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7. A HISTERIA E OS TRANSTORNOS SOMATOFORMES: NOMES DIVERSOS

7.1. A desconstrução da histeria nos manuais psiquiátricos, artigos e dados

7.1.1. Publicações Científicas

Atualmente tornou-se difícil falar de histeria no âmbito psiquiátrico uma vez que desde o DSM-III eliminou-se tal conceito, mantendo apenas o sintoma de conversão, pois segundo os autores do manual (APA, 1980), esta opção seria mais clara e mais precisa. Aos poucos houve um desaparecimento dos sintomas clássicos que eram observados no tempo de Charcot.

Kaufmann (1996) questiona se ainda haveria neurose, pois mesmo tendo ocorrido um expurgo do termo e de tal denominação, há uma mudança de significação a respeito deste tipo de sofrimento psíquico. É possível falar de sintomas de conversão somática; o que é muito mencionado até mesmo pelos psiquiatras, mas seria o mesmo que pensarmos na histeria?

Com as novas propostas nosológicas a partir do DSM-III, o termo histeria foi fragmentado e definido a partir da origem ou da localização dos sintomas. Os sintomas histéricos que apresentam natureza física, sensitivo-motora, receberam o nome de transtornos somatoformes – esta nomenclatura abrange as conversões e as somatizações. Outros sintomas que se referiam apenas às questões de origem psicológica foram classificados como dissociativos. Apesar do auxílio no diagnóstico e na identificação desta categoria, Gallucci Neto e Marchetti (2008) julgam que este tipo de alteração restringiu a compreensão dos fenômenos histéricos, privilegiando somente os sinais e sintomas de maneira isolada. Isto permite dizer que o paciente histérico ainda existe, mas ele se modificou: “seguindo as mudanças sociais ligadas ao conceito de doença e se adaptou para melhor imitá-la. Não raramente, [a histeria] apresenta-se hoje em dia sob a faceta de um transtorno psiquiátrico” (Gallucci Neto & Marchetti, 2008, p. 340). Deve-se diferenciar a histeria de uma doença física, ainda que os pacientes histéricos ao imitarem doenças físicas ou psicológicas, obtenham as vantagens deste tipo de condição sem estar propriamente nela do ponto de vista biológico. Conseguem, assim, uma saída honrosa (socialmente aceitável) para a impossibilidade de resolução de problemas ou dilemas pessoais (Gallucci Neto & Marchetti, 2008).

Os sintomas histéricos podem ser divididos em três grupos, dependendo do modo de manifestação, a saber: 1) agudos, compostos por ataques, convulsões consideradas mais graves ou amnésias, desmaios e agitação psicomotora ou alteração da consciência; 2)

funcionais, que abrangem paralisias, espasmos musculares e alterações de sensibilidade; 3) viscerais, com sintomas dolorosos, sintomas gastrointestinais, sintomas gênito-urinários,

queixas respiratórias etc (Rocca, 1981; Ávila & Terra, 2010).

O Petit Larousse de la Psychologie destaca que a partir do DSM-IV o termo histeria já não faz mais parte do manual, tendo sido diluído entre os transtornos somatoformes, os transtornos dissociativos e os transtornos de personalidade histriônica. O fato é que apesar das descrições aqui presentes, este tipo de funcionamento e sintoma não deixa de surpreender e criar novas configurações, sendo importante mencionar que tais manifestações não são produzidas ao acaso, possuem relação com a história do sujeito, com o ambiente e o contexto nos quais ele está inserido (Antoine, 2010; Kaufmann, 1996).

A autora Appignanesi (2011, p.151) ao analisar a mesma edição, o DSM-IV, aponta a transformação sofrida pela histeria no interior do manual:

(...) o vade-mécum da atual psiquiatria, não lista mais a histeria. Em lugar disso, leva a fragmentação histórica da doença adiante e lhe dá uma nomenclatura mais adequada às preferências médicas e behavioristas da nossa virada do século: “transtorno da falsa doença” [transtorno factício], “transtorno dissociativo – tipo conversão”, “transtorno psicogênico da dor”. τ manual também lista o “transtorno da personalidade histriônica”, que torna médico um comportamento que muitos considerariam comum, particularmente em adolescentes.

Ao remeter-se novamente ao percurso histórico do DSM como tentativa de compreender as mudanças localizadas no manual, constata-se uma alteração significativa no que diz respeito às prioridades dos autores da APA e que, talvez, este novo posicionamento ajude a assimilar o que teria se passado com a neurose e a histeria. Nas palavras de Szajnbok (2013, p.91 e 94):

(...) Enquanto esteve apoiada nas teorias psicodinâmicas, a psiquiatria foi uma especialidade na qual o diagnóstico desempenhava uma função secundária. A partir da publicação do DSM-III, em 1980, a questão do diagnóstico passa a ser a base da pesquisa e da clínica psiquiátrica.

(...) Assim, é preciso rever o expurgo psicanalítico trazido pelo DSM-III. Num primeiro momento, chama a atenção a exclusão de termos tradicionais

como neurose e histeria. Mas, penso que isso é o menos importante nesse processo. Há duas exclusões concomitantes aí. A primeira é a de tudo o que se aproximava da psicodinâmica, e nesse pacote se inscreve a supressão dos referidos diagnósticos. A segunda, mais sutil, mas mais grave, é a eliminação completa de qualquer referência ao sujeito humano atravessado pela linguagem e, portanto, submetido às leis do inconsciente. Digo mais grave, pois destituir do ser esta dimensão acaba por diluir a psiquiatria na neurologia.

Ao se pesquisar a histeria ao longo da história no campo da psiquiatria observa-se algo notório: este diagnóstico tão frequente, principalmente entre as mulheres, até o início do século XX, desaparece do campo científico depois dessa época, sem grandes explicações. Continua-se fazendo diagnósticos deste tipo, mas numa proporção muito menor e as publicações deixam de investigar o sofrimento, o que pode ser notado de modo ainda mais evidente nos manuais psiquiátricos (Micale, 2000; Stone et al, 2008;. Merskey, 2004; Ávila, 2002; 2006; Mai, 2004; Coelho & Ávila, 2007; Ávila & Terra, 2012).

Segundo Stone et al. (2008), com as pesquisas no campo da neurologia o quadro dos pacientes que sofriam de histeria foi perdendo espaço até mesmo nos estudos psiquiátricos, tornando-se uma patologia que não pertencia mais nem à neurologia e nem à psiquiatria. Diante deste cenário, notava-se um desinteresse cada vez maior dos pesquisadores em investigar o que ocorria com este público e, durante muito tempo, os pacientes permaneceram quase sem assistência. Atualmente, eles que antes ficaram sem cuidados parecem ser reconhecidos sob os diagnósticos de fibromialgia, distúrbios de personalidade borderline, síndrome do intestino irritável, síndrome da fadiga crônica, sensibilidade química múltipla etc. É provável que tais nomenclaturas, por vezes confusas, tenham herdado a exclusão da histeria das classificações diagnósticas médicas (Trillat, 1991; Micale , 2000; Ávila , 2006).