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A quest˜ao disciplinar do Turismo

No documento A investigação sobre turismo em Portugal (páginas 39-45)

1.3 Epistemologia do Turismo

1.3.1 A quest˜ao disciplinar do Turismo

O aceso debate que entre acad´emicos tem tido lugar (sobre assuntos metodol´ogicos, ori- entac¸˜oes de pesquisa e abordagens ao estudo do Turismo) tem sido revelador de uma sig- nificativa cis˜ao, entre os que o defendem como uma disciplina distinta (“turismologia” ou “turologia”) e os que o concebem como n˜ao mais do que uma ´area de especializac¸˜ao no actual universo disciplinar (Echtner e Jamal, 1997: 869). Os primeiros sustentam que este objecto de estudo ´e demasiado complexo para poder ser convenientemente abordado por uma ´unica disciplina, porquanto as existentes se revelam incapazes de o apreender como

um todo, centrando-se em aspectos particulares; a fragmentac¸˜ao da´ı resultante obsta ao seu desenvolvimento e aprofundamento te´orico, alimentando um debate incessante acerca das respectivas definic¸˜oes, ˆambito e enquadramento (Graburn e Jafari, 1991: 7-8; Leiper, 1981: 82). Os seus opositores contrap˜oem que a insuficiˆencia te´orica n˜ao ´e transit´oria, mas ine- rente, pelo que ´e irrealista aspirar a um marco te´orico pr´oprio; da´ı admitirem como plaus´ıvel (leia-se prov´avel. . . ) que a investigac¸˜ao nesta ´area continue a pautar-se pelo dinamismo, pela diversidade e at´e pela conflitualidade; consequentemente, defendem a necessidade de mais investigac¸˜ao interdisciplinar para ultrapassar os problemas conceptuais e metodol´ogicos (Dann et al., 1988: 2; Echtner e Jamal, 1997: 870).

Como reconhece Tribe, a atractividade da promoc¸˜ao do Turismo a um estatuto disciplinar reside na (ansiada) resoluc¸˜ao de alguns problemas epistemol´ogicos: por um lado, dot´a- lo-ia de um referencial e instrumentos pr´oprios para o desenvolvimento de conhecimento (tur´ıstico) “s´olido”; por outro lado, facultar-lhe-ia a possibilidade de se referenciar interna- mente (no ˆambito de uma disciplina pr´opria), garantindo um controlo mais eficaz da quali- dade do conhecimento produzido; e, n˜ao menos importante, permitiria-lhe-ia o ombrear dos seus acad´emicos com os demais, no seio da comunidade cient´ıfica. No entanto, tal con- veniˆencia n˜ao se concretiza17quando invocadas as condic¸˜oes de classificac¸˜ao das formas

de conhecimento (disciplinas) enunciadas por Hirst (Tribe, 1997: 642-4):

i. Uma disciplina constitui-se de um conjunto de conceitos inter-relacionados e particula- res;

contudo, os conceitos articulados sobre Turismo dificilmente lhe s˜ao espec´ıficos, pro- vindo de outras ´areas, a partir das quais foram contextualizados numa dimens˜ao tur´ıstica; ii. Os conceitos de uma disciplina formam uma malha que lhes d´a uma estrutura l´ogica

distintiva;

no entanto, os conceitos tur´ısticos s˜ao atomizados e n˜ao formam uma malha distintiva, uma estrutura l´ogica de inquiric¸˜ao do mundo; tˆem de ser interpretados na l´ogica de uma outra qualquer disciplina geradora e a sua ´unica caracter´ıstica comum assenta no seu objecto de estudo (o Turismo);

iii. Cada disciplina cont´em express˜oes ou proposic¸˜oes test´aveis atrav´es de crit´erios que lhe s˜ao pr´oprios;

nos estudos tur´ısticos n˜ao existem tais express˜oes ou enunciados, muito menos crit´erios de validac¸˜ao (pelo contr´ario, para o efeito recorre `as disciplinas contribuintes);

iv. As disciplinas s˜ao irredut´ıveis, constituem os blocos elementares (embora divis´ıveis); mas os conceitos tur´ısticos s´o s˜ao redut´ıveis noutras formas de conhecimento.

Fragilizada a sua ambic¸˜ao disciplinar (ou mesmo subdisciplinar), o Turismo carece de uni- dade te´orica ou conceptual interna, dependendo de outras disciplinas. Esta constatac¸˜ao vˆe- se reforc¸ada mesmo quando considerados crit´erios “alternativos” (sinais/evidˆencias) (Tribe, 1997: 644-5):

- A existˆencia de uma comunidade acad´emica particular (de reduzida express˜ao) n˜ao obvia a que os seus membros provavelmente se identifiquem mais com outros com quem partilhem um percurso disciplinar ou funcional similar, do que numa comunidade do Turismo;

- A rede de informac¸˜ao acad´emica sobre Turismo denota uma reduzida coes˜ao ao n´ıvel dos t´ıtulos peri´odicos, sendo poss´ıvel distinguir entre os que evidenciam uma forte orientac¸˜ao para a vertente empresarial associada e os que se pautam por abordagens mais ecl´ecticas;

- A brevidade do estudo do Turismo (fundamentalmente desde a d´ecada de 1970) n˜ao permite entrever qualquer tradic¸˜ao unificadora;

- Face `a amplitude do Turismo, dificilmente se concebe a existˆencia de um conjunto de valores partilhados entre os membros da respectiva comunidade acad´emica.

