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Da reflexão à crítica e da crítica à reflexão

4. OS TRANSTORNOS SOMATOFORMES NA CLASSIFICAÇÃO

6.4. Da reflexão à crítica e da crítica à reflexão

Na corrente das discussões a respeito das classificações e de suas possibilidades para a compreensão dos fenômenos, há um texto relevante: La fabrique des folies: de la

psychopharmarketing (Borch-Jacobsen, 2013), no qual o autor aborda a história da loucura, a

origem desta concepção e as suas categorizações no campo da psiquiatria e da psicanálise. A proposta é oferecer uma reflexão e uma crítica acerca do que vem se postulando para o tratamento da loucura, principalmente desde o século XVIII aos dias de hoje. O uso do termo loucura é bastante amplo, de modo a contemplar diversas possibilidades tanto no que diz respeito aos quadros clínicos quanto aos funcionamentos psíquicos, tais como histeria, perversão, psicose, neurose obsessiva, depressão, esquizofrenia, anorexia, personalidade múltipla, borderlines, entre outros. O que Borch-Jacobsen (2013) questiona, a princípio, é o tipo de compreensão utilizado para o sofrimento humano, pois este, evidentemente, sustenta- se nos interesses do historiador ou do profissional, bem como nos aspectos culturais, políticos e sociais implicados, para a criação de novas terapêuticas que se modificam ao longo da história. Entretanto, segundo constata, o fato de se mudarem os nomes parece não alterar o modo de acometimento e de sofrimento psíquico localizado no homem. É verdade que há um

avanço significativo na produção de medicamentos ao longo da história e que isto alivia, em certa medida, algumas limitações derivadas do adoecimento psíquico. Este progresso é reconhecido pelo autor que, inclusive, o descreve apoiando-se nas pesquisas bioquímicas e epidemiológicas.

No campo da saúde mental e da medicina os problemas não parecem emergir de modo tão considerável no que tange aos casos em que o quadro orgânico é bastante evidente e pode ser comprovado – por exemplo, a epilepsia, a paralisia geral progressiva, o mal de Alzheimer. No entanto, o mesmo não parece acontecer no que se refere aos quadros que escapam, em certa medida, da comprovação e de uma medição efetiva. Caberia com isto lembrar os questionamentos do autor: criar novas categorias, nestes casos, ajuda a compreender e tratar este tipo de sofrimento que foge à evidência médica? Em que medida isto é produtivo? Como explicar as diversas variações de angústia e de sofrimento psíquico encontradas por historiadores, médicos, antropólogos e sociólogos? Os elementos aqui mencionados não pretendem de modo algum desqualificar os avanços da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise, mas apontar para as dificuldades existentes no que diz respeito ao ser humano e aos seus acometimentos e às tentativas incessantes de tratar tais aspectos. O que procura interrogar é até que ponto criar novos medicamentos, novas pesquisas e novas terapêuticas significa alcançar o cerne da questão ou apenas distanciar-se cada vez mais, silenciar e/ou mesmo ajudar a produzir tais manifestações? (Borch-Jacobsen, 2013).

Colocar lado a lado períodos históricos, velhos diagnósticos e sintomas poderia, como muitos imaginam, nos dar um brilhante senso do surgimento e do crescimento da ciência e dos nossos atuais milagres farmacêuticos e médicos. Certamente, sabemos muito mais hoje sobre a estrutura neurológica e bioquímica que Pinel, o fundador do “alienismo”, ou do que Freud sonhou. Temos drogas muito mais eficientes e hipóteses mais elaboradas. Mas ainda que tenhamos diagnósticos que podem ser comprovadamente mais sofisticados e certamente mais ordenados, os transtornos se proliferam e também aumentam em complexidade (Appignanesi, 2011, p.16).

No quadro da presente pesquisa surgiu também a necessidade de acompanhar as publicações e os debates que vem ocorrendo no campo científico a respeito dos manuais psiquiátricos, para compreender como estes instrumentos vêm sendo acolhidos pelos

profissionais da saúde hoje (Pereira, 2000; Dunker & Kyrillo, 2011; Jerusalinsky & Fendrike, 2011; Manifesto por uma psicopatologia clínica não estatística, 2013).

