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A Questão da Apatridia: Conceito e Proteção Internacional

No documento Seminário IDN Jovem [V] (páginas 174-177)

Isabela Maria Botelho de Mello 1 Introdução:

3. A Questão da Apatridia: Conceito e Proteção Internacional

Com referenciado anteriormente, existe toda uma complexidade de problemas (antigos e novos) relacionados com a falta de nacionalidade de um indivíduo. Atual- mente, e em grande parte devido a situações de conflitos, este é um problema global que afeta regiões como o Sudeste Asiático, o Leste Europeu, o Médio Oriente e alguns países africanos.

Sem a sua nacionalidade, uma pessoa é restringida num grande leque de direitos, como por exemplo o seu exercício de direito político em votar para ser representado no país em que vive, além de ter o seu direito de viajar constrangido pois não pode requerer documentos de viagem. Outro problema recorrente, citado por investigadores da UNHCR – sigla em inglês para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugia-

dos –, é a detenção nas fronteiras, até por longos períodos de tempo, de apátridas (UNHCR, 2005, p. 6). Além desses exemplos, outros problemas são levantados relativa- mente a direitos básicos, como o direito à educação, saúde, trabalho e outros.

Em alguns outros exemplos referidos por Tendayi Bloom (2014) vemos as implica- ções da apatridia na vida dos indivíduos e de seus familiares, como é o caso de uma estudante “ex-vietnamita”, recém-licenciada em Direito dos Direitos Humanos, que des- cobriu a sua falta de nacionalidade ao candidatar-se a um emprego junto do governo dos Países Baixos. Ou o problema da apatridia em países cujas leis discriminam em função do género, isto é, se uma mulher for apátrida e o seu cônjuge for de outra nacionalidade que não a de seu país de origem, não poderá transmitir a “ex-nacionalidade” aos seus filhos, visto que a nacionalidade só pode ser transmitida pela via paterna1.

O artigo 15.º da DUDH, analisado anteriormente, quando garante que todas as pes- soas têm direito à nacionalidade, não precisa a nacionalidade que o indivíduo deve pos- suir para que não lhe seja retirado o mínimo de segurança jurídica, relativamente aos direitos que vêm junto com a nacionalidade (UNHCR, 2005, p. 9). Para que fosse garan- tido esse mínimo, a comunidade internacional desenvolveu dois instrumentos: a Conven- ção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, e a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954.

Em 1951, a Assembleia Geral das Nações Unidas realizou uma conferência em que se discutiu a aprovação de um tratado internacional relativo ao estatuto dos refugiados e dos apátridas. Naquele ano as negociações quanto à convenção relativa ao estatuto dos refugiados avançaram e a convenção foi adotada, ao contrário das negociações quanto ao estatuto dos apátridas, que continuaram até a adoção da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, em 19542.

Uma nota introdutória ao texto da convenção, divulgada pelo gabinete da UNHCR, começa por explicar que o texto aprovado estabelece um quadro legal para a proteção internacional dos apátridas, sendo a codificação mais completa dos direitos atribuídos ao apátrida já compilada à nível internacional3.

Um dos maiores contributos dados pela Convenção de 1954 foi a definição legal do apátrida, que nos termos do artigo 1.º, n.º 1, dispõe que: “o termo apátrida designará toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional”. Sendo assim, a Convenção providencia uma importante garantia mínima de tratamento e requer que os apátridas tenham os mesmos direitos que os cidadãos do país onde se encontram, com o mesmo respeito nas suas liberdades e com o gozo, no mínimo, do mesmo tratamento que recebem os nacionais.

1 Leis similares atualmente estão presentes em cerca de 25 países, cujas leis acerca da nacionalidade não dão às mulheres o direito de conferir cidadania aos seus filhos da mesma forma que os homens podem. Estes países estão localizados maioritariamente no Médio Oriente, no Norte da África e na África Subsaariana. Neste sentido ver UNHCR (2018).

2 No entanto, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas só entrou em vigor em junho de 1960. 3 Convention Relating to the Status of Stateless Persons.

3.1. Apatridia de iure versus apatridia de facto

Nos termos do primeiro artigo da Convenção de 1954, o apátrida é aquele conside- rado como tal pelas leis de um Estado, o seu país de origem, e esse indivíduo então é considerado um apátrida de iure. Portanto, esse tipo de apatridia é determinado automa-

ticamente pela lei de um Estado qualquer – como o caso dos filhos que dão a nacionalidade dos pais considerados apátridas –, ou posteriormente, no caso de uma decisão ao abrigo daquela lei – são as pessoas consideradas sem nacionalidade nos ter- mos da legislação aplicável.

Diferentemente, o termo apátrida de facto não é explicitamente definido em nenhum

instrumento internacional, além de não haver um regime específico previsto para estes tipos de situações.

