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A Saúde dos Polícias

No documento Seminário IDN Jovem [V] (páginas 85-88)

A Polícia Militar do Brasil tem suas bases na hierarquia e na disciplina, e sua organi- zação burocrática remonta ao século XIX. Essa estrutura básica atravessa as instituições policiais e permanece diante das tentativas de modernização e aquisição de novas políti- cas de gestão que objetivam acompanhar as mudanças da sociedade brasileira (Silva e Vieira, 2008). Segundo a Constituição Brasileira de 1988, artigo 144, inciso 5.º: cabe às polícias militares a função de policiamento ostensivo e manutenção da ordem pública. Assim, neste caso específico, as atribuições profissionais dos policiais militares deveriam se voltar, principalmente, para prevenir ações criminosas e zelar pela segurança pública, com respeito aos princípios hierárquicos e disciplinares.

Todavia, na prática profissional, o polícia acaba por ser impelido a privilegiar o trabalho de

repressão ao crime, tendo que equilibrar o papel de representante da comunidade e pro- motor de ações sociais, ao papel de representante da violência coercitiva do Estado. San- tos (1997), ao retratar os pilares históricos da Polícia Militar no Brasil sublinha que o modelo brasileiro de policiamento tem suas origens em outros dois modelos, que são particularmente distantes entre si: 1) O modelo da Polícia Inglesa, que se apresenta como uma Polícia comunitária e com ações focadas na prevenção; 2) O modelo da Polícia Fran- cesa, que representa o poder e a violência do Estado com ações focadas na repressão.

Nas mídias a imagem do polícia também é ambígua – ora tratado como herói que combate o crime e ora tratado como vilão que se corrompeu ou matou inocentes – sendo pouco lembrada sua condição de trabalhador que lida e está constantemente exposto à violência (Spode e Merlo, 2006). O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2018) aponta

uma redução de 4,9% no número de policiais mortos em 2017, mas o índice revela que pelo menos um polícia (civil ou militar) foi assassinado por dia neste mesmo ano. A polí- cia brasileira também apresenta um alto índice de letalidade em suas operações, somando um aumento de 20% no número mortos em intervenções policiais. Esses dados foram parcialmente incluídos no informe O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, publicado pela

Amnesty International (2018), em que se ressaltou o Brasil como um dos líderes do

ranking de assassinatos cometidos por polícias, mas omitiu-se os dados sobre polícias

acontece fora do horário de trabalho, o que caracteriza em muitos casos, os crimes de execução. De acordo com o site oficial da Anistia Internacional (2018), a polícia brasileira tem sido tratada popularmente como a “a polícia que mais mata e mais morre” no mundo. Em contraposição a esse cenário, tem-se os índices da polícia britânica, que segundo a BBC News Brasil (2015) atirou apenas duas vezes entre os anos de 2013 e 2014, sem contabilizar mortes de civis ou de policiais em serviço. Na reportagem, duas condições são identificadas como determinantes para os índices apresentados pelo Independent Police Complaint Commission (IPCC) da Inglaterra e País de Gales: 1) Somente 5% dos polícias, com treinamento específico, podem portar armas de fogo; e 2) A Grã-Bretanha tem uma das legislações mais restritivas em relação à posse de armas de fogo do mundo. Contudo, em ensaio crítico sobre a polícia britânica intitulado Just Authority? Trust in the police in Eng- land and Wales, os autores, Jackson et al. (2012), relatam que há um crescente colapso entre

a polícia e os cidadãos comuns por conta de excessos cometidos contra minorias étnicas, e defendem o “policiamento por consentimento” que seria central para o modelo clássico da Polícia comunitária. Alertam, ainda, para a necessidade de cooperação entre as instân- cias policiais e públicas, uma vez que os polícias também devem ser vistos como cidadãos que estão uniformizados cuidando do bem-comum, algo que todos deveriam cuidar de alguma forma ou em algum momento de duas vidas (Jackson et al., 2012).