Não se poderia também ignorar as críticas que têm sido dirigidas aos órgãos preocupados em estabelecer critérios mundiais para os diagnósticos de transtornos mentais. Cabe assinalar que nas análises e nas críticas formuladas a respeito das listas de sintomas necessárias para o estabelecimento de um diagnóstico, de acordo com o DSM-V, não se localizou artigo que direcionasse a crítica à nomenclatura de transtornos somatoformes ou dos sintomas somáticos e transtornos relacionados. Destaca-se o texto escrito por Dunker (2013) em que o autor utiliza como exemplo a supressão da neurose nas edições do DSM para explicar e questionar a noção de sofrimento mental utilizado pela psiquiatria, mas tal como nos outros trabalhos, não há uma crítica específica à categoria dos transtornos somatoformes.

Considerou-se este aspecto digno de nota, pois as novas reformulações e propostas apresentadas pela quinta edição do DSM para os sintomas somáticos e transtornos relacionados – ainda conhecidos por muitos como transtornos somatoformes – parecem ter produzido reformulações mais amplas, possibilitando maior interlocução entre a Psiquiatria, a Psicologia, a Psicanálise e a Medicina Geral, do que as edições anteriores. Isto porque os editores consideram a interferência dos aspectos psicológicos na produção de uma doença ou na piora de um determinado quadro, permitindo, assim, a inclusão de doenças psicossomáticas.

Ressalta-se que pela primeira vez desde a publicação do DSM-III, conforme apontam os responsáveis pela quinta versão, divulgada em 2013, o manual rompe com a configuração estabelecida no sistema multiaxial. A partir deste rompimento, o transtorno de personalidade e o atraso cognitivo deixam de pertencer ao Eixo II, tal como era anteriormente, e passam a ser incorporados ao Eixo I; este seria apenas um exemplo. Segundo os autores, o sistema multiaxial era uma separação didática para apresentar os transtornos mentais. A ideia era que esta classificação deveria servir como incentivo para que os profissionais avaliassem globalmente os pacientes, não se restringindo somente aos aspectos mais evidentes – hoje, para os responsáveis pelo DSM, esta subdivisão parece não ter mais sentido. Mas, com a expectativa de manter uma avaliação ampliada e completa do paciente, o Eixo IV, compreendido por aspectos psicossociais, continua a ter destaque no manual, mas a partir de agora, o DSM-V recomenda que estes aspectos sejam analisados de acordo com a tabela da CID-10 – Fatores que Influenciam o Estado de Saúde e o Contato com os Serviços de Saúde (compreendido pelos códigos Z00-Z99). O Eixo V foi suprimido do manual, pois se entendeu que a Escala de Avaliação Global do Funcionamento não possuía informações ou condições

mínimas para que este aspecto fosse avaliado. De todo modo, os autores incentivam a aplicação de escalas e testes complementares para auxiliar no estabelecimento do diagnóstico (APA, 2013).

O destaque para o DSM-V é digno de nota, visto que se pode constatar no próprio Ambulatório de Transtornos Somatoformes (SOMA) do Instituto de Psiquiatria da USP que algumas das modificações contempladas pelo manual já vinham sendo discutidas. Por exemplo, a piora de um sintoma e a procura incessante por médicos (característica já presente na CID) e a inclusão de assistência aos pacientes com diagnóstico de transtorno factício, que até a edição anterior não deveria fazer parte dos critérios estabelecidos, mas que os profissionais, no SOMA, compreendiam como relevantes e como um tipo de funcionamento psíquico similar aos pacientes de TS. Chamar atenção para os aspectos que foram incluídos na nova versão do DSM é fundamental, pois alude a algumas reflexões do campo da saúde mental que os profissionais do SOMA já exercitavam, mas às vezes um pouco temerosos pela falta de confirmação nos estudos da área. Observar que os responsáveis pelo manual e membros da APA chegaram a conclusões semelhantes e as incorporaram à quinta edição oferece confirmação e respaldo de que o trabalho está sendo conduzido de modo correto. Isto porque, por mais que se pesquise em artigos e investigações nacionais e internacionais, em dados momentos é preciso arriscar, pois muito do que se refere a este diagnóstico e à conduta relativa a ele ainda está sendo construído.

