse direito, deve-se partir da própria noção de privacidade prevista na Constituição Federal, em associação com o princípio e com o conceito da dignidade da pessoa humana. Desse modo, define-se o espaço da esfera privada de cada um, devidamente ajustado ao parâmetro da vida contemporânea.

Desta maneira, quanto ao conteúdo, o limite entre o público e o privado é aferido pelo campo do que é compartilhado e do que não é compartilhado, havendo aspectos mostrados ao conhecimento alheio, havendo outros que requerem reserva, cabendo ao indivíduo decidir aquilo que será ou não compartilhado com todos, com alguns, ou, em uma esfera mais intima, com nenhuma outra pessoa.

No escólio de Gilmar Ferreira Mendes, o isolamento periódico à vida privada é necessidade de todo indivíduo para manutenção de sua saúde mental. A submissão constante à observação alheia propicia o fomento a críticas e curiosidades. Tal circunstância não propicia a tranquilidade emocional necessária para a autodeterminação e autossuperação do indivíduo. Há consenso de que o direito à privacidade se traduz na pretensão do indivíduo de estar

192 PEREIRA, J. Matos. Direito de informação. Edição do autor, Lisboa: Associação Portuguesa de

Informática, 1980, p. 15.

193 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. V. 2. São Paulo: Saraiva, 1988-1989, p. 63-64.

194 LAFER, Celso apud AGUIAR JR., Ruy Rosado de (Org.). Jornada de direito civil. Brasília: CJF, 2003,

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separado de grupos, mantendo-se livre da observação de outros. Confunde-se, assim, com o direito de desfrutar do anonimato, ocasião em que o indivíduo se vê livre de identificação e de fiscalização. Estudos clássicos de William Prosser apontam quatro meios básicos de invadir a privacidade de um indivíduo: (i) intromissão em seu isolamento; (ii) exposição pública de fatos privados relacionados ao referido; (iii) exposição do indivíduo a uma falsa percepção do público, o que se dá quando este é apresentado de modo inexato ou censurável; (iv) apropriação de nome e imagem do indivíduo para fins comerciais. Entretanto, no Brasil as interferências indevidas por parte do Estado podem ser combatidas com a invocação do princípio da proporcionalidade, bem como do princípio da liberdade em geral. Este último princípio não admite restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias a alguma finalidade de origem constitucional. O princípio da dignidade da pessoa humana também é lembrado por presumir o reconhecimento de autonomia do indivíduo, bem ampliada no quadro de valores constitucionais. Em sentido mais restrito, o direito à privacidade estaria relacionado à pretensão do indivíduo de não ser foco das observações de outrem, de não ter os seus assuntos, informações pessoais e atributos particulares expostos a terceiros ou ao público em geral. Assim, como sucede a qualquer outro direito fundamental, o direito à privacidade encontra limitações na própria circunstância da convivência em comunidade e de outros valores constitucionais.195

Ilustrando esta última hipótese, na Apelação nº 3.059/91, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro concedeu indenização a artista, diante de ofensa à sua intimidade e vida privada. O indivíduo teve sua fotografia publicada em revista de grande circulação, sob legenda que mencionava: “como os artistas se protegem da AIDS”. Em outra manchete, o nome do artista foi citado juntamente com outros, fazendo-se crer que o referido era portador da doença. Noticiava-se ainda irritação de artistas com insinuações falsas de que padeciam da doença. O voto registrou que:

“Nenhum homem médio poderia espancar os seus mais íntimos sentimentos de medo e frustação, de indignação e revolta, de dor e mágoa, diante da divulgação do seu nome associado a uma doença incurável, (...) que tanto desespero tem causado à humanidade. E, mais, nenhum homem médio poderia conter tais sentimentos se, oferecido ao desmentido, munido de atestado médico próprio, visse novamente, com divulgação ampliada pelo poder da televisão, o seu nome manipulado para a mesma associação”. Acrescentou: “Não é lícito aos meios de comunicação de massa tornar pública a doença de quem quer que seja, pois tal informação está na esfera ética da

195 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed.

