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4. OS TRANSTORNOS SOMATOFORMES NA CLASSIFICAÇÃO

6.3. O que depreender da crítica aos manuais?

Para além das críticas já feitas à CID e ao DSM, o presente estudo tornou possível elaborar algumas considerações acerca das características apresentadas nos manuais:

a) apesar da insistência dos responsáveis pelos manuais quanto ao treinamento necessário para utilização dos mesmos, estes não chegam a indicar ou disponibilizar elementos para isso. Talvez este fato possa ser um dos indicadores que resultam no

empobrecimento do que poderia ser o uso destes instrumentos, isto é, um norteador para o tratamento e a escuta do paciente;

b) apesar de não se localizarem referências à condução de treinamentos específicos para o uso destes manuais, nota-se uma mudança substancial no decorrer das edições, tanto da CID quanto do DSM. Pode-se dizer que o exemplo mais evidente de uma ausência de direcionamento aos profissionais é observado entre as seis primeiras edições do que é hoje nomeado como CID. Antes da sétima revisão, não eram oferecidas aos médicos informações a respeito do que seriam os diagnósticos, que apareciam apenas mencionados como se houvesse a suposição de que o profissional já tivesse adquirido previamente o conhecimento suficiente para tanto;

c) a realidade dos manuais mudou principalmente nas últimas versões. Há agora cada vez mais detalhes sobre a composição de um determinado diagnóstico e, tal como se observa, isto se deve, segundo os autores, ao fato de que mundialmente a ausência de explicações podia gerar erros, uma vez que certos termos tem diversos empregos em regiões distintas. Diante destas constatações cabem agora alguns questionamentos: a inclusão de detalhes é notória, mas será que estas incorporações atenderiam somente à diversidade cultural? Ou será que, ao longo do tempo, foi se produzindo o receio de que a formação adquirida pelos profissionais da saúde mental não esteja sendo suficiente para capacitar a elaboração de um diagnóstico e, por este motivo, os autores considerem necessário proporcionar explicações para garantir que os erros sejam diminuídos? Ao que tudo indica, ambas as questões podem se combinar.

Para ajudar a responder a tais questões, Zorzanelli (2011) sugere um retorno ao período entre 1850 e 1960, no qual se observam contribuições essenciais para o diagnóstico. O resultado das novas concepções produziu evidente expansão das categorias já existentes até a época a que se refere o início da investigação da autora, portanto 1850 e também a separação entre a neurologia e a psiquiatria, consequentemente, uma diferenciação entre os transtornos mentais e as doenças do cérebro. Deste modo, tal dissociação produziu uma organização na qual, de um lado, mantiveram-se pacientes neurológicos com os sintomas referentes ao sistema nervoso e, de outro, pacientes psiquiátricos, psicanalíticos, psicopatológicos que se caracterizavam pela produção de um sintoma particular. Em meio a esta produção de sintoma único foram criadas as psicoterapias e a cura pela palavra.

É provável que a constatação das manifestações sintomáticas justifique os dados de produção no campo científico localizados por Kurcgant (2012, p.59), no período abaixo assinalado:

Entre 1730 e 1820, mais de cinquenta publicações médicas francesas tinham a histeria como tema principal. No mesmo período, foram publicados na Inglaterra cerca de trinta tratados sobre a histeria que também circularam na França, traduzidos ou não. Muitos destes tratados foram, rapidamente, reeditados e traduzidos para o espanhol e italiano, o que sugere uma expansão dos conhecimentos médicos por toda a Europa, inclusive com a disseminação através das academias médicas, sociedades de medicina e periódicos.

Até 1930, várias pesquisas foram desenvolvidas no campo da medicina, mas os diagnósticos de histeria e epilepsia parecem ter perdido força no decorrer deste período. Tais dados podem ser verificados no texto de Kurcgant (2012), no qual consta a investigação em seis revistas especializadas de Neurologia e Psiquiatria entre os anos de 1910 e 2005. As variações nos periódicos analisados para estes dois termos – crises histéricas e epilépticas – são notórias ao longo deste período, ora com mais pesquisas ora sem nenhuma menção aos termos. De todo modo, as pesquisas a este respeito quase não são importantes, se comparadas com o momento em que elas foram constatadas e passaram a pertencer ao jargão médico – por exemplo, quando Freud iniciou suas investigações a respeito da histeria. Sobre os motivos pelos quais ocorreram tais mudanças, até hoje ainda pouco se sabe. Mas, talvez seja possível supor que este tipo de paciente que, de modo geral, não responde de maneira satisfatória aos tratamentos oferecidos e com relação ao qual pouco se sabe da etiologia dos seus sintomas, tenha acabado por se tornar cada vez menos relevante para o campo da ciência (Kurcgant, 2012).