Qual a utilidade de rebatizar (medicalizar) as características básicas da existência humana com um jargão utilitário desprovido de maiores significados teóricos? A gradativa fragmentação e expansão de diagnóstico não construiu um mundo feliz (Ramadam & Wang, 2011, p.39).

Fato ou ficção? Isto é, houve um crescimento real dos transtornos mentais ou “pseudoepidemias” estão sendo criadas pelos próprios psiquiatras? (Ramadam & Wang, 2011, p.39).

No que se refere aos consultores críticos que deveriam auxiliar no desenvolvimento do manual, um aspecto relevante é que conforme as edições são renovadas, a participação direta dos colaboradores diminui. A partir disto, seria possível pensar na hipótese de que estando o manual já consolidado em sua história e já sendo por muitos utilizado, não se tem mais a necessidade de um corpo clínico tão extenso para o julgamento crítico.

Ainda que o manual se julgue ateórico, vale aqui sublinhar tal característica como questionável, crítica esta mencionada por diversos autores quando se coloca em pauta a utilização do manual (Delgado, 2008; Moreira, 2010; Ávila e Terra, 2010; Dunker & Kyrillos, 2011, Kurcgant, 2012). Isto porque, de acordo com o DSM, a ideia é que este modelo não se configure como sendo uma preocupação quanto à etiologia do transtorno, mas sim por critérios de inclusão e exclusão para se confirmar um diagnóstico de doença mental. No entanto, para explicar aos profissionais e leitores as características que compõem um determinado quadro, as escolhas das palavras indicam que alguma concepção teórica foi considerada. Por exemplo, o termo conversão:

(...) oriundo de um sintoma somático que serviria como uma solução simbólica para resolver algum conflito psicológico inconsciente, de modo que o aparecimento desta conversão possibilitaria uma diminuição nos níveis de ansiedade e uma maneira de permitir que o conflito continue fora do campo da consciência (‘ganho primário’) (APA, 2000, p. ζ96 / APA, 2002, p.476).

Outros exemplos poderiam constar aqui a este respeito, tais como a definição de transtorno, saúde mental, doença etc. Ao que parece, esta foi uma solução encontrada pelos responsáveis pela elaboração do manual para excluir determinados termos, inclusive neurose e histeria. Mas ao fazerem isso parecem não conseguir sustentar seu completo ateorismo. Por que acreditar que a tentativa relativa de se isentar completamente de qualquer teoria garantiria a adoção da obra por um maior número de profissionais?

É relevante sublinhar que ainda que tenham ocorrido mudanças substanciais quanto ao diagnóstico de transtornos somatoformes na quinta edição do DSM, algumas reconsiderações também foram feitas na mesma revisão. Relativamente ao transtorno dismórfico corporal, por exemplo, que até então pertencia à classe de TS, ele passa agora a ser identificado por componentes mais ansiosos. Segundo os autores, essa mudança ocorreu devido ao fato de que a procura por médicos e esteticistas é tão intensa e a preocupação com uma determinada parte do corpo é tão obsessiva e gera tanta ansiedade no paciente, que não faria sentido que ela permanecesse vinculada à classe de sintomas somáticos. De certa forma, os organizadores dizem que é quase como se o sujeito se tornasse delirante e, portanto, psicótico. Se este aspecto for considerado desta maneira tal nomenclatura volta a ser classificada como era até o DSM-III (APA, 2013).

A partir desta exposição a respeito das configurações da problemática do sofrimento psíquico para a psicanálise e para a psiquiatria – valendo-se, principalmente, das contribuições encontradas nas últimas décadas a este respeito, serão apresentadas a seguir as definições sobre a histeria – segundo a teoria freudiana – e os transtornos somatoformes, conforme os manuais psiquiátricos.

Julga-se que, com base na fundamentação desenvolvida pelos autores aqui citados e nas reflexões hipotéticas da pesquisadora, seja possível compreender de que modo a histeria e os transtornos somatoformes podem ser considerados similares, tais aproximações encontram- se mais evidentes no capítulo adiante.

O que é evidente, mente. Evidentemente.

7. A HISTERIA E OS TRANSTORNOS SOMATOFORMES: NOMES DIVERSOS