Essas diferenças de contexto socioeconômico e cultural podem implicar de maneiras diferentes na saúde dos polícias. Entretanto, parece haver aspetos comuns, que se refe- rem à natureza das atividades de trabalho dos polícias. Sobre as implicações subjetivas deste tipo de trabalho em diferentes contextos, algumas pesquisas no Brasil e nos Esta- dos Unidos (Miranda et al., 2016; Guimarães et al., 2014; Violanti, 2004) demonstram

agravantes, como uso abusivo de substâncias psicoativas, comportamentos autoagressi- vos, ideação suicida e suicídio. Para além disso, no caso da polícia brasileira, pode-se incluir a precarização do trabalho, seja no plano instrumental ou nas condições práticas de atuação, como mais um componente que pode impactar a saúde mental desses traba- lhadores (Silva e Vieira, 2008).

Sobre esse último, particularmente, cabe dizer que, segundo Miranda et al. (2016),

entre os principais fatores de risco ocupacional para o comportamento suicida dos polí- cias militares brasileiros encontram-se o alto nível de desconfiança nos relacionamentos interpessoais – inclusive com os próprios pares –, a exposição a situações de vitimização direta (letal e não letal), problemas com sono, dificuldade de concentração e sentimento de fracasso. Quando se trata dos polícias dos Estados Unidos tais fatores mostram-se similares. Considerando o levantamento de dados produzido por Violanti (2004), por sua vez, percebe-se que a exposição a situações potencialmente traumáticas e suas conse- quências, como problemas com sono e dificuldade de concentração, são preditoras tanto de comportamentos suicidas quanto de uso abusivo de álcool.

Para ilustrar o quão presente é o suicídio nas polícias, pode-se referir que, especifica- mente no estado de São Paulo, a média do número de suicídios entre policiais é maior do que o dobro da média de suicídios da população em geral (Uchida, 2007). Já nos Estados Unidos, além do grande número de suicídios, há também um número desproporcional de

mortes por “causa não identificada” quando se compara as médias das mortes de polícias com o restante da população (Violanti, 2010).

De modo geral, os polícias tendem a perceber seu trabalho como algo desconfortá- vel, com recorrência de interrupções inoportunas, exposição constante a eventos nocivos à saúde física e mental, falta de tempo para a vida pessoal, exigência física excessiva e conflitos no trabalho. Tais percepções aumentam o risco de incidência da Síndrome de

Burnout e psicopatologias relacionadas nessa população (Guimarães et al., 2014). A pos-

tura exigida aos polícias em suas atividades de trabalho diz respeito a um modelo alta- mente disciplinado e que, por vezes, apresenta características autoritárias (Moreira et al.,

1999). A profissão habitualmente precisa ser acompanhada por mudanças comportamen- tais e subjetivas daqueles que pretendem “honrar sua farda”.

Em estudo desenvolvido por Moraes, Ferreira e Rocha (2001) com 1.152 polícias militares de Minas Gerais foi evidenciada a presença constante de estresse relacionado a forma de organização da instituição militar. Contudo, paralelamente, foram encontrados níveis importantes de satisfação com as atividades em si, apontando para uma qualidade de vida no trabalho em níveis satisfatórios. Outro estudo (Spode e Merlo, 2006), com recorte qualitativo e realizado com Capitães da Polícia Militar do Rio Grande do Sul, reafirmou o sofrimento que envolve os mecanismos de controle e vigilância no trabalho dos militares.

Couto et al. (2017) encontraram sintomas de estresse entre 55,9% dos 325 alunos de

um Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar que, segundo os autores, podem indicar a necessidade de ações afirmativas de controle e manipulação de estressores. Uma proposta de prevenção em saúde mental nesse contexto teria como objetivo a proteção dos futuros gestores.

Souza et al. (2015) investigaram a autoeficácia como variável mediadora entre bem-

-estar subjetivo e Burnout em 228 cadetes militares (policiais e bombeiros) da Paraíba.