No entanto, como ressaltado pelo manual de proteção aos apátridas da UNHCR, o parágrafo 3 da Ata Final da Convenção de 1954 foi projetado para tratar especificamente desse tipo de situações: solicita que os benefícios da Convenção sejam estendidos aos indivíduos cujos Estados considerem que tiveram razões válidas para renunciar à prote- ção da nacionalidade (UNHCR, 2014, p. 5). Nesses casos, portanto, ocorre que os Esta- dos com os quais uma pessoa possa ter um vínculo genuíno não conseguem chegar a um acordo sobre qual deles é o Estado que concedeu a cidadania a essa pessoa, ou acham que têm fundamento para não a conceder – como a pessoa não consegue demonstrar que é um apátrida de iure, mas ao mesmo tempo não beneficia dos mesmos direitos e proteção

que um nacional beneficiaria, e por isso é considerado um apátrida de facto, para beneficiar

da proteção da Convenção.

Mais tarde, em 1961, é aprovada a Convenção das Nações Unidas para a Redução dos Casos de Apatridia, e a sua ata final veicula uma recomendação no sentido de que tais pessoas deveriam se beneficiar das previsões da Convenção de 1961 para que possam obter uma “nacionalidade efetiva” (UNHCR, 2014, p. 5).

Já na reunião de especialistas sobre o conceito de apátridas sob o Direito Internacio- nal, da UNHCR, temos uma posição mais definida sobre o conceito da apatridia de facto,

o que torna mais fácil a inserção de pessoas dentro do regime aplicado. Explicita-se que a apatridia de facto está tradicionalmente ligada à noção de “nacionalidade efetiva”, quando

a nacionalidade de alguém pode ser “inefetiva” tanto dentro quanto fora de seu país; e sendo assim, uma pessoa poderia ser apátrida de facto igualmente dentro ou fora de seu

país, quando não pudesse efetivamente exercer os direitos e proteção inerentes à sua nacionalidade.

A definição, portanto, ficou assim estabelecida:

“Os apátridas de facto são pessoas que se encontram fora do país de que são nacionais e que não podem ou, por razões válidas, não querem valer-se da protecção desse país. A protecção neste sentido refere-se ao direito de protecção diplomática exercido por um Estado de nacionalidade a fim de sanar um acto internacionalmente ilícito contra um dos seus nacionais, bem como à protecção e assistência diplomáticas e consulares em geral, incluindo no que diz respeito ao regresso ao Estado de nacionalidade” (UNHCR, 2010, p. 6).

3.2. A Vertente da Imigração Forçada

No artigo 31.º da Convenção de 1954 está disposto que os Estados-Contratantes não expulsarão apátridas que se encontrem legalmente nos seus territórios, a não ser por razões de segurança nacional ou de ordem pública. Sendo assim, este artigo constitui uma grande limitação da Convenção, justamente por usar a palavra “legalmente” – se um apátrida não possui nem documentos para entrada num determinado Estado e pode até mesmo ser um apátrida de facto e não conseguir exercer os seus direitos fora de seu país.

Assim, estamos perante uma situação de expulsão, que se configura como uma medida estatal unilateral destinada a pôr fim à permanência do estrangeiro no território (Gil, 2017, pp. 29-31), que se dá muitas vezes em função de uma entrada ilegal no país.

Portanto, ao falar de uma expulsão por qualquer medida, estamos dentro do âmbito de uma migração forçada (no caso, uma imigração), que é definida pela Organização Internacional para as Migrações como as deslocações de pessoas de um país para o outro devido à coerção, derivada ou de ação humana ou ainda de facto natural (Gil, 2017, p. 31). Algumas situações que podemos citar como uma imigração forçada são os conflitos armados, sérias violações dos direitos humanos, expulsões coletivas em função de segre- gação social e discriminação, e até mesmo uma imigração forçada devido a gestão dos recursos naturais dentro do país.

De acordo com estudo feito pelo Norwegian Refugee Council(2015), o maior número de casos relativos á imigração forçada – e aos casos de apatridia – tem por base os conflitos armados, que são incitados por discriminação racial, étnica ou religiosa. Mui- tas vezes nos conflitos internos, segmentos da população são segregados e estigmatiza- dos por via de políticas das autoridades nacionais, com vista à exclusão da conexão dos indivíduos com aquele país e com a sua comunidade.

Por exemplo, um dos maiores casos de imigração forçada que tivemos nos últimos anos, com uma grande quantidade de casos de apatridia, teve como estopim a guerra na Síria. Muitos sírios saíram forçadamente de seus países para evitar os conflitos e a violên- cia, e muitos deles vieram para a Europa, com o estatuto de refugiados, mas muitos deles também como apátridas.

Neste sentido, a Organização das Nações Unidas, em outubro de 2019, apelou mais uma vez aos Estados que não se esquecessem dos milhões de pessoas que ainda enfren- tam grandes dificuldades devido à sua condição de apátridas, e que um dos objetivos da organização é erradicar esse problema até 2024, no seguimento de sua campanha “I Belong”, com início em 2014 (ONU News, 2019).

No documento Seminário IDN Jovem [V] (páginas 174-177)