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Como nomear a doença ou o sofrimento psíquico do indivíduo?

4. OS TRANSTORNOS SOMATOFORMES NA CLASSIFICAÇÃO

6.1. Como nomear a doença ou o sofrimento psíquico do indivíduo?

Observa-se, a partir do estudo aqui apresentado, que não se pode ignorar o fato de especialistas se utilizarem de manuais psiquiátricos e de estudos psicanalíticos como tentativa de localizar algo que possa nomear e melhor circunscrever o que se passa com os pacientes histéricos e aqueles classificados como portadores de transtornos somatoformes, para compreender o motivo pelos quais eles adoecem. Encontrar nomes para entender o fenômeno parece ser o motor da ciência. O sofrimento deve ser pesquisado e ter um diagnóstico para que não se torne um (mal)dito. Talvez seja propício retomar a epígrafe escolhida para a dissertação: “Há sempre algo de ausente que me atormenta” (Camille Claudel, 1864-1943). No entanto, quanto mais os progressos científicos tornam-se nítidos, mais parecem não dar conta de dizer o que se passa com sujeitos que não melhoram diante dos diversos tratamentos ofertados, pelo contrário, produzem novas manifestações e maneiras de expressarem os seus conflitos.

Desde há muito que me interesso pelas classificações de pessoas, no modo como afetam as pessoas classificadas e na forma como os efeitos que têm sobre elas, por seu turno, transformam essas mesmas classificações. São vários os tipos de pessoas que pensamos como objeto de estudo científico. Por vezes para controlá-las, como as prostitutas; outras para ajudá-las, como os potenciais suicidas. Por vezes para organizar e ajudar, embora também para nos mantermos seguros, como no caso dos pobres ou dos sem-abrigo. Por vezes para transformá-las para o seu próprio bem e para o bem de todos, como os obesos. Por vezes apenas para admirá-las, compreendê-las, encorajá-las e talvez até para emulá-las, como (às vezes) sucede com os gênios. Concebemos estes tipos de pessoas como classes determinadas, definidas por propriedades determinadas. À medida que sabemos mais acerca destas propriedades, a nossa capacidade de controlar, ajudar, transformar ou emular aquelas pessoas aumenta. Mas na verdade não é bem assim. Elas são alvos em movimento,

porque as nossas investigações interagem com elas e transformam-nas. E, uma vez transformadas, já não são exatamente o mesmo tipo de pessoas. O alvo moveu-se. É aquilo a que chamo de ‘efeito de looping’. Por vezes, as nossas ciências criam tipos de pessoas que, num certo sentido, até então não existiam. A isto chamo ‘formar pessoas’ (Hacking, 2011, p.9η).

Ao levar em conta as palavras de Hacking (2011) pode-se transpô-las tanto para as classificações dos manuais psiquiátricos quanto para a categoria estipulada como transtornos somatoformes. Correlacionar tais ideias é pertinente quando se refaz o percurso histórico das nomenclaturas e se observa que ao longo do tempo diversas modificações fizeram-se necessárias. Os autores da CID e do DSM justificam que as novas edições são sempre feitas para acompanhar os avanços obtidos no decorrer dos anos, o que pode ser ilustrado pelas alterações das classes, por exemplo do DSM: distúrbios psicofisiológicos - transtornos psiconeuróticos - neuroses - transtornos somatoformes - sintomas somáticos e transtornos relacionados. Consegue-se supor que as demandas e os períodos relacionados a estas categorias exigiram inclusões e/ou supressões e que as proposições de Hacking (2011) sobre a dificuldade em classificar e quantificar um fenômeno, uma doença, uma determinada situação ou um transtorno não pode ser ignorada. Com isso, talvez se possa dizer que é importante classificar e compreender o que se passa com o indivíduo, mas considerando-se que o homem é dinâmico e extremamente mutável, na maior parte das vezes, a proposta de classificação torna-se obsoleta. Assim, novas hipóteses, modelos e estudos serão necessários, uma vez que o sujeito está em constante interação com o meio e isto produz transformações, além daquelas que a própria nomeação pode engendrar.

A respeito destas nomeações, sabe-se que os transtornos psiquiátricos se configuram como um processo etiológico múltiplo que sofre influência de diversos níveis de interação com o meio, de tal modo que não seria possível identificar anteriormente um nível privilegiado para desenvolver um sistema nosológico (Vittorio, Minard & Gonon, 2013).

De acordo com a pesquisa realizada talvez se possa supor que o sofrimento psíquico e a produção de transtornos mentais só fazem sentido se houver um entendimento integrado das dimensões sociais e biológicas. A interação do homem com o meio coloca o indivíduo a todo momento em conflito, o que pode ser verificado no sujeito a partir de sua incapacidade de lidar com as contingências da vida. No meio cultural, o estabelecimento de padrões e de normas se mantém, ainda que o homem se mostre fragilizado ou apresente determinados comportamentos ditados por aquela população como insatisfatórios.

Sobre isto Safatle (2014) questiona: qual o tipo de órgão, região ou função do corpo que se fragiliza e como acolher este sofrimento e tratá-lo? Isto porque, ao mesmo tempo em que este meio oferece artifícios para tratar do sujeito, este indivíduo adoece justamente pelas normas que o ambiente impõe a ele. O paciente e o meio estão em contínua transformação e, com isso, também suas normas, de tal maneira que não faz sentido questionar se a experiência orgânica determina a sua história ou vice-versa. A ciência como discurso e a vida social não são experiências de subordinação, ou seja, não é somente a ciência que determina o sujeito e nem somente a vida social; trata-se de um processo que interfere no paciente de modo intenso e indiscriminado. Não se pode negar que uma influencia a outra a todo momento, pois elas estão em constante comunicação.

A nomeação do sofrimento psíquico para os indivíduos ajuda o homem a diminuir parte de sua angústia diante de um evento acerca do qual pouco se sabe e que é determinado subjetivamente. O fato de não existir um exame que comprove os transtornos mentais torna este processo mais complexo. É em decorrência disto que diversos estudos são produzidos, como forma de auxiliar os pacientes a lidarem com o seu mal estar, mas a dificuldade parece ser criar um padrão comum para um tipo de acometimento particular e condizente com o momento sócio-histórico. De todo modo, os esforços permanecem na expectativa de alívio, diminuição e extinção do mal estar.

6.2. A quantificação da doença ou sofrimento nos manuais psiquiátricos: entre o normal