Nesse trabalho, encontraram os afetos negativos e a vitalidade subjetiva – baixa ativação e falta de vitalidade – como preditores de Burnout, e a autoeficácia como mediadora do

bem-estar subjetivo em dois níveis: em primeiro lugar, nas crenças dos militares sobre sua capacidade para lidar com eventos aversivos no trabalho; e em segundo lugar, nas reações emocionais aos eventos estressores, que influenciam mutuamente cognições e comporta- mentos. Sugeriu-se, assim, que os cadetes possam ter acesso ao desenvolvimento de mecanismos de autorregulação e aquisição de maior senso de autoeficácia, para além do aprendizado com foco nas teorias e técnicas necessárias à atuação profissional.

Segundo as afirmações de Moreira et al. (1999), e a partir da perspetiva da psicopato-

logia do trabalho, há uma ausência de espaços para uma análise coletiva, seja das organi- zações militares ou das consequências da profissão na vida dos trabalhadores. Apenas pela frequência de suicídio em policiais já se pode compreender que são recomendadas medidas de tratamento e prevenção para lidar com este cenário profissional. Daí que, por exemplo, Miranda et al. (2016) sugerem políticas de humanização e valorização do poli-

cial, bem como políticas de prevenção ao adoecimento mental e aos comportamentos suicidas. Para Guimarães et al. (2014), também seria possível uma ação preventiva no que

diz respeito à Síndrome de Burnout, por meio de um programa efetivo de diagnóstico,

orientação e controle do estresse, presentes no cotidiano de trabalho dos policiais, através de check-up médico e psicológico anual, por exemplo. Andrade e Souza (2010) realizaram

uma investigação denominada metodologicamente de “pesquisa-ação”, em que disponi- bilizaram intervenções com foco na autoestima e valorização profissional para os polícias civis dentro do “Programa Delegacia Legal” e obtiveram uma avalição positiva das ofici- nas pelos participantes.

Dentro de iniciativas internacionais podem ser destacados os autores Levenson, O’Hara e Clark (2010) e Turgoose et al. (2017). Os primeiros apresentaram a proposta

Emotional Self-Care Program, que trabalhou fatores de resiliência e qualidade de vida com polícias dos Estados Unidos e Canadá, e multiplicou suas ações em diferentes regi- ões destes países. Os últimos publicaram recentemente os resultados de um treinamento para regulação do estresse com polícias londrinos que trabalhavam com vítimas estupro. Nesse caso, aqueles que estavam há mais tempo trabalhando com esse tipo de crime relatavam, por exemplo, maiores índices de fadiga por compaixão e Burnout. Foi proposto

um treinamento dividido em duas partes, sendo que a primeira se tratava de psicoeduca- ção sobre estresse, fadiga por compaixão, Transtorno de Estresse Pós-Traumático Secun- dário e Burnout, e a segunda tinha como foco o aprendizado de estratégias de autocui-

dado. Os seis módulos do treinamento abordavam as temáticas: a) Identificação de sinais de estresse; b) Autocuidado; c) Regulação de ansiedade e estresse; d) Suporte social; e)

Mindfulness; e f) Satisfação por compaixão. Os resultados demonstraram que os partici-

pantes aprenderam mais sobre como a fadiga por compaixão podia afetar seu trabalho e relataram o aumento no uso de práticas meditativas de Mindfulness, inclusive com o auxílio

de aplicativos de Smartphones.

Cabe ressaltar que a maior parte dos estudos brasileiros citados sugere ações de pre- venção e promoção de saúde na Polícia Militar e nas polícias em geral, mas só foram encontrados estudos com relato de experiência de programas de intervenção exclusivos para polícias em papers internacionais. Além disso, pode-se considerar que uma parte

representativa da literatura na área prioriza o estudo de aspetos de adoecimento/sofri- mento relacionados ao trabalho dos polícias.

Com esta pauta, torna-se relevante ampliar o escopo dos estudos referentes à esta população com a inclusão de um novo tema para reflexão: virtudes, forças de caráter e bem-estar dos polícias. A Psicologia Positiva contribuiu como aporte teórico e metodo- lógico pois suas intervenções baseiam-se nos fatores de proteção à saúde como um todo, fortalecimento das relações e laços afetivos, desenvolvimento de habilidades socioemo- cionais, e manutenção do bem-estar e florescimento humano.

No documento Seminário IDN Jovem [V] (páginas 85-88)