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A ‘verdade’ do Turismo

No documento A investigação sobre turismo em Portugal (páginas 45-48)

1.3 Epistemologia do Turismo

1.3.2 A ‘verdade’ do Turismo

Igualmente pertinente ´e a interrogac¸˜ao epistemol´ogica relativamente `a validade do conhe- cimento tur´ıstico. Articulando uma abordagem construcionista social, Tribe (2006) enfa- tiza a pr´e-existˆencia da linguagem, dos conceitos e das regras disciplinares relativamente `a investigac¸˜ao produzida. Recorrendo aos conceitos de poder e produc¸˜ao, invoca a noc¸˜ao de um campo de forc¸as que influencia a verdade que ´e constru´ıda. Aplicado ao Turismo, o conceito refere-se ao conjunto de factores que medeiam o processo atrav´es do qual o mundo fenomenol´ogico do Turismo ´e traduzido no seu conhecimento (Tribe, 2006: 361-75):

Indiv´ıduo Sistematicamente reprimido na pesquisa positivista, o papel do sujeito n˜ao pode ser ignorado sem preju´ızo do conhecimento resultante, que – consequentemente – tende a veicular um car´acter primordialmente patriarcal, hegem´onico, descorporalizado, masculinista, heterossexual, eurocˆentrico, caucasiano e de classe m´edia, tanto por quem o cria, como pelos destinat´arios preconizados;

Regras Na construc¸˜ao do conhecimento, as regras constituem convenc¸˜oes `as quais os in- vestigadores aderem e nas quais trabalham; podem provir das disciplinas, num “paro- quialismo” literalmente disciplinador da percepc¸˜ao e da construc¸˜ao do conhecimento, funcionando como um filtro de toda a realidade e incapaz de ver al´em das quest˜oes internas (a cada disciplina); ao contr´ario dos paradigmas – que, num contexto p´os- moderno, carecem de poder explicativo – as tradic¸˜oes representam agrupamentos mais frouxos de regras, alicerc¸ando-se no trabalho precedente e, contrariamente `aqueles, podem coexistir livremente, porque s˜ao mais perme´aveis e adapt´aveis; enquanto con- juntos de afirmac¸˜oes que providenciam uma linguagem para debater um t´opico con- creto, num determinado momento hist´orico, as formac¸˜oes discursivas legitimam o que ´e considerado ou n˜ao como conhecimento; por fim, h´a que considerar a influˆencia do m´etodo (positivista ou interpretativo), nomeadamente pelo seu posicionamento episte- mol´ogico, e respectivos crit´erios de validac¸˜ao;

21Proliferac¸˜ao da publicac¸˜ao de manuais acad´emicos e publicac¸˜oes peri´odicas, aparecimento de organizac¸˜oes

Posic¸˜ao Relativamente ao posicionamento do investigador em termos geogr´aficos, instituci- onais, acad´emicos ou at´e culturais, importa reconhecer como forc¸as activas:

- o etnocentrismo, envolvendo a apologia do grupo ´etnico ou cultural em que o sujeito se insere, `a custa dos restantes e que questiona a capacidade efectiva de afirmac¸˜ao do subalternizado (ex. metropolitanismo);

- j´a o departamentalismo realc¸a os efeitos organizacionais na investigac¸˜ao, atrav´es da disposic¸˜ao de tempo e fundos e da submiss˜ao a estrat´egias concretas; - a localizac¸˜ao dos investigadores em comunidades (tribos) acad´emicas repercute-

se em padr˜oes de conduta aceit´avel, regras, normas e hierarquias que permeiam os cl˜as disciplinares (particularmente evidente na ocupac¸˜ao das c´atedras, cargos editoriais, convites como oradores especiais, lugares de j´uri na atribuic¸˜ao de bol- sas e estruturas de avaliac¸˜ao, consultores cient´ıficos e direcc¸˜ao de associac¸˜oes representativas);

Prop ´ositos O questionamento sobre os prop´ositos do conhecimento passa pela considerac¸˜ao dos respectivos destinat´arios, do seu financiamento e das suas utilizac¸˜oes, apelando