83 pessoa humana, é assunto que diz respeito à sua intimidade, à sua vida privada, lesando, ademais, o sentimento pessoal da honra e do decoro”.196

Desta maneira, para Gilmar Ferreira Mendes, a divulgação de fatos, a depender das circunstâncias do caso concreto, poderá ser considerada como abusiva ou não. É possível, ainda, descobrir-se um interesse público por certo acontecimento ou determinada pessoa, acobertado por norma constitucional que justifique o afastamento da pretensão de ser deixado só. Assim, dependendo do modo da vida da pessoa, a extensão e a intensidade da proteção à vida privada poderá ser reduzida, mas não se anulando, quando se tratar de celebridade. Os direitos fundamentais podem ser objeto de autolimitação, que não esbarre no núcleo essencial da dignidade da pessoa humana.197

Verifica-se, portanto, que há possibilidade de reduzir-se a extensão e a intensidade de proteção à vida privada, dependendo do modo de viver do indivíduo.

Não há possibilidade de anulação dessa proteção, pois, como cediço, os direitos fundamentais são irrenunciáveis, imprescritíveis, universais, interdependentes, efetivos, complementares e não podem ser retirados da pessoa humana. São oponíveis a todos que se encontram sob a égide da Constituição, sendo dever do Estado e de seus órgãos observá-los e fazê-los respeitar, bem como protegê-los de eventuais abusos que possam sofrer quando implementados nas relações entre particulares.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso X, garante proteção ao direito à privacidade, assegurando indenização pelo dano material ou moral em virtude de sua violação. O constituinte brasileiro, em terminologias separadas, prescreveu a inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (física) do ser humano. Desta maneira, a Constituição brasileira de 1988 tratou separadamente a intimidade de outras manifestações da privacidade (vida privada), honra e imagem das pessoas (art. 5º, inc. X).198

Assim, o direito à intimidade e o direito à vida privada cuidam-se de institutos distintos, havendo dificuldade para distinção de seus conceitos.

196 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação 3.051/91. Disponível em:

<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20ii/apela305991.htm>. Acesso em: 4 dez. 2015.

197 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed.

rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 269.

198 Art. 5º, inc. X – “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

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O primeiro direito apresenta peculiaridades mais restritas que o segundo. Assim, a diferença, em síntese, reside no fato de a intimidade pertencer a um círculo mais restrito do que o direito à vida privada.199

A teoria dos círculos concêntricos da esfera da vida privada ou teoria das esferas da personalidade procura definir em três círculos concêntricos os diversos ambientes de privacidade. Desenvolvida por Heinrich Hubmann e, posteriormente, trabalhada por Heinrich Henkel com algumas distinções, a teoria forneceu o embasamento para a distinção dos institutos pelo constituinte brasileiro. Explica José Alexandre Guimaraes de Sousa Pinheiro que o aspecto principal do direito da personalidade mostra-se na individualidade como bem especial da personalidade. A preservação jurídica da personalidade contra a massificação e a curiosidade implica o reconhecimento de três círculos de proteção. A construção do direito geral de personalidade torna-se uma forma eficaz de criar ferramentas jurídicas de defesa contra ações invasivas ocasionadas por novos avanços tecnológicos.200

Segundo a teoria, que no Brasil é majoritariamente adotada na forma desenvolvida por Henkel, no núcleo estaria a esfera do segredo (Geheimsphäre), que abrange a psique, onde não se pode penetrar, pois é o campo próprio da inviolabilidade que é protegida pelo Direito, impedindo-se a tortura psicológica e física, a “lavagem cerebral” e a confissão forçada.201

Em torno deste núcleo, está a esfera da intimidade (Vertrauensphäre), onde são alocadas informações que, apesar de muito restritas, são compartilhadas pelo indivíduo com reduzido número de pessoas, como os integrantes de seu ambiente familiar e amigos íntimos, além de certos profissionais que, em razão do ofício excedido, acessam essas informações, como psicólogos, e advogados.

E em torno de ambas as esferas, em um círculo de maior amplitude, encontrar-se a esfera privada (Privatsphäre), onde se verificam aspectos de confidencialidade, onde a confiança é o elemento que leva o indivíduo a compartilhar o seu conteúdo com outra pessoa pertencente ao campo da vida privada e familiar, como, por exemplo, situação financeira, vida conjugal, etc. Conforme refere Carlos Alberto Bittar, no campo da privacidade são protegidos entre outros bens, confidências, informes de ordem pessoal (dados pessoais), recordações pessoais, memórias, diários, relações familiares, lembranças de família, sepultura, vida

199 DINIZ, Maria Helena. Teoria geral do direito civil, 1. Vol. 22. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 135. 200 PINHEIRO, José Alexandre Guimarães de Sousa. Privacy e Proteção de dados pessoais: a construção

dogmática do direito à identidade informacional. Vol. 2. Tese (Doutorado em Ciências Jurídico- Políticas) –Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, Lisboa, 2011, p. 540 e 542.