A considerac¸˜ao do Turismo como uma ciˆencia implica uma reflex˜ao distinta: embora propor- cione um exame sistem´atico `a validade do conhecimento, o m´etodo cient´ıfico vˆe a sua apli- cabilidade limitada `a fracc¸˜ao do mundo fenomenol´ogico que admite avaliac¸˜ao sistem´atica, quantitativa; a sua assunc¸˜ao como principal m´etodo de pesquisa do Turismo resultaria na exclus˜ao de uma parte significativa daquele mundo fenomenol´ogico que ´e suposto analisar (Tribe, 1997: 646-7).

Por seu lado, os campos de estudos relacionam-se com o mundo fenomenol´ogico de modo distinto do das disciplinas (Tribe, 1997: 647, 649): enquanto uma disciplina assenta em con- ceitos, no conhecimento constru´ıdo e numa metodologia pr´opria para perscrutar o mundo externo, os campos de estudos centrem-se num determinado fen´omeno ou pr´atica, para cujo estudo convocam as disciplinas pertinentes; enquanto as disciplinas constituem um corpo co- eso de teorias, conceitos e m´etodos, os campos de estudos socorrem-se das v´arias formas de conhecimento que contribuam para o elucidar o seu objecto. Este (campo de estudos) focaliza-se no objecto, enquanto aquela (disciplina) se apresenta como um modo de estudo particular. ´E neste pressuposto que Tribe reformula o modelo de Jafari e Ritchie (1981), propondo dois campos no estudo do Turismo (Figura 1.12):

Campo 1 dos estudos tur´ısticos (C1): claramente identific´avel como o dos estudos em- presariais do Turismo, tem conquistado maturidade e definido o seu pr´oprio espac¸o;

Figura 1.12: A criac¸˜ao do conhecimento em Turismo

Fonte: Tribe (1997)

assemelha-se a outros estudos empresariais e engloba o marketing, a estrat´egia em- presarial, o direito e a gest˜ao aplicados ao Turismo;

Campo 2 dos estudos tur´ısticos (C2): constitu´ıdo pelos restantes estudos (n˜ao-empresariais), que n˜ao denotam um prop´osito t˜ao ´obvio e carecem de um enquadramento mais uni- ficador do que a mera relac¸˜ao tur´ıstica; aglutina ´areas como o estudo dos impactos ambientais e sociais, percepc¸˜oes e capacidade de carga em meio tur´ıstico.

Ainda assim, a divis˜ao entre estes campos n˜ao ´e de todo estanque, verificando-se alguma sobreposic¸˜ao entre eles (ex. impactos ambientais). Conjuntamente definem um Modo 1 de produc¸˜ao do conhecimento – aquele que ´e gerado num contexto disciplinar (representado no anel mais externo da figura) – que ´e essencialmente cognitivo, sendo caracter´ıstico do universo acad´emico. Entre as disciplinas e os campos de estudo situa-se uma ´area (‘banda k’) atrav´es da qual os conceitos e as teorias do Turismo s˜ao “destilados”18, isto ´e, onde o

conhecimento tur´ıstico ´e criado. Esse conhecimento ´e, primeiro de tudo, multidisciplinar, no sentido em que cada uma das v´arias disciplinas projecta a sua abordagem particular sobre a realidade, atrav´es de metodologias pr´oprias de construc¸˜ao e validac¸˜ao do conhecimento. Mas

´e tamb´em interdisciplinar, na medida em que diferentes disciplinas se associam, naquela banda, para a construc¸˜ao de novas perspectivas de an´alise do mundo externo do Turismo, transcendendo as respectivas terminologias ou metodologias espec´ıficas. Disso ´e exemplo o Campo 1, que constitui um cluster de actividade interdisciplinar, para cuja edificac¸˜ao contri- buem tanto as disciplinas19como a pr´atica dos mundo dos neg´ocios (Tribe, 1997: 649-51).

Adicionalmente, h´a a considerar um segundo modo de produc¸˜ao do conhecimento, n˜ao en- raizado numa matriz disciplinar, nem institucionalizado em organizac¸˜oes acad´emicas. Fun- damentalmente, resulta da actividade dos sectores de neg´ocios associados, entidades go- vernamentais, grupos de reflex˜ao ou de representac¸˜ao, institutos de pesquisa e empresas de consultoria, incluindo tamb´em o desenvolvimento e aplicac¸˜ao de tecnologias da informac¸˜ao. ´E denominado extradisciplinar porquanto tem lugar fora do contexto tradicional (acad´emico), n˜ao sendo comunicado em publicac¸˜oes cient´ıficas, nem procurando o reconhecimento ci- ent´ıfico. Tem vindo a desenvolver uma epistemologia pr´opria – assente na capacidade de resoluc¸˜ao de problemas, na melhoria da eficiˆencia de custos e na construc¸˜ao de vantagens competitivas – com resultados frequentemente contextualizados em projectos muito concre- tos (Tribe, 1997: 651-2).

