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A quantificação da doença ou sofrimento nos manuais psiquiátricos: entre o

4. OS TRANSTORNOS SOMATOFORMES NA CLASSIFICAÇÃO

6.2. A quantificação da doença ou sofrimento nos manuais psiquiátricos: entre o

Safatle (2014) destaca que é a noção de quantidade que determinará o normal e o patológico. Não há noção de doença sem a questão da quantidade. Com os resultados obtidos nesta pesquisa, pode-se dizer que os manuais psiquiátricos ou a própria psicanálise não consegue oferecer determinantes favoráveis (ou não) sem estipular um “número” específico para determinar o patológico. O que é determinante na doença é justamente o que é quantificado, por exemplo, na CID e no DSM, quantas vezes aquele comportamento se repetiu, durante quanto tempo os sintomas se manifestaram e qual a sua intensidade, identificada por estados como leve, moderado e grave. Cada organismo é produtor de normatividade. Mas reconhece-se que existe um contínuo processo de desequilíbrio e são estas alterações que colocam em dúvida ou exigem mudança no padrão de normalidade.

Aquilo que ocorreu é reinscrito. E, com isso, novas formas de se pensar o normal e o patológico se produzem, desencadeando novas teorias, novas edições, novas revisões.

O ato de classificar é algo muito característico dos homens. A partir deste ato é possível comparar, reunir, organizar o meio e, assim, apreender e se apropriar da realidade externa. Para pensar é preciso classificar e para classificar é preciso pensar. Tal como já citado em outro trabalho (Catani, 2012), remetendo a Levi Strauss: qualquer classificação é preferível ao caos. Quando há uma organização e uma ordem é mais fácil para o indivíduo se adaptar (Régimbeau, 2013).

É com base no pensamento classificatório para entender o que se passa com o homem que surgiram os manuais psiquiátricos, a CID e o DSM. Apesar das críticas a estes dois modelos, parece que até o momento nenhum outro tipo de instrumento tão eficaz no campo científico foi empregado por diversos profissionais e em áreas distintas para identificar o sofrimento mental.

Segundo Vittorio, Minard e Gonon (2013), para que um tipo de classificação seja considerado confiável, ele deve possibilitar que diversos médicos cheguem a um mesmo diagnóstico. Uma classificação só será considerada válida, se as proposições oferecidas por ela forem capazes de distinguir as doenças do padrão de normalidade. Tendo tais argumentos como base é que estes pesquisadores discutem o uso atual da CID, mas principalmente o uso do DSM. Para eles há que se questionar a sua relevância: a) quando muitos pacientes apresentam uma série de comorbidades e de patologias associadas de acordo com o próprio modelo oferecido; b) quando a diferença entre o normal e o patológico não está bem justificada, localizam-se significativas discrepâncias epidemiológicas para um mesmo transtorno e c) quando uma mesma causa é associada para mais de um transtorno. Ainda que todos estes elementos tenham sido apontados como alvos de dúvidas, reconhece-se que os manuais psiquiátricos são utilizados mundialmente.

Pesquisa realizada por colaboradores da OMS (Reed, Correia, Esparza, Saxena & Maj, 2011) apontou que dos quase 5.000 psiquiatras entrevistados em 44 países diferentes, 83% admitiram utilizar frequentemente a CID e/ou o DSM. Apesar do uso, quase 90% dos entrevistados consideram o DSM um instrumento muito complicado e acompanhado de uma lista interminável de críterios para a determinação de um diagnóstico. Estes colaboradores recomendam uma classificação com não mais do que 100 diagnósticos e que cada um destes tenham definições patológicas mais flexíveis. O que se especula é se a próxima edição da CID, tendo como base esta pesquisa organizada pela própria OMS, não oferecerá surpresa à comunidade científica. E com isto, especula-se igualmente se a próxima revisão, a décima

primeira CID, não irá conter características similares às utilizadas no DSM-II, ou seja, transtornos mais precisos e com definições em cada uma das categorias e não somente uma lista de critérios (Vittorio, Minard & Gonon, 2013).

Cabe destacar aqui a existência de duas dissertações sobre o DSM: a primeira é a de Burkle (2009) e a segunda, de Moreira (2010), que guardam alguma relação com o presente trabalho.

Na primeira dissertação, posteriormente a uma reconstrução histórica do manual e à identificação dos elementos que interferiram na elaboração de cada edição, Burkle (2009) realiza uma reflexão crítica acerca dos diagnósticos, de sua validade e do emprego na prática médica. Segundo a autora, os diagnósticos feitos de acordo com influências culturais, políticas e históricas foram popularizados com a criação de medicamentos e a expansão dos vocabulários na mídia. Em suas palavras, a partir destes elementos, os diagnósticos, os transtornos e o próprio manual passaram a ser utilizados de modo leviano e produziu-se uma “psiquiatrização” da sociedade que passou a ser cada vez mais nomeada e reconhecida por esta ótica. As categorias diagnósticas se multiplicaram nos sistemas classificatórios (o DSM é um exemplo disto), podendo auxiliar o clínico, mas também produzir insegurança acerca do uso que os profissionais fazem do instrumento.