A Primeira Guerra Mundial fez ressurgir doenças mentais e neurológicas que se supunha terem sido superadas. De acordo com a psicanálise, sintomas desta natureza se justificam em decorrência dos traumas e inseguranças provocados na circunstância de vulnerabilidade representada pela guerra (Trillat, 1991). Se recorrermos à história do DSM, as coisas não se passam de modo tão diferente, tanto que as investigações americanas para a criação de nomenclatura mais uniforme iniciam-se neste período e o manual é justamente publicado pela primeira vez logo após a Segunda Guerra Mundial.

Com Charcot e os histéricos, o inconsciente começa a ser teorizado. Com Freud e os outros pesquisadores da psique humana em que essa virada de século é crescentemente rica, assume papel-chave no entendimento da loucura

e do comportamento comum do dia a dia. A histeria, no entanto, como um conjunto exuberante de expressões na forma corporal de problemas mentais – histeria de defesa, como Freud a chamou – deixou de ser uma doença importante entre as mulheres ocidentais. Como diagnóstico, migrou com a Primeira Guerra Mundial para as “neuroses de guerra”, da qual tantos soldados sofreram – a cegueira, mudez ou paralisias como expressões do trauma da batalha. Desde então, a histeria de defesa desapareceu quase completamente (Appignanesi, 2011, p.150).

Silva Jr.(2012), valendo-se das muitas manifestações observadas, também no período pós-guerra e da presença de quadros histéricos tão intensos, coloca em debate a existência da histeria, já que ela se configura como um mimetismo, uma cópia de outras doenças. Pode-se dizer que ela não existe e nunca existiu? Se admitirmos que tal afirmação é verdadeira pode- se supor que esta denominação de sofrimento foi inventada pelo homem para responder a determinadas necessidades, por exemplo, aos tratamentos e às pesquisas. No entanto, esta pode não ser a única saída para compreender o porquê de a histeria ser hoje evitada no campo da medicina. Segundo Silva Jr. (2012), tal como outras doenças que não são mais localizadas, como a peste negra ou a varíola, praticamente erradicadas no mundo em função dos progressos de higiene e medicamentos eficientes, esta poderia ter sido uma possibilidade para o que aconteceu com a histeria e, portanto, não se tem porque estudá-la ou investigar mais. O que sabemos não ser verdade. Mas talvez se possa colocar a questão da seguinte forma, ainda que ela seja localizável de outras maneiras; talvez se deixássemos de falar a respeito da histeria ou modificássemos o seu nome, a configuração da histeria, nos moldes propostos por Freud, poderia ser esquecida? Ou enquanto os profissionais não encontram condições para tratar de tal sofrimento, talvez seja possível pensar em outras formas e produções de remédios ou alternativas até que ela seja extinta tal como foram outras doenças. Tais são hipóteses aventadas pelo autor (Silva Jr., 2012).

A prática parece demonstrar que as alternativas medicamentosas e classificatórias atuais não têm sido alternativas completamente eficientes tal como se esperava, isto é comprovado nas várias consultas, internações e procedimentos realizados com pacientes dos quais não se compreendem ao certo os seus sintomas. Estes recursos tanto não impedem que os sintomas se manifestem que logo são descobertos novos nomes, novos transtornos. Segundo Hacking (2011) pode-se colocar duas indagações: estas novas manifestações não

existiam anteriormente ou passaram a ser diagnosticadas e, com isto, se encontram diversos casos deste gênero? O que teria ocorrido com a histeria?

Para além dos questionamentos aqui sugeridos, cabe retomar que a urgência em encontrar nomeações que deem conta do sofrimento psíquico dos pacientes é tão presente para os cientistas que estes parecem minimizar a exigência de se investir em treinamentos que garantam o uso adequado dos instrumentos. E é possível pensar que as limitações não digam respeito somente aos sistemas classificatórios, mas sim aos profissionais do campo de saúde mental que, se sentindo inseguros com os novos tipos de manifestações clínicas trazidas pelos pacientes se restrinjam ao emprego da CID e/ou do DSM, julgando inclusive que estes possam ser suficientes e superiores à escuta clínica. Talvez os sentimentos de insegurança sejam ilustrados e comprovados nos instrumentos que a cada nova edição explicam cada vez mais o que significa cada transtorno, na expectativa de que isto garanta um melhor diagnóstico e tratamento aos pacientes. Seria este o caminho que garantiria uma melhor eficácia? Uma longa e demorada explicitação de cada categoria?