201 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos – A honra, a intimidade e a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2. ed. atual. Porto Alegre: Fabris, 2000, p. 56-57.

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amorosa ou conjugal, atividades negociais, saúde física e mental, reservados pela pessoa para si e para seus familiares, e, portanto, afastados da curiosidade pública.202

Segundo Bruno Henrique Di Fiore203:

A privacidade é o círculo da vida privada em sentido estrito (Privatsphäre), em que repousam as relações interpessoais mais rasas, na qual não há um amplo grau de conhecimento da vida alheia, beirando o coleguismo. O acesso ao público é restrito, mas seu grau de adstrição é o menor dentre as 3 esferas, sendo que o interesse público é motivo plausível para sua violação. É neste círculo que repousa, por exemplo, o sigilo de dados telefônicos (acesso à relação de ligações efetuadas e recebidas), que pode ser quebrado pelo Poder Judiciário ou por CPI. Nesta esfera também se encontram os episódios de natureza pública que envolvam o indivíduo, extensíveis a um círculo indeterminado de pessoas e por isso não protegidos contra a divulgação.

A intimidade é o círculo intermediário (Vertrauensphäre), que congloba informações mais restritas sobre o ser humano, compartilhadas com reduzido número de pessoas de seu ambiente familiar, amigos íntimos e profissionais que têm conhecimento das informações em razão do ofício (a exemplo de psicólogos, padres e advogados). É neste círculo que se encontram protegidos o sigilo domiciliar, profissional e das comunicações telefônicas, que sofrem restrições mais agudas para sua abertura, a exemplo da última cuja quebra só pode ser decretada por decisão judicial fundamentada.

O segredo (Geheimsphäre) é o círculo mais oculto das esferas da privacidade lato sensu, no qual são guardadas as informações mais íntimas do Eu, que muitas vezes não são compartilhadas com outros indivíduos e sobre as quais o interesse público não poderá se imiscuir, a exemplo da opção sexual, filosófica e religiosa.

Sobre todas as três esferas, o indivíduo deseja manter um controle exclusivo e essa tutela se dá pelo que se chama de direito à privacidade.

A doutrina originalmente apresentada sobre a teoria das esferas, tendo a unicidade da personalidade como ponto de partida axiomático, baseia-se em um “eu individual”, que merece maior proteção jurídica do que o indivíduo diluído na esfera social e não se encontra imune a críticas. A principal crítica consiste em ver a teoria como o reflexo ordenado de uma sociedade suficientemente consolidada para permitir uma estruturação esquemática do indivíduo. A distinção entre os espaços íntimo, privado e público propicia a distribuição de bens jurídicos como próprios de cada um deles, com níveis de proteção e incidências valorativas distintas. A limitação da esfera privada depende mais da avaliação, dos casos e das circunstancias que envolvem o caso concreto do que uma intervenção dogmática. A possibilidade de transformação dos bens da esfera íntima em públicos e a necessidade de assegurar proteção eficaz a bens da personalidade objeto de divulgação pública, como

202 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 8. ed., rev., aum. e mod. por Eduardo C. B.

Bittar. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 173-174.

203 DI FIORE, Bruno Henrique. In: Teoria dos círculos concêntricos da vida privada e suas repercussões

na praxe jurídica. Disponível em:

<http://www.flaviotartuce.adv.br/artigosc/201109281258590.Artigo_brunofiore.doc>. Acesso em: 29. out. 2013.

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registros ou contratos, contribuem para colocar em crise não apenas uma conformação da teoria das esferas, mas a própria teoria.204

Conforme ressalta Jose Alexandre Guimaraes de Sousa Pinheiro, a crítica habitual é de que a teoria das esferas se fundamenta numa base relativista, não oferecendo lastro suficiente para assentar os bens jurídicos da personalidade objeto da tutela, entendimento este fortalecido pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, após a Decisão dos Censos, de 1983.205 Assim, verifica-se uma ausência de conteúdo material e a correspondência da teoria com o objeto da proteção que é a personalidade do indivíduo.206

Informa ainda o autor que, apesar de dogmaticamente suplantada, a teoria das esferas encontra acolhida em algumas jurisprudências do Tribunal Constitucional português, pois o núcleo essencial do direito fundamental, consubstanciado na reserva da intimidade da vida privada, previsto no art. 26, nº 1, da Constituição portuguesa, é demasiadamente exposto na sua esfera pessoal íntima. A estes entendimentos sobre a vida privada alinhados em camadas deve responder-se com um conceito de esfera privada, culturalmente adequado à vida cotidiana.207