Na segunda dissertação, Moreira (2010) investiga o modo como a APA compreende o sujeito e como faz uso deste entendimento para a prática clínica no manual. O autor visa discutir a noção de sujeito no DSM, valendo-se da CID em raros momentos. Recorre à psicanálise freudiana e lacaniana para a definição de sujeito propondo uma comparação acerca da maneira como ambos os campos do conhecimento trabalham a noção de sujeito. Reconhece a exclusão e a opção dos responsáveis pelo DSM por não mencionar mais fundamentos psicanalíticos. A partir desta verificação, argumenta que, mesmo não havendo a admissão dos autores do DSM, os conceitos postulados por Freud ainda são utilizados até a quarta edição e exemplifica isto com a nomenclatura de transtornos somatoformes, associando-a à histeria.

No trabalho aqui desenvolvido, um dos temas centrais da pesquisa foi o percurso histórico da CID e do DSM para investigar se a classe de transtornos somatoformes teria derivado da histeria. Além disso, buscava-se identificar se existiriam aproximações entre ambos e como isto se manifestaria atualmente na clínica.

Assim sendo, é possível considerar que estas três dissertações evidenciam alguns objetivos similares. No entanto, neste estudo, não se buscou construir um trabalho que criticasse os modos da Psiquiatria ou da Psicanálise estabelecerem um diagnóstico e tratarem

seus pacientes. Buscava-se sim identificar elementos e base para uma reflexão a respeito de como estes dois campos do conhecimento podem ser importantes quando aproximados e detendo-se essencialmente nos transtornos somatoformes e na histeria. Se a Psiquiatria preocupa-se com a caracterização e a descrição do sintoma para identificar a etiologia, a Psicanálise se detém nos motivos que levaram ao seu aparecimento de modo detalhado, investigando o entorno e a história de vida do paciente (Freud, 1917).

Moretto (2001) destaca que o analista não surge para substituir e/ou tratar dos déficits e limitações encontrados no âmbito médico. Tal argumento alude ao que a própria teoria freudiana já apontava desde o início, ou seja, que a Psicanálise não foi criada em nenhum momento para substituir a Psiquiatria, até porque, os métodos de investigação e tratamento de ambas são essenciais à compreensão do indivíduo e uma não contradiz ou se opõe à outra.

Freud (1917) já dizia que o maior problema dos profissionais do campo da saúde mental seria uma preocupação ínfima com o que está sendo dito pelo paciente quando ele conta a respeito de seus sintomas e de seus problemas. Decorrendo daí as sugestões de Lévine & Touboul (2002): “um bom médico deve explorar os recursos do seu próprio corpo, seus sentidos para examinar o paciente, tornando a arte médica uma espécie de "combate" entre o paciente e o médico” (p.12η). Ao que tudo indica, os especialistas, hoje, preocupam-se muito mais em coletar e anotar informações para constar no prontuário e medicar os seus pacientes do que apreender o que está sendo dito por eles. Para Freud (1917), frente a um sujeito com adoecimento de origem tão complexa, anotar os dados, geralmente, é o menos importante.

Berlinck (1997) acrescenta que os profissionais, hoje, se percebem pouco preparados para assistir a estes pacientes e recorrem aos manuais psiquiátricos como forma de aplacar parte de sua angústia e fundamentar as hipóteses do que observam na clínica. Crítica semelhante encontra-se nas formulações de Didi-Huberman (1982/2012) que nomeou um dos capítulos de sua obra L’invention de l’hystérie, como “A autópsia antecipada do sintoma”.

Este tipo de atitude parece comum nos dias de hoje em consultórios médicos e em atendimentos ambulatoriais nos quais, infelizmente, antes mesmo dos profissionais saberem em que consiste o mal estar do paciente, este já recebe uma série de exames e prescrições para medicar suas angústias.

A título de ilustração para que se compreenda um pouco o uso atual que tem sido feito dos manuais, principalmente do DSM, de acordo com alguns autores, destaca-se:

(...) se o DSM permitiu um grande avanço no reconhecimento da psiquiatria como especialidade médica de pleno direito, seu procedimento comportava dialeticamente o gérmen de sua contradição.

Correlativamente, o uso maciço do DSM, como referente central para a prática psiquiátrica contemporânea, acabou por produzir um grave efeito colateral não-imanente ao manual, mas aparentemente incontornável: o empobrecimento radical da clínica psiquiátrica em favor de uma prática centrada no estabelecimento do diagnóstico formalizado pelo DSM (ou por algum outro sistema que obedece a princípios semelhantes, como a Classificação Internacional de Doenças, da OMS). Do diagnóstico, decorre um procedimento técnico, em geral de tipo medicamentoso, com marcado esvaziamento da importância atribuída à relação psiquiatra-paciente, à escuta da palavra singular do sujeito e à dimensão de experiência humana fundamental do sofrimento, da angústia, da loucura e da exclusão, reduzidos, assim, a questões técnicas e a efeitos periféricos de determinações biológicas absolutas (Pereira, 2013, p.40).

É evidente que as pesquisas auxiliam no tratamento e na compreensão dos transtornos mentais, no entanto, na medida em que as investigações aumentam e iniciam-se esforços de quantificar o fenômeno e o mal-estar, os profissionais parecem ficar cada vez menos dispostos a escutarem os pacientes e consequentemente isto produz um empobrecimento da escuta clínica. Tal como já mencionado, para o autor, não se trata de criticar os instrumentos ou o tipo de proposta, mas colocar em pauta uma reflexão acerca do uso que os profissionais do campo da saúde mental fazem com os dispositivos atuais. O que leva a pensar também nas características da formação que se oferece a estes especialistas.