`as noc¸˜oes do comodificac¸˜ao e performatividade:

- a comodificac¸˜ao da investigac¸˜ao traduz o seu acondicionamento em resposta `as necessidades de mercado, assumindo particular relevˆancia em instituic¸˜oes que procuram a auto-suficiˆencia financeira; neste contexto, a investigac¸˜ao tur´ıstica ex- pressa um interesse t´ecnico22, ironicamente assim´etrico (ao internalizar a as prio-

ridades e perspectivas do sector que n˜ao lhe reconhece m´erito), vislumbrando apenas pequenas partes do fen´omeno;

- a performatividade aprofunda a comodificac¸˜ao, favorecendo o conhecimento com valor de troca que justifique o investimento em investigac¸˜ao sofisticada e dispen- diosa, relegando a procura da verdade para segundo plano; embora a relativa baixa onerosidade associada `a investigac¸˜ao tur´ıstica a salvaguarde do des´ıgnio performativista, a generalizac¸˜ao do exerc´ıcio avaliativo (institucional e individual) beneficia determinadas abordagens e temas em preju´ızo de outros, devendo ser tida em conta; e

22No ˆambito da teoria do conhecimento de Habermas, a construc¸˜ao do conhecimento nunca ´e livre de intentos,

mas antes motivada por um de trˆes interesses (Tribe, 2006: 372-3):

- T´ecnico, que procura o desenvolvimento t´ecnico atrav´es do controlo e da gest˜ao; - Pr´atico, que visa a cognic¸˜ao profunda mediante a compreens˜ao; ou

Ideologia Praticamente ignorada pela investigac¸˜ao tur´ıstica, a influˆencia da ideologia mani- festa-se tanto a n´ıvel abstracto (conjuntos de crenc¸as que permeiam a interacc¸˜ao social e orientam o pensamento e a acc¸˜ao), como concreto (conjuntos espec´ıficos e coeren- tes de crenc¸as ou “ismos”); a ideologia enforma o pensamento em determinado sentido, distorcendo a compreens˜ao e funcionando como obst´aculo `a verdade, al´em do que a ideologia dominante tende a ser a da classe dominante; se individualmente cabe aos investigadores questionarem-se quanto `as ideologias em que operam, toda a comuni- dade do Turismo deve ponderar em que medida o conhecimento produzido reflecte a pluralidade de posturas ideol´ogicas; no caso das instituic¸˜oes de ensino superior, o seu comprometimento deve-se n˜ao somente a ideologias externas (competic¸˜ao, qualidade, empresarialismo ou gest˜ao), mas tamb´em `as suas pr´oprias actividades (ensino), que se assumem como tal.

Concretizando, a Figura 1.14 ilustra a conex˜ao entre o mundo fenomenol´ogico e o conheci- mento tur´ıstico, mediado pelo j´a aludido campo de forc¸as.

Figura 1.14: Campo de forc¸as do conhecimento tur´ıstico

Fonte: Tribe (2006)

A n˜ao-disjunc¸˜ao entre os factores referidos pretende veicular a ideia da existˆencia de sobre- posic¸˜oes e interrelac¸˜oes entre eles, funcionando o dito campo de forc¸as como um espac¸o fluido. J´a o tracejamento do mundo fenomenol´ogico relaciona-se com a indefinic¸˜ao das suas fronteiras. No seguimento do discurso anterior, o C´ırculo 2 pode interpretar-se como a lente para a vis˜ao do Poder e o C´ırculo 3 a respectiva retina. Neste ´ultimo, o arco ABC denota as representac¸˜oes sistem´atica e repetidamente privilegiadas no Turismo, enquanto o seu com-

plemento (arco AZC) aquilo que sistematicamente se recusa e frustra.

Em conclus˜ao, resulta desta argumentac¸˜ao uma necessidade de permanente precauc¸˜ao e reflex˜ao epistemol´ogicas para o contexto em que estudo do Turismo se desenvolve, por parte dos seus obreiros.

No documento A investigação sobre turismo em Portugal (páginas 45-48)