Por outro lado e elaborando a partir de uma perspectiva Kuhniana, Echtner e Jamal (1997: 875-6) aproximam-se da posic¸˜ao de Tribe, situando os estudos tur´ısticos numa fase pr´e- paradigm´atica: disso s˜ao sinal as persistentes contendas sobre conceitos nucleares, como os de Turismo e turista, bem como os incessantes debates sobre as metodologias mais apro- priadas `a sua abordagem. Adicionalmente, referem, h´a a considerar uma situac¸˜ao de in- comensurabilidade entre paradigmas20 concorrentes, de onde adv´em uma incapacidade

de comunicac¸˜ao entre perspectivas conflituais ou at´e mesmo incompat´ıveis. Esta situac¸˜ao coloca desafios praticamente insuper´aveis ao devir de uma disciplina “tur´ıstica”, que necessi- taria da combinac¸˜ao e s´ıntese entre paradigmas e pesquisa de diferentes ´areas disciplinares. Assim, afigura-se mais prov´avel que o Turismo continue ancorado como uma ´area de estudo em cada disciplina, na qual figure um t´opico especializado de investigac¸˜ao.

No entanto e como alertam estes autores, o principal impedimento ao desenvolvimento te´orico do Turismo pode residir n˜ao na referida incomensurabilidade, mas na inadequac¸˜ao do posi- cionamento filos´ofico dominante e da abordagem metodol´ogica: num processo similar ao das ciˆencias sociais (reputadas por alguns de primitivas e subdesenvolvidas), a evoluc¸˜ao

19Ex.: Marketing, financ¸as e planeamento empresarial.

20Matrizes disciplinares compostas por uma variedade de crenc¸as, valores, t´ecnicas, modelos e exemplos parti-

do Turismo pode tamb´em encontrar-se condicionada pelo apelo `a cientifizac¸˜ao e `a ades˜ao a m´etodos positivistas, tradicionais. Esta “tirania do m´etodo cient´ıfico” (f´ısico/naturalista) foi contestada por Bernstein, defendendo que este (m´etodo) n˜ao goza de aplicabilidade uni- versal a todas as formas de conhecimento. Neste sentido, a incomensurabilidade pode at´e servir `a incitac¸˜ao da compreens˜ao, na medida em que ´e o debate e n˜ao a unanimidade que se pretende; as abordagens alternativas servem `a transposic¸˜ao das fronteiras disciplinares e ao desenvolvimento de percepc¸˜oes mais profundas e abrangentes. Assim, o progresso do estudo do Turismo s´o ter´a a beneficiar com adopc¸˜ao de abordagens metodol´ogicas alternati- vas, como a hermenˆeutica (Echtner e Jamal, 1997: 877-8).

Consequentemente, Echtner e Jamal (1997: 879) advogam uma abordagem interdisciplinar consciente das quest˜oes metodol´ogicas e epistemol´ogicas que afectam a integrac¸˜ao dos diversos desenvolvimentos te´oricos e que tanto enriquecem como dificultam o estudo do Turismo. Diferentes quest˜oes de investigac¸˜ao reclamam abordagens metodol´ogicas diferen- ciadas e a avaliac¸˜ao da pesquisa dever´a levar em considerac¸˜ao os compromissos meto- dol´ogicos, ontol´ogicos, metaf´ısicos e axiol´ogicos que representam, bem como os objectivos sociais e cognitivos servidos. Atendendo ao significativo conte´udo comportamental e `a diver- sificada natureza do Turismo, tanto metodologias qualitativas como quantitativas devem ser admitidas e o desenvolvimento (disciplinar) dever´a contemplar (Figura 1.13):

Figura 1.13: Algumas dimens˜oes-chave na evoluc¸˜ao dos estudos tur´ısticos

Fonte: Echtner e Jamal (1997)

i. uma investigac¸˜ao hol´ıstica e integrada;

ii. a construc¸˜ao de um corpo de conhecimento te´orico; iii. uma focalizac¸˜ao interdisciplinar;

iv. a clarificac¸˜ao te´orica e metodol´ogica; e

v. a utilizac¸˜ao de abordagens metodol´ogicas diferenciadas.

Em todo o caso, o desenvolvimento disciplinar do Turismo ´e incerto e improv´avel, apesar de alguns sinais atestarem sobre o seu desenvolvimento21. Adicionalmente, a sua concretizac¸˜ao

levantaria outros problemas fundamentais, como o respectivo “alojamento” entre as restantes disciplinas ou o modelo a adoptar na definic¸˜ao de cursos na ´area.

No documento A investigação sobre turismo em Portugal (páginas 39-45)